21 - Limite
— Você tá passando mal?
—Ghmnnn
— Lipe? Porra! Tá passando mal?
— Para...
— Quê?
— Para o carro!
— Não tem acostamento aqui!
— Eu... ughnn...
— Merda! Que merda, Lipe! Segura aí!
Thiago reduziu a velocidade e enfiou o carro o máximo que pôde no mato alto à beira da estrada. Felipe praticamente caiu do carro, de joelhos no chão. Parecia que seu corpo se partiria ao meio com os espasmos, que não diminuíam mesmo que suas tripas se projetassem por sua boca naquele encosto de pista no meio do nada.
Não durou muito, só o tempo de erguer o corpo, limpar a boca e se virar para o carro, e então, veio o estrondo.
Depois, a escuridão.
[...]
— Lipe?
Felipe abriu os olhos, aturdido. Sentia o corpo sendo chacoalhado por mãos pesadas.
— Quê...? — sua voz saiu trêmula. Todo seu corpo tremia.
— Você tá drogado? – era Pablo.
— Não... — Felipe empurrou bruscamente a mão do irmão mais novo, que tentava abrir suas pálpebras para investigar suas pupilas — sai daqui, porra!
— Você não acordava, caramba! A gente precisa sair! A mãe já tá esperando com as meninas.
— Ela vai levar as meninas?
— Vai, ué. Não tem com quem deixar.
— A Bruna não vai ficar com elas?
— Não pode.
— Inferno!
— Quem vê, pensa que você se importa em ficar com elas.
— Não é isso. É por causa delas. Faz seis meses que não veem a mãe, e aquela egoísta não faz nem questão.
— Cada um tem seus problemas, Lipe. Você é o último com moral pra julgar.
— Você tá louco? Tem tanta treta comigo que consegue defender uma desmiolada só pra ficar contra mim?
— Por que tá levando pro lado pessoal?
— Eu não tô, você que tá, caramba!
Pablo esfregou o rosto. O dia prometia ser uma merda.
— Vamos, Lipe. Não quero discutir com você.
Eles estavam na casa da família, onde Graça De Santis, CEO da Limonada, avó, tutora legal em tempo integral e mãe nas horas vagas, se hospedava quando vinha para o Brasil. As gêmeas, Isis e Laís, de quem Graça mantinha a guarda, moravam com ela na Alemanha. Obrigatoriamente, ela precisava voltar ao Brasil a cada seis meses para que a mãe das meninas pudesse passar um tempo com elas. Infelizmente, nem sempre as coisas saíam como o esperado.
Na verdade, nunca saíam.
Quando Thiago faleceu, Bruna, sua companheira, entrou em colapso. Vítima de depressão severa, precisou ser internada para tratamento. Ela já tinha um quadro de distúrbios emocionais há anos e a morte de Thiago só entornou o copo. Ao invés de ser solidária e acolher a nora, Graça se aproveitou da situação e moveu uma ação para conseguir a guarda das gêmeas, simplesmente porque julgara que Bruna era incapaz como mãe. As meninas tinham apenas um ano na época e sequer haviam estreitado o laço com a progenitora quando foram arrancadas dos cuidados maternos.
Obviamente, Bruna surtou a ponto de tentar o suicídio. Tentou por quatro vezes e na quarta tentativa, ficou com sequelas devido a uma overdose de opioides e psicotrópicos. Foi suficiente para que Graça conseguisse a guarda permanente, já que a mãe oferecia riscos a si e às crianças.
Só mais um esqueleto no armário dos De Santis.
— Tio Lipe! Quero ir com você! — As duas garotas o agarraram assim que terminou de descer as escadas, cada uma numa perna, fazendo-o se arrastar pela sala. Nenhum mau-humor podia suportar tamanho ataque de fofura, então ele riu, divertido.
— E quem disse que eu quero levar vocês?
— Quer, quer, quer, quer, quer! — Elas pulavam e gritavam ao redor dele.
— Chega, meninas! — a voz autoritária de Graça ecoou pelo vão livre do hall de entrada. As garotas o soltaram, mas mantiveram o olhar vidrado nele.
Felipe encarou a mãe, mas não disse nada. Ele nunca dizia nada, na verdade. Eles nunca mais pautaram uma conversa real desde a morte de Thiago e Felipe se resignava a falar o essencial. Enquanto Graça estava no Brasil, os filhos ficavam com ela na antiga casa da família, ocupando seus quartos de infância apenas para facilitar a logística e passar mais tempo com as sobrinhas. Pablo ainda conseguia confraternizar com a mãe; Felipe? Jamais.
— Vocês vão com o tio Pablo, ok? Eu vou de moto — afirmou, num entendimento mudo com Pablo. O irmão mais novo pegou as duas crianças no colo, que se debateram em risos divertidos, e foi a deixa para Felipe sair da casa e subir na moto. Graça não pareceu se importar. De fato, ninguém se importou quando ele foi embora.
[...]
Gabi concentrava-se em acertar o traço da ilustração que fazia naquela maldita mesa digitalizadora quando um burburinho de vozes agudas preencheu o silêncio da agência. Curiosa, esticou o corpo para enxergar a porta de entrada, mas não foi preciso muito, porque dois pequenos tornados loiros envoltos por tule cor-de-rosa e amarelo invadiram o espaço, fazendo voar algumas folhas de sobre as mesas.
— Laís! Isis! Venham aqui! — uma voz desconhecida ecoou e Cíntia ficou de pé na hora.
— Tia, tia, tia, tia, tia... — as garotinhas gritavam em volta de Cíntia que, rendida, desabou no chão aos risos enquanto as meninas se jogavam sobre seu corpo minúsculo. Gabi chegou a se preocupar se ela não sairia do ataque com alguma contusão.
Rindo — porque não havia como não rir com uma cena tão fofa — Gabi viu Pablo se aproximando ao lado de uma elegante mulher de meia idade, muito bonita, por sinal. Gabi recebeu um sorriso de Pablo, foi cerimoniosamente ignorada pela senhora e então, ele entrou.
E toda a razão do sorriso morreu.
— Bom dia! — Pablo cumprimentou e a equipe respondeu enquanto uma Cíntia muito descabelada tentava se colocar de pé. Para completa surpresa de Gabi, Felipe se aproximou da ruiva e estendeu a mão para ajudá-la a se levantar. O gesto deixou Gabi completamente pasmada.
E irritada.
E absurdamente enciumada.
— Oi, Felipe! Que bom que elas puderam vir! Eu achei que teria que ir até elas! — Cíntia afirmou, entre risos.
Quê?
— Não era o planejado, mas no fim deu certo — ele respondeu com um sorriso.
Um sorriso! Um sorriso para a Cíntia!
Tentando não demonstrar seu completo estarrecimento-barra-dor-de-cotovelo, desviou sua atenção para o Pablo que, diferente dos demais colaboradores e familiares, era o único que parecia ter sua atenção voltada para ela.
— Bom dia — ele se aproximou e a cumprimentou de modo reservado, quase íntimo. Tinha a ponta dos dedos sobre a mesa, muito próximo de onde Gabi mantinha a mesa digitalizadora, como se tivesse a intenção de pegar sua mão.
— Bom dia — ela respondeu devolvendo o sorriso e, automaticamente, seus olhos se desviaram para Felipe, que de modo inesperado, a fitava com aquelas lâminas geladas.
Todos estavam distraídos com as meninas e o que lhes era interessante, caso contrário, teriam notado o olhar devoto de Pablo para sua assistente, o olhar da assistente para seu saudoso demônio, e o olhar do demônio sentenciando ambos ao inferno.
Que saudades dos dias de paz.
— Bom dia, Felipe. Fez boa viagem? — ela tentou imprimir cordialidade à voz. Não foi o que saiu.
— Foi tudo bem, obrigado.
A resposta pareceu automática e fria. Ele deu um oi para Rob, Nay e Leo. Diana e Cíntia já estavam na mesa de reuniões, entretendo as meninas com lápis de cor e papéis coloridos. A senhora misteriosa a encarava, intrigada, e Pablo seguia engolindo-a com os olhos.
Que ambiente deveras pitoresco.
— Onde prefere ficar, mãe? — Felipe fez a pergunta. Só então Gabi entendeu quem era a senhora.
A CEO da agência.
— Feche a sala de reuniões. Me ajeitarei por lá, assim posso ficar de olho em tudo, inclusive nas meninas.
Ah, que ótimo.
— Cadê o Niko? — Felipe perguntou.
Gabi sempre se fazia a mesma pergunta.
— Não sei. Acho que não chegou, ainda — Nay respondeu, depois foi ajeitar a sala de reuniões para a "Toda-poderosa" da agência.
— Rob, venha até minha sala — Felipe ordenou. O designer o seguiu e Gabi foi morrendo a cada passo que o Diretor de Criação dava para longe dela.
Nem mais uma palavra. Depois de mais de três semanas, nem um oi. Até quando suportaria isso?
— Tudo bem, Gabi? — Pablo perguntou, quando notou seus olhos úmidos.
Gabi se questionou se Pablo não conseguia mesmo perceber, ou apenas não queria acreditar.
— Tudo sim...
— Venha, quero te apresentar a minha mãe — ele esperou que ela desse a volta na estação de trabalho e chamou Graça para perto —, mãe, essa aqui é a Gabi, de quem falei com você. Gabi, essa é a Graça, CEO da agência.
— Muito prazer — Gabi estendeu a mão, que foi prontamente ignorada.
Pelo jeito, falta de educação era um traço de família. Pablo devia ter puxado o pai.
— Então é você, a artistazinha emergente...
Quanto tempo demora para se odiar uma pessoa? Gabi acabou de bater um recorde.
— Mãe! — Pablo ficou vermelho como um pimentão. — Precisa disso?
— Qual sua formação, garota? — Graça continuou olhando-a do alto. Sim, porque mesmo que Gabi tivesse seus um metro e setenta, a mulher era mais alta; mais do que o Pablo, menos que o Felipe.
— Eu tenho o ensino médio, senhora — respondeu, sem demonstrar constrangimento. Se soubessem de onde ela saíra, lhe dariam os parabéns por ter conseguido concluir o ensino fundamental. Já o ensino médio, fora um verdadeiro milagre.
— Hmn... — A mulher desviou os olhos gelados para Pablo e Gabi notou nela o mesmo tom dos olhos de Felipe. Ela era loira, alta e magra, realmente muito elegante; nem dava para saber a idade dela direito, mas por ser avó e mãe de filhos adultos, um deles era para ter completado 30 anos, não devia ter menos do que 50 anos.
— Vamos, vou ajudar a Nay a ajeitar seu espaço — Pablo se afastou com a mulher, para alívio de uma ignorada Gabi, que voltou ao próprio computador e ficou espiando as meninas brincando com Cíntia e Diana.
As duas funcionárias pintavam desenhos com as crianças, riam, trocavam olhares prolongados e se tocavam muito, e a cada dia ficava mais óbvio que alguma coisa rolava entre elas. Gabi se perguntava quando elas assumiriam de vez que estavam juntas.
— Figuraça, não? — Leo tirou Gabi do devaneio.
— Quê?
— Graça De Santis. Uma figura rara. Fica esperta, Gabi. A mulher tem olhos nas costas. Vai sacar esse teu lance com o Pablo em cinco minutos.
— Espera... Quê? Que lance com o Pablo?
— Gabi, na moral. Acha mesmo que não percebi?
— Leo, o que você percebeu?
— Que tá rolando algo entre vocês dois.
— Mas... não tá rolando nada entre a gente!
— Alguém precisa avisar ele, então — Leo inclinou a cabeça em direção ao Pablo, que a observava através das paredes de vidro já fechadas.
— Olha, Leo... eu...
— Não precisa me explicar nada, Gabi. Você não deve satisfações a ninguém aqui, fica em paz. Não sei se os outros perceberam, eu notei porque, bem... tenho olhos de fotógrafo, é isso.
— Notou como? Não tem nada rolando, é sério! Só temos conversado mais, nos tornamos meio que... amigos.
— Tá certo. Boa sorte com a sua... amizade.
Gabi notou um traço de rancor na voz do fotógrafo. Não gostou, já que, diferente do que Felipe havia insinuado, ela não dava brecha para o homem. Nunca deu a entender nenhum interesse nele, apenas sempre foi educada.
Ninguém podia culpá-la por ser educada, certo?
— Leo, independente do que você pensa, por favor, não fica espalhando essa história, tá? Não quero virar fofoca na hora do café.
— Tarde demais pra isso, gata. Nem precisou desse lance com o Pablo pra você virar fofoca, você sabe como é.
— Como assim?
— Fica tranquila, não é nada demais. Só especulam quanto tempo você vai suportar trabalhar tão perto do Felipe, sendo que ele parece ter uma atenção bem específica direcionada a você, além de ter a péssima fama de "assassinar" os relacionamentos do irmão.
Gabi engoliu em seco e não disse mais nada, pois Rob havia acabado de sair da sala do Felipe e caminhava em sua direção.
— Felipe quer falar com você.
Com o coração acelerado, ela se levantou da cadeira e caminhou como uma ovelha para o abatedouro. Passou pela porta e a fechou atrás de si. Aproximou-se da mesa com os olhos baixos, e só os ergueu quando viu o tampo de madeira à sua frente.
— Pois não? — a pergunta saiu antes dos olhos se encontrarem. Ainda bem, porque Gabi duvidava que sua voz encontraria o caminho até sua boca se o tivesse encarado antes.
— Como tem passado, Gabriela?
Ela sentiu dor no peito quando ele disse seu nome. Pensou nos bate-papos agradáveis com Pablo e nenhuma conversa sequer lhe fizera cócegas. Mas bastou esse homem à sua frente dizer seu nome e suas entranhas quase se liquefizeram. Chegava a ser ridículo!
— Eu... — ela queria dizer algo neutro. Queria parecer indiferente, superior, até mesmo altiva, mas não conseguiu. Sentiu como se alguém tentasse mantê-la no chão com o pé pressionando seu tórax, e aquela sensação de pânico roubou seu ar e a fez estremecer.
— Gabriela?
Ela tentou responder àquela voz que a arranhava por dentro, mas sua própria voz não saiu. Seus olhos ficaram nublados e o tremor se acentuou. Apavorada em fazer uma cena diante dele, buscou controlar as emoções, mas a guerra já estava vencida.
Ela nunca conseguiria se controlar diante dele. Ele sempre a dominaria, ainda que não fizesse nenhum esforço para isso. Ele era o príncipe de verde que a tragaria para seu mundo sombrio. No passado, ela se livrara de um dragão vermelho só para se tornar prisioneira de um reino confuso e medonho. Ela havia caído numa prisão enquanto tentava escapar de outra, e nunca seria livre. Não enquanto o príncipe verde a mantivesse cativa.
Quando uma lágrima furtiva escorreu, encontrou o caminho até seu pescoço e se perdeu na gola da cacharréu negra que usava, ela finalmente encontrou voz para responder:
— Eu quero a minha demissão.
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