10 - Convalescência
Gabi teve que ir a uma hopital, eventualmente. A febre não baixava e, depois de um dia inteiro chafurdando em autocomiseração, especulando sobre o tempo que demorariam para descobrir seu corpo caso morresse sozinha no quarto, resolveu tentar atendimento numa UPA perto da estação de Metrô.
Não pediu ajuda a ninguém. Não havia para quem pedir; nenhum parente, nenhuma amizade próxima, nenhum envolvimento significativo a não ser com poucas pessoas do trabalho, com quem ainda não se sentia confortável em se abrir. Dona Sofia, a proprietária da pensão, não era muito dada a intimidade e a atitude dela se espelhava em todas as suas vizinhas.
Gabi não sabia o que a atemorizava mais: a impessoalidade dos que não queriam saber de sua existência, ou a indiferença fria de quem a conhecia, porém não se importava. Esse descaso parecia um comportamento inerente às pessoas que viviam naquela grande metrópole. Gabi tinha a impressão de que passariam por cima dela, mesmo se estivesse sangrando numa calçada.
Era assustador morar numa cidade assim.
Quando finalmente conseguiu passar pela triagem do pronto-socorro, ela descobriu que teria de esperar no mínimo três horas para ser atendida. Outra peculiaridade da grande cidade. Quando foi contratada, Nay explicou a ela que quando terminasse o período de experiência, ela teria direito a usar o seguro saúde da agência. Isso seria ótimo num dia como hoje.
Enquanto tremulava febril num banco duro repleto de outros doentes, recebeu uma mensagem no celular.
"O que aconteceu? Como você está? Onde está?"
Gabi sorriu com a mensagem de Pablo. Ao menos conversar faria o tempo passar mais rápido.
"Eu vim ao médico conseguir uma receita para antibióticos, minha garganta parece infeccionada."
"Qual médico? Quer que eu passe aí?"
"Não! Não se preocupe! Eu já estou esperando o médico chamar."
"Posso fazer algo por você? Posso ao menos comprar os remédios?"
"Eu não sei. Deixe-me ver o que é, vamos falar sobre isso quando eu retornar ao trabalho, ok?"
"Vá me mantendo informado. Quero que fique bem!"
"Eu estou bem, fique em paz!"
"Tenho muito carinho por você, Gabi. Quando Felipe me contou que te mandou embora num Uber, quase arranquei as orelhas dele!"
Gabi sentiu a ansiedade subir até a garganta infeccionada. Não que tivesse se importado pelo fato de voltar de Uber, isso foi até uma atitude bacana de Felipe, mas ainda a intrigava a forma como ele agira com todos naquela manhã. Ela adoraria saber por que ele era tão estranho, principalmente quando o assunto a envolvia.
"Não foi nada, Pablo. Na verdade, achei que foi atencioso da parte dele; ele podia ter me mandado embora de Metrô mesmo, eu não me surpreenderia se ele o fizesse. E quanto a você, quando voltou de viagem?"
Nenhuma resposta chegou. A palavra "Digitando..." surgiu no display, e nunca terminava. Gabi se perguntou quanto tempo se levava para digitar palavras como "ontem" ou "hoje". Depois de um longo período em que ela quase cochilou sentada, o celular bipou com a resposta.
"Hoje pela manhã."
Certo. Por que pareceu que ele escondia algo? Ou que queria evitar perguntas? Bem, ela não faria mais perguntas, pois entrar no assunto sobre a viagem foi apenas uma tentativa de puxar outra conversa que não envolvesse suas mazelas pessoais. Digitou uma resposta:
"Não se preocupe comigo. Vou ficar bem. Vou ser atendida agora, depois nos falamos. Até breve!"
Restava um bom tempo antes que alguém a chamasse, mas ela preferiu mentir e encerrar o assunto. Não viu mais mensagens pois ficou subitamente mais cansada. Talvez fosse a doença ou qualquer outra coisa, mas não estava mais a fim de falar com ninguém.
[...]
Felipe passava o dedo pela linha do desenho. Era um esboço simples, não havia nada de muito técnico nele, mas aquele traço... foi o que mais lhe chamou a atenção.
Fino.
Delicado.
Feminino.
Certamente, foi uma mão feminina que fez o esboço. Pelo ângulo da imagem, chutaria que era canhota. O desenho começava com uma trama em 3D e terminava com um sombreado simulando realismo. Era para passar a ideia de algo que saía de um projeto e se concretizava. Uma ideia tão simples, porém, assertiva.
— Cara, por quê "Tijolo"? — Leo questionou.
Um traço de humor torceu o lábio de Felipe, como uma sombra de sorriso.
— Porque é óbvio. E único. Quem chamaria qualquer coisa de "Tijolo"?
— "Tijolo Engenharia". Num primeiro momento soa bem idiota, mas depois... não posso negar que parece despojado com um toque de "cult". Queria ouvir a argumentação de quem criou — Rob jogou para o Diego, que desde que começara a fazer a digitalização da imagem, não abriu mais a boca.
— Ele não quer trabalhar aqui — o loiro respondeu, soturno.
"Ela" Felipe pensou. Tinha quase certeza. 98% de certeza de que era mulher.
— Meu medo é ele aparecer exigindo direitos sobre isso. Ficaríamos mais confortáveis se soubéssemos que partiu daqui — Diana afirmou, entretida na pesquisa sobre marcas similares. Aparentemente, não havia outra empresa de mesmo nome dentro do mesmo segmento.
Felipe deixou a cópia do sketch sobre a mesa e voltou para a própria sala. O original estava guardado numa das gavetas. Manteria a sete chaves, pois num processo por direito autoral, ele poderia alegar possuir o documento oficial. Ainda nem tinha sentado na própria cadeira quando seu irmão irrompeu porta adentro.
— Você é um babaca de marca maior! — Pablo foi logo ladrando, antes mesmo de fechar a porta. Felipe apenas suspirou e fechou os olhos.
— O que foi desta vez...?
— Você mandou a garota embora de Uber! Nem se preocupou se ela precisava de alguma coisa!
Mais um suspiro, seguido de mãos esfregando os cabelos, que ficaram caóticos quando Felipe ergueu os olhos para o irmão mais novo.
— Pablo... me responde uma coisa: em que planeta pagar um Uber para uma pessoa doente chegar em casa configura descaso?
— Você não se preocupa com ninguém, Felipe! Aposto que não perguntou a ela se precisava ir ao hospital, ou de remédios.
— Era uma gripe, Pablo. Todo mundo tem gripe! Você, eu, o presidente da república! Por que tanto alarde com isso? Por Deus!
— Eu sei o quanto você é insensível, e ela está sozinha na cidade. Ela não tem ninguém aqui, sabia?
— Ela é uma funcionária, Pablo! Nada contra isso, mas ela não é minha filha, nem minha mãe, minha irmã ou namorada! Você tá careca de saber que preciso ficar longe de problemas, caralho!
— Se não ficasse metendo o pau em qualquer buraco, não teria problemas!
Felipe ficou de pé e deu passos largos até o irmão. Por reflexo, Pablo deu um passo atrás, mas não recuou mais. Encarou o mais velho, de baixo para cima. Felipe era um pouco mais alto, maior e muito mais ameaçador, principalmente quando provocado. Pablo parecia não se importar com o fato.
— Eu vou te dar um aviso — a voz de Felipe era baixa, quase como se confidenciasse um segredo — fica longe dessa garota, você me entendeu? Você tá perdendo a linha, tá fazendo merda mais uma vez. Enquanto eu pago de cafajeste, você se sai bem como a vítima boazinha, mas eu tô cansado de usar essa roupa! Para de ser ingênuo e vê se cresce!
— Eu não sou igual a você!
— Que grande sorte você tem! Continue posando de certinho, talvez consiga se convencer de que é melhor do que eu. Quanto a mim, cansei de ocupar essa prateleira na estante dos De Santis! – Com um safanão, Felipe deu a volta em Pablo para deixar a sala. Antes de passar pela porta, ouviu a voz do irmão.
— Ela está no hospital, sabia?
Felipe se deteve por um instante antes de responder:
— Ela não é uma molenga. Te garanto que ela aguenta, muito mais do que você pode imaginar.
[...]
Já passava das dez horas da noite quando Gabi deixou o hospital. Precisou fazer radiografia do pulmão e o médico optou por administrar uma injeção de penicilina a fim de conter a infecção. Isso fez com que ela praticamente mancasse até em casa.
Ô injeção dolorida!
Gabi sempre teve uma grande sensibilidade na região da garganta por conta das amigdalas. Ela as deveria ter removido há anos, contudo, mesmo estando na fila de espera para a cirurgia, sua vez nunca chegava. Era comum ter amigdalites e otites intermitentes nos períodos entre outono e inverno, e se o seu nariz vivia entupido quando morava no interior do estado, quanto mais ali, naquela bolha de monóxido de carbono que era a capital.
Enquanto se dirigia para a pensão, sentiu uma presença atrás de si. Olhou em volta, não viu ninguém, mas a sensação persistiu até que estivesse bem perto da casa. Enquanto procurava a chave na bolsa, uma moto verde estacionou ao seu lado. Chegou a pensar que era um entregador, mas entregadores não usavam motos iradas assim. Quando o motoqueiro tirou o capacete verde e preto, ela prendeu o ar.
— Você...? — Quase deixou cair as chaves num bueiro.
Ele desceu, deu a volta na moto e parou em frente a ela. Parecia nervoso, ansioso... agitado. Sua postura a deixou desconfortável e, ainda que a presença desse homem a perturbasse apenas por ele existir, dessa vez parecia que havia algo mais ali.
— Como você está? — a pergunta soou seca, inexpressiva. Parecia que a mãe o tinha obrigado a pedir desculpas a um coleguinha.
— Vou ficar bem.
— O quê era?
— Infecção de garganta. Infelizmente, estou familiarizada. Dessa vez foi mais incômoda, talvez por causa do clima e da poluição da cidade; eu não estava habituada a esse ar.
— Mesmo para quem mora aqui desde que nasceu, é difícil. A gente cresce com rinites e todo o tipo de distúrbio respiratório e só descobre que não respira bem quando pode sair da cidade por algum tempo.
— Então preciso me habituar a não respirar. Posso fazer isso – ela percebeu que sorria modestamente enquanto ele a encarava, e que uma sombra de sorriso permeava os lábios masculinos.
Gabi se deu conta de que essa era a conversa mais longa que tiveram desde que se conheceram. Pensava nisso quando ele deu mais um passo em sua direção e a luz do poste clareou um pouco mais seu rosto outrora oculto pela noite. Ela se viu reparando em seus traços. Felipe parecia perturbado, pálido, os olhos não paravam de se mover, como se procurassem sombras ao redor, e seu cabelo estava despenteado pelo vento.
Mesmo assim, ele estava fascinante.
— Eu preciso entrar... — sussurrou ela, ansiosa. Era uma ansiedade diferente; não sabia a razão, mas Felipe, parado em sua porta a afetava num nível alarmante. Ignorando seu conflito interno, ele deu mais um passo, estendeu a mão e a depositou gentilmente na lateral do seu pescoço.
A palma quente e firme deslizou por baixo da mandíbula e os dedos cobriram toda a sua nuca. Não pareceu um toque com intenções erradas, era como se ele tentasse aferir sua temperatura, mesmo assim, o contato a aqueceu inteira e fez seu coração disparar. Mais uma vez, ele poderia sentir o palpitar sob a palma da mão se prestasse atenção. A sensação era tão prazerosa que ela se esforçou muito para não fechar os olhos e ronronar como um gato carente.
— A febre cedeu — ele murmurou.
Ahhnnn... mais ou menos...
— Cedeu — ela respondeu num sussurro. Os olhos prateados a encaravam e ela notou o quanto pareciam escuros e confusos. Olhando mais atentamente, percebeu as escleras vermelhas e as pupilas tão dilatadas que chegavam a cobrir o cinzento das íris.
Ele parecia... drogado.
Ela sabia como era. Conhecia os sinais. Seu pai costumava usar substâncias do tipo, então ela não era inocente no assunto. Felipe estava chapado e talvez por isso estivesse ali, tocando-a com gentileza ao invés de rechaçando-a como costumava fazer. Tal constatação fez seu coração doer e uma melancolia profunda a envolveu.
Já tinha ouvido histórias sobre ele. Aparentemente, depois de um tempo limpo, ele havia recaído. Talvez outros não tivessem notado, mas ela percebeu. Ela não tinha informação se ele chegava a ser um adicto ou só transitava entre o entretenimento e a fuga, mas a constatação de que um homem desses, tão capaz e talentoso precisava recorrer a subterfúgios como drogas, deixou-a desolada.
— Eu preciso entrar. Boa noite, senhor Felipe.
Quando se afastou do toque e girou o corpo, sentiu que ele segurava uma mecha do seu cabelo, que escorregou por entre os longos dedos até as pontas. Consternada pelo misto de sensações, ela destrancou a porta e, antes de fechar, viu Felipe recolocando o capacete e subindo na moto. Segundos depois, o som da aceleração da Kawasaki Z800 quebrou o silêncio do bairro e desapareceu na noite.
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