Capítulo 26 - Enne
Enne
Meu coração pulou uma batida, ou três, não saberia dizer. Levei os dedos ao meu rosto úmido, e os coloquei bem diante de meu rosto. Pisquei forte para desembaçar a vista e senti minha expressão mudar para surpresa ao constatar que o líquido era transparente. Lágrimas, somente lágrimas, não sangue, como esperava. Quando começara a chorar?
Os sons, que pareceram se esticar com o tempo nos últimos instantes, voltaram a se estreitar e se fazer ouvir. O barulho de engasgo, de osso batendo com força na pedra, de morte. Se eu fosse como Leo estaria devaneando sobre o som da morte, aquele mesmo que ouvira tantas e tantas vezes nos últimos dias. Perguntei-me, por um momento, se ele perdera as contas de quantas vidas tirara, ao mesmo tempo em que tinha certeza que não, Leo jamais perderia a conta, estava em sua programação.
Só então permiti que o ar engolfasse meus pulmões. O sangue esvaía do pescoço daquele que devia ser o escolhido, o sobrevivente, aquele a quem Physis esperava que fosse dado um nome, aquele em que a resistência apostara as fichas nas últimas duas décadas. O quão despropositada poderia ser a líder da resistência? Apostar todas as suas fichas em um cadáver, enquanto tinha outro Ninguém perfeitamente adequado para o posto, agonizando dez passos adiante.
Podia ter corrido, mas não confiei nos meus membros inferiores. Andei com um soluço preso no peito, a incerteza das próximas horas se assomando sobre mim.
Ajoelhei em tempo de impedir que a cabeça de Leo atingisse o chão. Segurei-o pelo tronco, deitando sua cabeça delicadamente em minhas pernas. De bruços como ele estava, não conseguia ver seus olhos, os olhos com mais vida e questionamentos que, tinha certeza, um dia iria ver, redondos, assustados, vorazes, gentis. Os olhos de Alguém.
Tateei o pescoço dele para ter certeza que o pingente estava lá. Redondo, aquecido pelo contato de sua pele. Sim, estava bem onde devia estar.
— Tenho um segredo para lhe contar — sussurrei entredentes, enquanto ouvia o ruído de sua respiração ficar mais e mais pesado, o espaço entre uma engolfada de ar e outra mais curto. — Você não poderá se chamar Leopardo. Nomes... nomes são símbolos de quem somos. É mais do que uma descrição, é mais do que uma comparação. É tudo aquilo que poderemos ser. São todas as possibilidades, responsabilidades, segredos, história... Talvez por isso não recebamos um nome no princípio.
Senti meus olhos marejarem novamente. Uma gota caiu em minha mão e só então percebi que acariciava sua cabeça. Uma pequena cicatriz embaixo do lóbulo da orelha, outra em sua nuca, marcas de alguns dos procedimentos a que fora submetido. Que existência cruel a desse mundo.
Sua respiração começou a se acalmar em meu colo, o sangue se espalhando no chão, o ruído e o silêncio, a súbita quietude da morte. Um ruído gutural escapou de minha garganta, meu rosto deformado em uma carranca. Afastei com cuidado sua cabeça e a deitei no chão com leveza.
Agora era a minha vez de não ser morta.
Tempestade. Leo disse uma vez que esse nome me caberia bem. Talvez estivesse certo. Como uma tormenta, recolhi aquilo que me prestaria. O mundo estava acabando, e eu precisava cumprir o meu papel nele adequadamente.
Acionei minha roupa, apenas quatro delas eram colocadas na arena, duas estavam ali, esperava que os outros que a encontraram, se encontraram, estivessem sido mortos no caminho. Pendurei um conjunto de granadas na bandoleira, outras, de fumaça, no cinto. Os fuzis com pente estendido estavam devidamente carregados, tomei energéticos e me apliquei adrenalina em adesivos de lenta absorção. Esse cálculo eu sabia fazer, a quantidade exata para aumentar meus sentidos sem fazer meu coração parar.
Por último, retirei os óculos de visão de vida de Ninguém. Não era justo, eu sabia. Conseguiria localizar cada um dos homo sapiens restantes, mas o que era justo naquela existência, afinal?
Leo tinha escolhido seu acampamento muito, muito bem. Tanto que eu havia levado grande parte da noite e do dia para encontrá-lo, mesmo sabendo aproximadamente onde estava. Era uma pena ter que deixar aquela segurança para trás.
Não olhei uma última vez para nenhum dos corpos sem vida que deixava ali, embora quisesse, embora sentisse que devesse. Acionei a roupa, coloquei os óculos e corri.
Corri tanto quanto o trajeto traiçoeiro permitia, corri para a morte como se minha vida dependesse disso. Senti o impulso de energia percorrer meu corpo, o impacto de cada passada, o vento e os galhos que estavam na altura do meu rosto arranhando a pele, o cheiro de vegetação e terra e umidade e fumaça, o cheiro doce de morte que chegava mais e mais em suas narinas, conforme descia a montanha.
A barreira, como eu sabia estar programada, tinha menos de quinze horas para deixar os últimos sobreviventes em uma área de cem metros quadrados. Felizmente eu era muito boa em combate de curta distância.
Eu conseguia vê-los se aproximando, se aglomerando, enquanto eu descia sem me preocupar com as pegadas, com os rastros, com o som. Os corpos delineados em azul com um centro pulsante vermelho estavam todos distantes. Eram quinze, e então um som de bomba e eram quatorze.
Quantos teriam sido no início? Cem? Duzentos? Não saberia dizer. Será que Leo saberia? Devia ter perguntado.
O tempo parecia distorcido quando finalmente cheguei na base que separava o início da elevação para o vale. O coração batia forte em meus ouvidos, minha boca estava seca e eu via sombras de cores se apagando. Os joelhos dobrados atrás de um grosso tronco de árvore, que me ocultava com os arbustos altos característicos daquela área, como a informação que tínhamos, o melhor local para se estar naquele momento.
Eu era o plano B, a contingência, a guarda-costas, a médica. Não fui regada por Physis para ser o Alguém que eles precisavam, mas o Alguém acidental que vez ou outra sobrevivia. Eu era a única opção agora.
Aproximação pela direita. O fuzil automático e a mira de curta distância estavam preparados. O calor e a tremedeira nos meus dedos, puxei e controlei o cano com firmeza para que não subisse demais. Metade do cartucho e eram em dez. Os últimos dez.
O suor pingava em meu rosto, misturado com sangue de Leo e a poeira do caminho, dos dias. Meus olhos me pregavam peças por causa da adrenalina, mas os óculos me mantinham atenta, eu sabia onde eles estavam, só precisava aproveitar os momentos certos, eles viriam até mim, a barreira os empurraria para aquele lugar. Sem escapatória. Era uma semente plantadas há mais de vinte anos, agora era hora de desabrochar, logo renderia frutos à resistência.
Os sons de aglomeravam ao meu redor, mesmo assim o mais alto era o das batidas do meu coração, parecia pulsar bem no meu ouvido.
Sentia que não conseguia inspirar ar suficiente e me sentia ofegante, mesmo sem motivo. Eu não estava pronta para aquilo, devia estar, mas não estava.
Queria poder contar. Saber exatamente quanto tempo havia se passado. Trinta minutos? Uma hora? Metade de um dia? A barreira deveria ser o meu relógio, a cada instante sua aproximação se acelerava, empurrando quem estivesse em seus limites para mais próximo de seu alcance.
Aquela energia estranha se condensava e eu me sentia mais e mais sufocada, era uma crise de ansiedade eu devia saber lidar com ela, mas a adrenalina que eu tomara não ajudava. Faltava pouco, muito pouco...
Uma granada bem diante de mim estourou e um estilhaço pegou na minha cabeça, fazendo um corte pequeno, mas do qual saía uma quantidade desproporcional de sangue. Os óculos emborrachados bem presos impediam que atrapalhasse a minha visão, mas ainda era incômodo.
Aquilo não veio de nenhum lugar próximo, o que significava que um deles tinha um lançador de granadas e sabia onde eu estava. Que bom, não é mesmo? Realmente um alívio.
Um grito feroz, feminino, mas gutural, veio de seu lado direito. Viu a garota correr com tudo o que tinha da barreira que se aproximava e ser engolida por ela, sem qualquer piedade, pela pressão que ela exercia. Eram em cinco.
Suspirei fundo, uma rajada curta acertou o tronco largo diante de mim, era uma provocação. Fiquei agachada, soltei três pinos de granadas e joguei com a força e rapidez que treinara mil vezes, sabia que não ia acertar, mas esperava forçar o provocador a sair de sua toca, acertá-lo bem no meio da testa e poder contar um a menos.
Infelizmente aquele que o óculos lhe mostrava ser o macho provocador, não caiu em sua armadilha, mas outro tentou se aproveitar da vantagem e adentrar um pouco mais o vale, buscando uma posição melhor.
Viu seu corpanzil se sacudir, enquanto os projéteis lhe acertavam, via de onde vinha os tiros, mas a fêmea que atirava estava fora de sua mira. O dedo preso em sua arma ainda fez com que uma rajada inteira marcasse o chão e então as árvores, descontroladamente, a poeira subindo no pôr-do-sol. O último pôr-do-sol daquele estágio. Seria o último que veria na vida?
Eram em quatro.
Imaginava a urgência dos outros. Ela tinha o óculos, poderia ver quando escurecesse, teria uma vantagem maior quanto mais demorasse para aquilo terminar, mas não os demais, pelo menos contava com isso. Podia ver o movimento de um deles, olhando para o oeste vez ou outra, as sombras se alongando, o breu surgindo.
Este estava fadado a morte, vi o desespero dele começar a agitar suas pernas. Sua precipitação era certa. Ele estava mais próximo do provocador. Imaginou que o outro aproveitaria a deixa, o momento perfeito para eu dar o bote, Coral, não é mesmo? Um dos nomes que bem me caberiam, havia dito Leo.
Vi o instante em que o apressado desistiu de esperar, lancei granadas de fumaça para o lado em que a outra fêmea estava e corri para o lado oposto, meus músculos reclamando pelo longo período que havia ficado estático, a falta de aquecimento cobrando seu preço.
Rolei os últimos dois metros, ficando perfeitamente posicionada, como esperava. Dois a menos.
Só restava uma morte, mais uma morte e seria Alguém.
Qual seria meu nome? Enne? O nome que não poderia ter, que guardaria para sempre. Provavelmente seria chamada de Cora, Cecília, Cibele, seu sobrenome seria Médici, Moura, Mattos, uma chefe médica, coordenaria uma legião de telas, talvez ficasse no espaço, talvez no subsolo, talvez coordenasse algum dos estágios.
Assumi a posição que antes era mantida pelo provocador. Ali estava o lançador de granadas. Ele tinha um colete à prova de balas melhor do que o meu e manoplas resistentes nas pernas, que tirei com esforço, enquanto tinha que lidar com seu peso morto.
Agora, era hora de caçar.
A fêmea não perdera a oportunidade de se mover com a agitação dos últimos minutos. Ela estava deitada de bruços, aproveitando a escuridão e se aproximando devagar, aproveitando o mato alto do vale. Ela contava que não poderia ser vista, enquanto o vento do início do inverno agitava o campo aberto.
Eu esperava que fosse mais difícil.
No movimento fluído que descobri que Leo apreciava, subi na rocha diante de mim e atirei.
A última fêmea morreu antes mesmo que o som da bala chegasse aos seus ouvidos.
Andei os metros que nos separavam, enquanto o silêncio me abraçava. Enquanto caminhava e me despia de todas as ferramentas de morte que me levaram até ali. O cinto, os fuzis, as granadas, as medicações.
O alívio de deixar tudo para trás, de, finalmente, poder começar.
Ser Alguém...
Descobriria agora o que isso realmente significava.
Esperava que ainda fosse Enne depois disso.
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