14 - Pesadelo X Sonho
A noite estava quente. A brisa fazia a pequena cortina de renda dançar e as sombras que se projetavam através da luz da lua pareciam espíritos rondando seu sono. Suas pernas estavam ocultas por um lençol fino e amarelado, não por frio, mas por segurança. Era uma ilusão pensar que um pedaço de tecido barato seria capaz de assustar as entidades mal-intencionadas que profanavam seu sono juvenil.
Como previsto, suas defesas foram vaporizadas quando uma dessas entidades lançou sua sombra pelo quarto. Através da porta entreaberta, a luz fazia o vulto chegar antes do corpo, criando a ilusão de que o demônio era ainda maior do que realmente era. O ser se aproximou do pé da cama e se curvou.
A claridade da lua refletiu em seu rosto. Não havia luz a não ser nas íris, que pareciam mercúrio líquido. Os cabelos apontavam em várias direções e se projetavam para frente, ocultando parcialmente os olhos, sem contudo diminuir seu brilho. O ser baixou o rosto até a ponta dos seus pés e puxou seu lençol.
Ela suspirou quando sentiu a língua em seu calcanhar. As pontas dos dedos masculinos pressionavam ao mesmo tempo a articulação atrás do joelho e a sola do pé delicado, até que a boca úmida e quente se apossou de um dos dedos femininos. A sensação a fez curvar o corpo e gemer languidamente.
Sem desviar o olhar, ele deslizou com a língua ao longo do peito do pé, subiu pela panturrilha até o joelho e distribuiu beijos quentes e molhados ao longo da parte interna de sua coxa até perto da virilha. Nesse ponto, o sorriso lupino a fez quase implorar pelo toque íntimo, tão protelado e ao mesmo tempo tão desejado. Ele deslizou as mãos ao longo das coxas femininas e subiu com a ponta dos dedos até a cintura fina, depois desceu, puxando a lingerie e removendo a peça como se fosse uma carícia.
Nesse momento, ela desejou enfiar as mãos nos cabelos revoltos e segurar os fios escuros, mas não encontrou as próprias mãos. Fitou os olhos de prata e sorriu, mas ele baixou a cabeça e mordeu a base do seu ventre. A dor inesperada a fez arfar e ela sentiu o sangue escorrer, como se a pele tivesse sido perfurada por dentes caninos e afiados. Procurou novamente os braços e finalmente os encontrou.
Em cada lado de sua cama, havia mais duas entidades. Cada uma prendia um de seus braços, tolhendo seus movimentos. O medo se projetou e lágrimas nublaram seus olhos, mas não a ponto de impedir a identificação das faces dos seres míticos: de um lado, Pablo, do outro, Leonardo.
Entre suas pernas, aquele que acreditou ser Felipe, se transformava num monstro. O corpo viril e musculoso dava lugar a um biotipo flácido e envelhecido, os cabelos lustrosos e volumosos eram substituídos por uma careca brilhosa e engordurada, e o cheiro rançoso de suor, graxa, álcool e cigarro ocupou todo o lugar. O grito ficou preso em sua garganta, que fez um esforço sobre-humano para implorar por clemência...
— Pai... Não!
[...]
Gabi deu um pulo sobre o colchão e, quando abriu os olhos, suas mãos ainda se moviam pelo ar como se quisessem espantar ameaças invisíveis. O medo enregelava sua pele e um tremor generalizado fazia seus dentes baterem sem controle. Aos poucos, a consciência do tempo e espaço se assentou e com ela, veio o pranto incontido.
O choro durou um bom tempo. Ainda era madrugada, então os períodos de consciência dolorosa se alternavam com tentativas frustradas de voltar a dormir, até que ela deixou os cobertores e pegou o bloco de desenho, seu mais precioso refúgio, aquele que lhe permitia despejar para fora o que a matava por dentro.
Vários esboços foram surgindo, borrados, sombrios e soturnos. Olhos brilhantes, chifres, vultos, presas e sangue. A mais ameaçadora de todas as imagens era a de um perfil másculo de sorriso lupino, pele cinzenta e olhos quase brancos. Os cabelos revoltos e negros pareciam se mover com o vento, e do canto dos lábios escorria um fio vermelho.
Felipe. O demônio que invadia os recônditos de seu subconsciente e a tornava hiperconsciente de seu poder e seu fascínio; ele poluía seu sono enquanto dormia e seus pensamentos enquanto acordada. Ele chacoalhava as águas de suas memórias mais tenebrosas, ressuscitando aquele dragão antigo, e não tinha o poder de sobrepujar seus piores medos, pois...
Ele não a tocava.
Não havia como prever a reação de seu corpo se isso chegasse a ocorrer, talvez ela nem permitisse que ele seguisse adiante, ainda assim, suas entranhas imploravam por ele como se ele fosse o antídoto para o veneno que corria em suas veias.
Fazia três dias desde que o desafiara em sua sala. Três dias em que ele ignorou sua existência como se ela fosse invisível, ainda que tivesse dito que precisavam conversar sobre suas novas atribuições no trabalho. Talvez hoje fosse o dia, talvez conseguisse um tempo a sós com ele e pudesse dizer a ele como estava se sentindo e como ele vinha destruindo suas noites.
A madrugada avançou e ela não sabia quanto tempo havia passado desenhando, apenas que a luz pálida da manhã clareava uma pilha de folhas amontoadas ao pé da cama quando o sono a rendeu, apenas para que fosse cruelmente acordada pelo despertador uma hora mais tarde.
[...]
Assim que chegou à agência, Gabi foi chamada na sala de Pablo. Ela fez menção de colocar o uniforme antes, mas Cíntia insistiu que ela fosse diretamente para lá, sem desvios. Apreensiva, bateu na porta e logo foi convidada a entrar.
— Bom dia, Gabi. Como você está?
Pablo a cumprimentou, mas não sorria, nem a olhava nos olhos. Nesse momento, ela teve certeza de que seria mandada embora. Era a única explicação para o tratamento frio e impessoal que seu chefe favorito lhe dispensava.
— Bom dia, Pablo. Eu estou bem, e você?
Ele desviou os olhos do computador e os fixou nos dela. Gabi percebeu várias nuances na superfície azul e a soma de todas elas a deixou ansiosa.
— Vou bem, na medida do possível. Você sabe por que eu te chamei aqui?
— Bom, deduzo que seja porque hoje vence meu período de experiência.
— Exato. Eu gostaria de ouvir de você como foram esses três meses em que trabalhou conosco.
Ele fez a pergunta de um jeito que pareceu a estar dispensando, e ela pensou em qual seria o objetivo disso já que ela não ficaria mais por ali. Desanimada, procurou ser o mais honesta possível.
— No início, eu fiquei um pouco confusa, principalmente na relação interpessoal com o Fe... com o Diretor de Criação. Não tive dificuldades em realizar minhas funções, mas creio que deixei a desejar quando o assunto era agradá-lo. Tirando isso, eu acho que me dei bem com as demais pessoas, cumpri minhas atribuições, mantive meu horário quase perfeito e, salvo quando fiquei doente, não deixei de trabalhar.
— Certo. E o que você diria para me convencer a efetivá-la?
Gabi pensou por um tempo. Ainda que não tivessem conversado sobre a questão do esboço da Tijolo Engenharia, era óbvio que Pablo sabia do ocorrido. Todos na agência já sabiam, e a prova disso era que Diego chegou a ser dispensado e em breve outro designer gráfico assumiria seu lugar. O que ela não entendia era o motivo de Pablo não tocar no assunto com ela, além de chamá-la para conversar no seu último dia de trabalho como quem está prestes a rescindir seu contrato de experiência.
— O que eu diria? Quer a resposta sincera ou algo elaborado que o convenceria a me manter na empresa porque falei as palavras certas?
— O que você acha? — Ele mantinha uma postura impassível.
— Sinceramente, eu gostaria muito de ficar na agência. Quando busquei uma oportunidade de trabalho, o lugar foi o que mais me motivou. Não foi pelo salário, mas pela conveniência. Eu queria estar dentro desse ambiente, respirar essa atmosfera de criação e arte, acompanhar o nascimento de algo novo, de sonhos, de marcas e conquistas. Eu queria aprender com cada um aqui e, ainda que não tivesse uma chance de mostrar meu talento, mesmo assim tive a oportunidade de vivenciar aquilo que mais sonhei.
— Quais foram os acontecimentos ou experiências que mais te marcaram nesse período?
Como diria a ele? Como ser sincera sem mencionar seus sentimentos confusos, principalmente em relação ao "irmão errado"?
— O que mais me marcou foi a forma como fui aceita e recebida por pessoas que, teoricamente, estão acima de mim em hierarquia. Principalmente por você, Pablo. Em segundo lugar, ver a equipe de criação trabalhando. Foi fascinante ver Felipe em ação e como os colaboradores conseguiam absorver seus conhecimentos e transformar tudo em algo sólido e atraente.
— Não vai mencionar o fato de ter criado uma marca e ela ter sido aceita pelo cliente?
— Isso não me marcou. Isso me transformou. Deixei de ser uma tentativa para me tornar um acerto. Se não puder criar mais nada relevante no futuro, esse único sucesso mudou a forma como eu me enxergo. Só posso agradecer por terem visto algo que valia a pena, ainda que não soubessem que era eu.
Pablo mantinha a cabeça apoiada nas duas mãos cruzadas sob o queixo e a olhava como quem buscava desvendar seus segredos. Gabi imaginou que essa entrevista era um tipo de teste derradeiro para averiguar se um funcionário permaneceria ou seria desligado. Ansiosa, recostou na cadeira e aguardou sua sentença.
— Infelizmente, Gabi, não pretendemos efetivá-la como Auxiliar de Limpeza.
Gabi sustentou o semblante sério e fez um esforço insano para não desviar o olhar. Isso só podia ser coisa do Felipe. Ele já tinha deixado claro que não a queria ali. Ela mesma havia sugerido que ele levasse a cabo sua demissão. Mesmo assim, foi quase impossível manter as lágrimas em seus devidos compartimentos, suplantadas e esmagadas, assim como seu peito estava.
— Entendo.
— No entanto, gostaríamos de oferecer uma vaga como aprendiz de criação.
Incrédula, ela ficou sem reação, encarando o semblante sério de Pablo, até que notou um fiapo de humor nos olhos azuis — um leve curvar na pálpebra inferior. Ele queria sorrir, e isso foi suficiente para soltar as garras que apertavam suas entranhas.
— É sério? — Sem conseguir conter, seus lábios se curvaram num sorriso.
— É sério — só então ele sorriu.
— Eu posso te abraçar? — Ela perguntou, sem se mover.
— Não, não pode – seu sorriso se ampliou — mas haverá uma oportunidade para isso.
— Eu... Muito obrigada! Eu nem sei o que dizer — as lágrimas represadas subiram aos seus olhos e uma escapou, fazendo Gabi limpá-la fugazmente —, prometo que darei o melhor de mim.
— Não tenho nenhuma dúvida disso. Seja bem-vinda de novo à Limonada, Gabi.
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