1 - Desembarque
Nervosa, uma jovem aguardava o despache de sua bagagem ao lado do ônibus de viagem. O auxiliar da rodoviária parecia mais preocupado com os seios de uma mulher que carregava uma criança de colo do que com as bagagens espalhadas perto das poças de água. O ruído da chuva ecoava no vão abaixo das telhas que cobriam a área de desembarque, telhas essas que impediam a chuva de chegar à plataforma, mas não impedia que a água que escorria da lataria do ônibus molhasse as malas que iam sendo removidas displicentemente do compartimento de carga.
— Moço, por favor! Tenho que estar em 20 minutos na zona sul!
— Se queria chegar no horário, devia ter pegado outro ônibus! Estamos em São Paulo, e hoje, nem um milagre chamado "Metrô" vai te ajudar com esse temporal!
Ela suspirou e esfregou a nuca. Estava suada, ainda que seu cabelo estivesse preso num rabo de cavalo alto. Talvez já devesse ter telefonado para o escritório que agendara a entrevista para informar o atraso ou desistir da oportunidade de vaga.
Se bem que, se ela não comparecesse, sua desistência estaria implícita.
— Aquela ali, moço! A amarela! – exclamou para o homem de má vontade.
Aliviada, acompanhou enquanto o funcionário puxou sua pequena mala de viagem que, para sua consternação, estava úmida e manchada com alguma fuligem escura. Sem agradecer, arrancou a mala da mão do homem e correu para a escada rolante.
Apenas para a segunda etapa do seu martírio.
Ela não estava acostumada àquele tanto de gente competindo por espaço. Já tinha visto no noticiário como as estações do Metrô de São Paulo ficavam abarrotadas, mas estar no meio do empurra-empurra era bem diferente de ver pela TV. Estranhou o fato de ser ainda início de tarde, e mesmo assim ter aquela multidão transitando pelas escadas e corredores. Imaginou quão pior seria se estivessem no horário de pico.
Provavelmente eu seria levada como num mosh...
Finalmente, conseguiu embarcar no terceiro trem que parou na plataforma de embarque. "Conseguir" não era bem a palavra, já que ela não teve escolha e foi praticamente carregada para dentro do vagão, e esmagada entre corpos dos mais diferentes formatos, tamanhos, cheiros e gêneros.
Foi a coisa mais assustadora que viveu desde que chegou à cidade, e só fazia dez minutos desde que desembarcara na rodoviária.
Ela engoliu o medo e procurou manter a mente limpa. Isso não era nada comparado ao terror imensurável que vivenciara enquanto morava naquela pequena cidade cheia de mato, nos cafundós do interior. Por essas e outras, não seria tão facilmente abalada, nem por um mar de gente que disputava vinte centímetros quadrados dentro de um trem.
— Desculpa... — falou para uma senhora que usava um lenço no cabelo, a quem tinha acabado de empurrar sem querer, justamente porque o passageiro às suas costas estava muito interessando em encontrar um apoio confortável para o seu volume nas calças. A mulher olhou feio para ela, depois para a mala que ela carregava.
— Detesto muambeiro!
Ela não entendeu o que a mulher quis dizer. Fez uma nota mental para procurar o significado da ofensa no Google, mais tarde.
Depois de receber massagens e apertões para lá de inconvenientes por longos minutos, desembarcou na estação Vila Mariana e praticamente correu pela plataforma até as escadas. A estação era um pouco mais vazia em relação ao Terminal Tietê, permitindo que se locomovesse com mais facilidade.
Após algumas curvas, pedidos de informação e mudanças de rota, ela finalmente desembarcou do lado certo da Avenida Lins de Vasconcelos, onde a chuva ainda caía, porém, modestamente. Caminhou apressada pelas calçadas encharcadas, e correu basicamente por três minutos debaixo da chuva até finalmente encontrar o prédio que procurava.
O enorme edifício era coberto de vidro em toda a sua extensão, e intimidava tanto pela altura quanto pelo luxo aparente. Ela nunca tinha visto um prédio tão alto de perto.
Sem se deixar intimidar, ela correu até a recepção e se achegou a um balcão em mármore. Por trás de dois atendentes uniformizados, havia um painel luminoso com o nome das diversas empresas que ocupavam o centro comercial. Ela passou os olhos até ter certeza de que estava no lugar certo.
— Boa tarde — dirigiu-se a um dos recepcionistas, um senhor negro de sorriso simpático —, eu tenho uma entrevista marcada na Agência Limonada.
— Boa tarde, senhorita...?
— Gabriela. Gabriela Telles.
O homem levou o interfone ao ouvido e falou por alguns segundos, depois colocou o aparelho no gancho e a encarou com aparente constrangimento.
— Senhora Gabriela, fui informado de que as entrevistas já se encerraram.
No mesmo instante, ela sentiu os olhos cheios de água, e não era da chuva. Olhou a tela do celular e constatou estar apenas 15 minutos atrasada.
— Moço... eu vim de tão longe! Será que não posso ao menos conversar com alguém?
O atendente pareceu compadecido de sua situação, mas era claro que ele não podia fazer nada a respeito.
— Sinto muito, eu não sei como ajudar. Não posso permitir que suba sem que seja autorizada.
Gabriela fitou o saguão. Algumas pessoas transitavam por ali, absortas em pensamentos e afazeres. Ela não queria perder o controle na frente de ninguém e, ainda que desejasse arrancar os cabelos e depois deitar-se em posição fetal para se esvair em pranto até derreter, ela precisava manter a compostura.
— Certo. Será que eu poderia ao menos usar um banheiro?
O atendente indicou um pequeno corredor próximo às catracas de acesso aos elevadores. Ela dirigiu-se para lá, adentrou uma das cabines e sentou-se na tampa do vaso sanitário.
— Não perca o controle. Inspira, expira, não pira! Não é o fim do mundo, certo? Não é como se você fosse morrer por ter viajado oito horas para chegar numa cidade desse tamanho onde você não conhece absolutamente ninguém, e ainda por cima perder a oportunidade de uma entrevista porque se atrasou por apenas 15 minutos — murmurou consigo mesma.
Sabendo que não adiantaria ficar remoendo o drama, resolveu deixar a cabine. Não queria se demorar ali, precisava decidir o que fazer a partir de agora, já que a única oportunidade de emprego que surgira tão rápido quanto ela precisava acabara de se esvanecer.
Aproximou-se da pia e jogou uma água no rosto. Só quando viu o próprio reflexo, se deu conta do quanto estava ridícula.
Sua camiseta branca com a frase estampada "If You love me, just go away!" estava molhada e completamente amarrotada. O delineado que havia feito numa das paradas do ônibus estava borrado e as manchas enfatizavam suas olheiras. O cabelo loiro escapava do rabo de cavalo, e os fios soltos e úmidos grudavam na nuca e na testa. Isso sem contar os olhos vermelhos e o nariz inchado pelo choro contido.
—Você tá horrorosa! — declarou para o próprio reflexo. — Ainda bem que perdeu a entrevista. Foi melhor do que a humilhação de rirem da sua cara!
Um instante depois, a porta de uma das cabines se abriu e um homem a fitou através do espelho; ele ergueu as sobrancelhas, como se estivesse surpreso com a visão, mas logo desviou o olhar. Trajava jeans e camisa polo branca, e terminava de remover uma jaqueta toda preta, uma espécie de capa para motoqueiros. Aturdida em vê-lo no mesmo banheiro que ocupava, ela deu um salto para longe dele.
— Não é pra tanto — o homem troçou —, um pouco desalinhada, talvez, mas eu não a classificaria como horrorosa.
— Meu Deus... Eu entrei no banheiro masculino ou você está no feminino?
— Neenh! Relaxa. É unissex. Isso é bem comum por essas bandas. Não deve estar acostumada, já que não é daqui.
Gabriela deu espaço ao homem que se aproximava do lavatório. Ele colocou sobre o mármore da pia a veste preta e um capacete ainda respingado de água. Enquanto ele higienizava as mãos, ela o espiava de soslaio, sem saber como reagir.
— Como sabe que não sou daqui? — balbuciou, compenetrada nas tatuagens que fechavam o braço do sujeito.
— Você acabou de falar, na da cabine do banheiro.
Envergonhada por ter sido pega falando sozinha, ela baixou os olhos. Seu rosto devia estar como um pimentão. Ainda bem que não tinha feito nada além de falar com as paredes da cabine.
Como se isso fosse menos constrangedor do que o ruído de xixi caindo na água, ou coisa pior.
— Bem... Com licença... — Deu as costas para o homem, e já estava saindo quando ele a chamou.
— Ei! Espera. É sério que não conhece ninguém na cidade?
— Não conheço... — respondeu, um pouco ansiosa com a presença do desconhecido, mas com alguma expectativa. Talvez ele a ajudasse de alguma forma, talvez ele conhecesse alguém. Com um fiapo de esperança, estendeu a mão para ele. — Meu nome é Gabriela, mas todos me chamam de Gabi.
— Todos os que você não conhece? — ele ironizou. Havia algo na forma como ele a encarava. Era como se os olhos cinzentos a escaneassem, como se soubessem quem ela era.
— Bem... — Agora ela tinha certeza de que se parecia com um tomate. Sua mão estendida para o homem ficou abandonada no ar, até que ela a recolheu e cruzou os braços, sem graça. — Era como me chamavam na minha cidade. Aqui, realmente não conheço ninguém...
— Certo. Só um conselho: não saia por aí se apresentando para qualquer um. Tem muita gente mal-intencionada nessa cidade.
Com isso, ele pegou o capacete e as vestes, e deixou o banheiro. Embaraçada, Gabi saiu logo depois e viu o desconhecido conversando com o atendente que havia lhe indicado o banheiro. Por um instante, observou as costas do homem que acabara de lhe dar um conselho útil e um vácuo fenomenal.
Ele era alto, e seu cabelo castanho e caótico estava parcialmente úmido. A franja crescida cobria a testa como se tivesse sido amassada pelo capacete. A aparência do desconhecido era, ao mesmo tempo, impactante e desleixada.
Devia ser algum tipo de entregador. Ela ouvira falar que São Paulo tinha mais motoboys do que em qualquer outra parte do mundo. Se era mito ou verdade, ela já não sabia.
Resignada, pegou a mala, passou pela portaria e agradeceu o atendente, que não lhe deu atenção por estar de conversa com o tal motoqueiro. Cruzou as portas do prédio e pegou o celular para conferir as conversas de WhatsApp. Localizou um dos contatos e recuperou um endereço, depois abriu o aplicativo de transporte público para se informar de como chegar ao local indicado.
Minutos depois, estava novamente na estação do Metrô. Embarcou para saltar apenas uma estação depois, e após caminhar por alguns quarteirões, localizou finalmente a casa antiga cujo endereço tinha em mãos. Tocou a campainha e aguardou.
Uma senhora a recebeu e confirmou sua identidade, depois a escoltou por um corredor externo dentro do espaço compartilhado. Parou em frente à porta de número 7 e lhe entregou a chave.
— O pagamento é adiantado.
Gabi fez a transferência do valor correspondente a uma semana de hospedagem e adentrou o espaço, um pequeno cômodo com cama de solteiro, uma cômoda, uma pequena pia, fogão e geladeira bem velhos e um banheiro minúsculo anexo. Havia também duas cadeiras de plástico empilhadas num canto e, no banheiro, uma mesinha dobrável.
— Está ótimo. Muito obrigada.
— Para permanecer hospedada aqui, precisa obedecer às regras: 1) nada de visitas, de nenhum tipo, nem de parentes; 2) não pode entrar depois da meia-noite; 3) não pode sair antes das cinco da manhã; 4) retire o lixo só nos dias ímpares e coloque-o na caçamba fora da casa; 5) não faça barulho, ouça música, fume ou faça qualquer coisa que venha incomodar suas vizinhas. Se eu achar que você está atrapalhando a paz, não vou pensar duas vezes em te mandar sair.
Quanta simpatia e hospitalidade! Estou tocada!
— Fica tranquila, dona...
— Sofia.
— Dona Sofia. Não vou incomodar.
Com isso, Gabi finalmente fechou a porta. Tinha um cheiro estranho ali, meio rançoso, impregnado principalmente no colchão e nas paredes perto do fogão. Havia limo no banheiro e a mesa dobrável, bem como a geladeira, estavam parcialmente enferrujadas.
Mesmo assim, ela ficou feliz, ainda que preocupada. Seus planos de conseguir o emprego foram frustrados, mas ela sairia bem cedo no dia seguinte para procurar outra oportunidade. Por pior que parecesse, aquele espaço era o paraíso perto de onde ela havia saído.
— Vou dar um jeito em você, minha pequena bolha — falou para as paredes, então começou a desfazer a mala.
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