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ONZE - Trem de entrega

O céu tornou-se completamente vermelho com o crepúsculo, tingindo tudo o que tocava da mesma cor, e então lentamente, o vermelho foi se escurecendo aaté que a única luz iluminando o caminho do trem de entrega era o brilho das estrelas, cobertas parcialmente pelas nuvens.

Apesar de tudo o que acontecera, a proximidade com Raphael, que dormia silenciosamente do meu lado, era acolhedora. Eu tinha pego a primeira vigia, a escuridão não me incomodava, eu tinha aprendido a amá-la, e enxergar através de suas nuances, e então não reclamei quando o treinador nos proibira de iluminar o vagão, por segurança.

Perdi totalmente a noção do tempo em que fiquei ouvindo o barulho do vento, do ferro e do vapor, quando um leve tremor diferente do que o trem fazia desde que tínhamos saído da nova república me fez ficar alerta.

— Raphael. — Chamei baixinho, e ele logo estava sentado, escutando.

O barulho do trem ficou diferente, e senti uma leve desaceleração.

Pai. Chamei-o, do outro lado do vagão, pelo nosso link mental.

— Fiquem atentos. — Jase falou depois de acordar aqueles que o cercavam.

Novamente, uma sensação de abafamento chegou ao meu ouvido, quando Lorena fez uma bolha de som sobre nós.

— Obrigado, Lorena. — O treinador falou para a loira rabugenta. — Não pensei que nos alcançariam tão rápido...

Vi Jase franzir o cenho na escuridão, e o trem deu um solavanco, nos arremessando para as paredes de metal que teriam feito estrago, se não tivéssemos usado nossos escudos elementais.

— Merda. — Alguém cochichou antes do vagão ser jogado para fora dos trilhos.

Enquanto metal se retorcia e voava, rodopiando pelo campo do que provavelmente era uma fazenda, eu fui jogada para fora do vagão, e em segundos meu elemento me cercava, absorvendo o impacto da queda.

Quando a parede de metal de um dos vagões  se chocou contra o escudo, eu gritei, sentindo a pancada irradiar para meus músculos. Grunhi me levantando, tinha que ter a certeza de que todos estavam bem. Meu escudo permanecia firme, quando forcei meus pés a andarem.

A minha volta parecia um cenário de guerra. Enormes vagões amassados jogados sobre a plantação que começava a ser tomada pelo fogo. Fumaça negra e cinzas se espalhavam pelo lugar, deixando a visão ainda mais difícil.

Prendi a respiração, e tentei me concentrar. Minha respiração acelerada e a dor aguda deixavam a busca ainda mais difícil, e então o desespero que começava a se juntar esmagando meu peito, fez com que minha mente se abrisse de repente e eu pude sentir.

Dor. Medo. Raiva.

Merda. A voz de Felipa foi a primeira que veio a mim e a imagem de onde estava, logo apareceu em minha mente, assim como a dor paralisante em um dos dedos de sua mão.

Respirei aliviada, Felipa tinha quebrado o dedo, mas estava bem.

Filha!  Foi a vez da voz de Jase.

Estou bem, pensei, e continuei andando, procurando sinal que qualquer um. Minha habilidade secundária buscava a conexão com Raphael, sua mente era incrivelmente difícil de penetrar, algo muito impressionante para um manipulador de um elemento físico. Mesmo sabendo que raramente alguém deixaria sua mente vulnerável em uma situação dessa continuei procurando.  Tinha minhas maneiras de penetrar em escudos mentais.

Me aproximei do vagão, provavelmente pessoas estariam no outro lado. Tudo de repente pareceu ficar um pouco mais lento, e minha visão, embaçada. Um ruído alto, apareceu em minha audição, e a fumaça causada pelo fogo, tornou tudo ainda mais difícil. Pisquei algumas vezes tentando me livrar da lentidão em minha mente.

Pai. Chamei.

Filha! Um grito estrangulado me fez arregalar os olhos. 

Filha! Andei mais rápido, tentando alcançar a conexão escorregadia com Jase. Minha cabeça começou a latejar com o esforço. Segurar a conexão com Jase era como agarrar água com a mão.

Uma onda de sentimentos se chocou contra mim. Medo. Dor. Muita dor.

Quando finalmente atravessei o campo e contornei o vagão, o que vi me fez congelar. O treinador estava parado no meio do campo, sua perna ensanguentada, olhos vazios e apáticos. A poucos metros, Jase o encarava com receio, e confusão.

— Teria sido tão fácil se não tivesse interferido. —A voz rouca do treinador chegou a mim. —Tão fácil... Pensei que estaria exausto depois de tudo, a viagem em uma distancia tão longa, e tendo usado uma quantidade absurda de manipulação para escaparmos da mansão. E de alguma forma, você encontrou uma maneira, Jase. Encontrou uma maneira de impedir que o vagão fosse explodido em pedacinhos.

Minha escuridão se agitou. E meu estômago se revirou, pela náusea causada em virtude da quantidade de manipulação que já tinha usado.

— Mas agora finalmente chegou ao final, não é? — O Treinador continuou. — Posso ver isso em você.

Vi meu pai torcer os lábios.

— José... — Ele começou, entre fôlegos.

— O manipulador mais forte da nova república, sabe o que vou receber se conseguir te matar? E então levar sua filha para eles?

— O que eles tem de você? — Jase perguntou. — Podemos dar um jeito nisso. Tenho certeza que não faria isso se não tivessem o chantageando...

— É tão forte... Mas um tolo. Essa foi sempre sua grande fraqueza, Jase, confiar.

O ar ao nosso redor se tornou ligeiramente mais rápido, e eu dei um passo a frente, liberando a fumaça de meu elemento e escurecendo pouco a pouco nossa visão, ao ar livre, uma bolha de escuridão se formou.

— Ahh... A filhinha veio ao resgate...

Eu lutava para manter a manipulação no lugar, puxando cada vez mais poder de meu corpo cansado. Tudo doía, e podia sentir os grandes hematomas na extensão de meu tórax. O vagão atrás de mim explodiu, e eu fui lançada para frente. Meu elemento me envolveu, mas mesmo assim, senti a dor do impacto quando caí no chão.

Meu pai tinha se levantado, e usava o que restava de sua força para lutar com o treinador, mas ele parecia cansado demais. Me levantei rapidamente, com um grunhido, e corri em direção a eles, lançando várias bolas de escuridão que batiam quase sem efeito no escudo do treinador. José nem ao menos me olhava. Sua atenção concentrada em meu pai. Que parecia cada vez mais esgotado.

Meu coração batia rápido, e minha pressa me impedia me concentrar o suficiente para usar a luz. Eu tinha que ganhar algum tempo, pelo menos até que alguém conseguisse chegar até aqui. De todas as pessoas, nunca esperaria algo como aquilo do treinador, ele e meu pai era amigos desde a época das fronteiras.

Minhas esferas rodopiavam em torno do treinador, testando a força de seus escudos, quando finalmente desisti e usei o resto de minha força para utilizar a escuridão em sua forma mais forte. A névoa negra energizada tomou forma e avançou, como uma onda gigante e mortal, consumindo tudo que encontrava em seu caminho.

Quando Jase caiu no chão, lutando para respirar eu senti a raiva pulsar em minhas veias, fazendo a névoa avançar ainda mais rápido, minhas têmporas pulsando com a dor. A névoa estava a poucos centímetro do escudo de José quando ele explodiu em chamas, queimando e consumindo totalmente Jase que estava perto demais.

Minha escuridão destruiu o escudo de José, que gritou, eu assisti o corpo parcialmente queimado de meu pai cair no chão, em uma posição estranha com os olhos arregalados e sem vida.

Segundos se passaram até que minha mente absorveu o que tinha acabado de acontecer,  e quando os olhos de José encontraram os meus, meu sangue ferveu, algo dentro de mim pareceu quebrar, quebrar de uma forma irreparável.

Meu pai estava morto.

Todo meu auto controle desapareceu, consumido tudo, assim como meu pai tinha sido. Luz e Escuridão irromperam livres de dentro de mim, um poder forte demais para qualquer um controlar.

Meus olhos encontraram mais uma vez os de meu pai, vítreos. Lágrimas encorriam pelo meu rosto, poder emanando de mim  em ondas mortais. Gritei.




Joguei a bomba e fui embora.



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