Capitulo Vinte - Marcos
Anteriormente em 'Desde agora e para sempre': Marcos reencontrou parte de sua família e em meio a tantos momentos e conversas emocionantes, começou a aceitar a perda do pai. Mas será que ele está realmente preparado pra dizer adeus?
(Capitulo novo toda quarta-feira)
Boa leitura :D
11 de abril de 2032.
Acordo antes das sete com um pouco de torcicolo e vou até a cozinha preparar algo para comer. Abro a geladeira de porta dupla e me deparo com um paraíso de condimentos, nem lembro a última vez que minha geladeira esteve cheia desse jeito.
Após alguns minutos tentando decidir, resolvo fazer uma das minhas coisas favoritas: misto de queijo e geleia de morango.
Faço a refeição olhando os fundos da casa através da porta vazada. Os passarinhos se empoleiram na pequena fonte próxima ao muro; libélulas voam baixo, aproveitando a água parada da piscina; corujas piam, anunciando a passagem da madrugada para a manhã.
As mesas e as cadeiras ainda estão no deck, e pensar que terei que suportar todas aquelas pessoas hoje novamente, durante e depois do enterro.
Começo a mexer no celular, até que por volta das oito horas, Rita chega.
- Bom dia.
- Bom dia. – respondo.
A mulher rechonchuda e de baixa estatura sorri e passa por mim. Minutos depois retorna vestida com seu uniforme. Gente rica e seus costumes bobos.
- Já comeu?
- Sim. – digo. – Mas um cafezinho cairia bem.
- Certo. – fala de forma gentil.
No momento que ela coa o líquido, sua família me vem à mente. Nunca conheci o marido de Rita e tive pouco contato com seus filhos, os quais devem ter mais ou menos minha idade atualmente.
- Como estão seus filhos?
- Antônio está trabalhando, mas não sai lá de casa; Mariellen está fazendo doutorado; e Lucas se casou recentemente e sumiu, mas tenho certeza que a mulher dele é a responsável por isso.
- Como pode ter tanta certeza?
- A garota nunca gostou de mim. – fala de forma ríspida.
Lanço-lhe um olhar incrédulo. Ela serve uma xícara de café, colocando o açucareiro ao meu lado.
- Noras e sogras: a guerra eterna.
Ri brevemente.
Minha mãe nunca se deu cem por cento bem com Aline, os olhares e gestos eram constantemente percebidos por mim, mesmo que as duas não admitissem. Fátima sempre buscou respeitar minha decisão, mas no fundo sei que pensava que o fato de estar junto com minha ex-esposa de alguma forma "sujava" a imagem da família. Se fosse por ela, estaria casado com alguma riquinha herdeira por aí.
Passo em casa para tomar banho e vestir algo mais apropriado para a cerimônia mais tarde.
A água molha meu cabelo, escorrendo pelo pescoço e seguindo pelas costas. Aproveito a massagem natural que estou recebendo e tento me preencher de pensamentos positivos, mas a tensão que sinto é quase palpável. Decido apelar para a última coisa que sei que vai me acalmar: masturbação.
Coloco uma calça jeans e uma camisa polo, ambas pretas, e pego a jaqueta de couro, caso faça frio.
De volta à casa da minha mãe, todos se aprontam para o velório que começará daqui a aproximadamente uma hora. Sento no sofá, fazendo companhia a tio Dionides. Checo o instagram e depois o whattalk, vendo uma mensagem não respondida de Caio:
CABEÇÃO: Vamos no barzinho hoje a noite? É meu dia de folga e a patroa liberou.
Penso no que responder, será que só nego o convite ou conto logo o que está acontecendo?
- Ele teria odiado tudo isso. – meu tio quebra o silêncio.
- O quê?
- Essa bobeira de velório, Tom não ia querer um monte de gente chorando ao redor do corpo dele.
Pondero suas palavras. Meu pai realmente sempre foi um homem alegre, capaz de encontrar solução pro maior dos problemas.
- Ele iria querer uma festa, estilo dia dos mortos no México. E com certeza iria querer que enchêssemos a cara de uísque. – fala de forma descontraída.
Suas palavras me arrancam um sorriso, mas também despertam a curiosidade:
- Como ele era antes da minha mãe, da empresa?
- Do mesmo jeito, talvez menos estressado.
- Sempre tive interesse em saber, mas ele nunca contou como era sua vida antes.
- E tinha motivos para isso. – respira fundo, olhando para baixo. – Nosso pai sempre se preocupou mais em ser empresário do que cuidar e dar atenção aos filhos. As únicas vezes que se dirigia a nós era para xingar, por algo que havíamos feito de errado ou nos bater, quando chegada em casa bêbado.
Fico atônito perante sua fala.
- Nossa mãe era calma demais para ir contra suas ordens, ou seja, ele mandava, ela obedecia. – acena negativamente com a cabeça, provavelmente lembrando do acontecido. – Estudamos em um internato dos dez aos quinze anos, e constantemente éramos os únicos a não receber visitas. Fugimos tanto que um dia nos expulsaram, e nesse dia, fui parar no hospital com um braço quebrado.
Ouço, com certo pesar.
- Então aguentamos os abusos até que Tom completou dezoito, e nos mudamos, contra a vontade dos meus pais, claro. Mas a partir daí nossa vida se transformou completamente, e acabamos por confirmar o que já sabíamos: nesse mundo, só tínhamos um ao outro.
Percebo sua emoção perante o relato. Aproximo-me, passando o braço por seu ombro e o puxando para mais perto.
- Sei que Tom deixou a desejar em vários aspectos em relação a você e Bia, mas não fique com raiva dele. Todos cometemos erros, até eu já tive meus momentos de pai merda.
- Não se preocupe, não estou.
Abre um sorriso.
- Acho que faz parte do ciclo da paternidade. Meu pai cometeu seus pecados, Tom e eu cometemos os nossos, você cometerá os seus, e assim continuará até que alguém tenha a infância perfeita.
Reflito. Mas em uma coisa ele está errado, já cometi muitos pecados nos últimos dez anos, dos quais sofro as consequências até hoje.
Quando minha família e eu chegamos ao cemitério do Campo Santo, nos deparamos com um grande grupo de pessoas. Entre elas estão meus primos e seus respectivos cônjuges, funcionários da fábrica, acionistas, e amigos de Tomás. Passo alguns minutos olhando ao redor, o local parece um labirinto de tão grande.
É uma tarde de sol, o vento agita as poucas árvores próximas às milhares de lápides e o céu está limpo. Há uma grande quantidade de coroas de flores dos lados da larga sepultura onde está escrito o nome do meu pai, sua data de nascimento e de morte.
Não demora até que praticamente uma fila se forme e as pessoas se aproximem para prestar suas condolências.
Quando o caixão finalmente chega, todos abrem espaço para os funcionários do local, os quais encaixam o objeto em mecanismos ligados a roldanas. Sinto um aperto no peito.
O padre, que já estava no local e foi um dos primeiros a nos cumprimentar começa a cerimônia:
- Estamos aqui nesse dia para honrar a memória de Tomás Bragança Ferreira. Muitos pensam que a morte é só um adeus, mas acredito que a é uma transição desse plano para algo além de nossa compreensão.
Suspiro pesadamente, com os olhos fixados na urna de madeira.
- Esse é um momento de tristeza, pois creio que Tomás fez parte da vida de todos aqui presentes, deixando na mente de cada um a marca que fazia dele um ser único, como Deus o criou. Mas também esse pode ser um momento de paz, onde a alma desse homem tem a chance de se elevar até o reino dos céus, passando a observar e zelar por seus entes queridos.
Ouço fungadas e lamentações ao redor. Dionides chora muito, sendo amparado por Leticia.
- Peço que fechem os olhos e orem comigo para que Tomás possa seguir seu caminho naturalmente.
Todos obedecem, menos eu. Não consigo tirar os olhos do caixão. A dor "corrói" meu peito e sinto dificuldade de respirar.
- Pai nosso que estás no céu, santificado seja o teu nome, venha a nós o vosso reino... – as pessoas repetem em uníssono.
Enquanto rezam, não paro de visualizar os momentos com meu pai: as brincadeiras na infância, sua forma particular de demonstrar amor e carinho; a preocupação no bem estar meu e de Bia; a generosidade e todas as oportunidades que proporcionou ao me acolher como seu filho. Os olhos lacrimejam.
Ao final, dois líderes da umbanda, religião a qual papai pertencia, prestam suas homenagens com incensários e cânticos, que alguns acompanham fazendo coro. A fumaça distribuída sobre o caixão perfuma o ambiente à medida que funcionários do cemitério abaixam o objeto manualmente, através das roldanas.
Pela primeira vez percebo a gravidade da situação. Meu pai está morto. Nunca mais poderei abraçá-lo, conversar com ele, ouvir suas risadas ou suas piadas sem graça. É nesse momento que o desespero toma conta. Começo a chorar, abaixando a cabeça. Sinto as pernas fraquejarem e agacho ao lado da lápide.
- Não... não vai, por favor.
É como se algo tivesse destravado dentro de mim. Apesar de estar rodeado de pessoas, me sinto só, indefeso.
- Pai... – a voz sai falhada, devido ao grande fluxo de lágrimas e a respiração pesada.
Sinto uma mão sobre meu ombro, trazendo consolo. A pessoa se aproxima, beija o rosto e me envolve em seus braços. Olho de relance para o lado, encontrando cabelos loiros.
Inclino-me para frente e as lágrimas caem no interior da lápide. Meu desejo é impedir que continuassem, que não desaparecessem com o corpo do meu pai sob a terra, mas eles fazem do mesmo jeito.
Sou afastado da borda por Bia, e assisto a cena, impotente.
Ao retornarmos para casa, minha mãe pede quase uma tonelada de comida japonesa para os convidados, nunca vou entender a necessidade das pessoas em comer depois de enterros.
Ainda me sinto abalado, mas mais calmo do que antes.
Para alguns o clima ainda é de melancolia. Dionides foi levado ao quarto e provavelmente está dormindo. Para outros, é como se estivessem em um coquetel, posso ouvir até risadas e piadinhas.
- Marcos! – ouço uma voz masculina.
Quando viro, vejo Afonso, um dos maiores acionistas da empresa.
- Oi, Afonso.
- Meus pêsames. – ele me abraça.
- Obrigado.
- Seu pai fará muita falta. Não consigo imaginar aquela empresa sem ele.
- Depois da aposentadoria meu pai não costumava ir muito à empresa. – ressalto.
Levanta a sobrancelha um pouco surpreso com a resposta. É nesse momento que percebo que sua cordialidade e camaradagem podem não passar de bajulação, afinal, minha irmã e eu somos os herdeiros dos negócios, visto que Fátima não mais se interessa em assuntos corporativos.
- Claro, mas ele era a alma daquele lugar. – sorri.
- Tenho certeza que Bia cuidará de tudo muito bem.
- É, ela cuidará.
Um silêncio constrangedor cai sobre nós, o abraço novamente e invento que tenho que resolver alguma coisa com minha mãe.
Ao checar o celular para ver as horas, vejo a mensagem de Caio, havia me esquecido completamente dela. Escrevo e reescrevo a resposta várias vezes, decidindo ir pelo caminho mais simples. Enquanto digito, percebo que ele está online.
MARCOS: Ñ posso.
Demora alguns segundos até que responda.
CABEÇÃO: Pq?
MARCOS: Meu pai morreu e estou com um pessoal aqui na casa da minha mãe.
Mais algum tempo de espera.
CABEÇÃO: Putz, cara, meus pêsames.
MARCOS: vlw.
CABEÇÃO: Quer que eu vá pra aí?
MARCOS: Ñ precisa.
CABEÇÃO: Certeza?
MARCOS: Sim.
CABEÇÃO: Passo na sua casa amanhã antes de ir pro trabalho, então.
MARCOS: Ok.
CABEÇÃO: Já falou com o Nick?
MARCOS: Ñ, depois eu falo.
CABEÇÃO: Certo. Qualquer coisa é só chamar.
MARCOS: Ok.
Nos despedimos e guardo o aparelho.
Passo o restante da tarde cumprimentando pessoas e gastando saliva em conversas nem um pouco interessantes. Fico aliviado quando o último deles vai embora, por volta das oito horas da noite.
Na cozinha, me deparo com uma pilha colossal de bandejas copos e pratos nas pias. Imaginando o trabalho que Rita terá no dia seguinte, resolvo lavar pelo menos metade.
- O que está fazendo? – ouço a voz de Bia.
- Diminuindo a bagunça.
- Deixe aí, Rita e Lorena cuidam disso amanhã.
- Elas trabalham aqui, não são escravas. – repreendo.
- Sabe que não foi o que quis dizer.
Dou de ombros continuando o serviço.
- Pelo menos me faça companhia numa dose.
Viro e a vejo segurando uma garrafa de uísque. Apesar das diferenças e atritos, a cumplicidade sempre reinou entre nós.
- Ok. - abro meio sorriso.
Ela nos serve.
- Fico feliz que decidiu passar esses dias aqui, estava com saudades. - a voz cheia de saudosismo.
- Também, irmãzona. - tento apertar a bochecha direita, mas ela desvia.
- Ao papai. - levanta o copo.
- Ao papai. – faço o mesmo, e viramos o conteúdo.
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Obrigado por ler. Até o próximo. Beijos e abraços <3
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