II - Autoanálise
Gasto tanto tempo a descrever que não tenho tempo de experimentar.
Sento-me só na mesa do café com uma chávena fumegante e um pastel de nata delicioso, escrevo os meus sentimentos e não os vivo. Nem sequer saboreio o aroma forte da bebida negra, nem a doçura exemplar do bolo estaladiço. Prefiro descrevê-los na minha conta do Facebook, em publicações frenéticas, impulsivas, fanáticas, constantes, do que verdadeiramente entranhá-los na minha pessoa. O café e o bolo, como se não fossem meus, uma mera imagem de alguém que se projeta noutro personagem distante de mim.
O que importa é os outros. Eu sou meramente um veículo que transporta coisas para os outros verem e sentirem.
Mas por vezes paro e olho horrorizado para mim mesmo e vejo que não sou nada.
O veículo vai vazio. Sem memórias, sem alma, sem experiências.
Se pretendo saber onde estou e o que sou, navego alegremente, despreocupadamente pelas redes sociais. E sinto-me mais aliviado, arrisco afirmá-lo que me sinto feliz. Está lá o registo, a falsa propriedade da minha alma.
Uma contradição, verdadeiramente, pois eu não sinto nada.
Julgo que sinto, é o que é.
E com um suspiro, julgo ainda sentir outra coisa, mais ténue, mas precisa como um cinzel a cravar finamente uma linha num mármore duro, do qual não se pode fazer mais nada a não ser frisos desprovidos de graça.
Sinto-me gasto.
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