1. O declínio de Uheldig
Sejam bem vindos a Spokelsesby¹.
Antes de começar a ler está história você precisa saber algumas coisas fundamentais para sobreviver a ela. Primeiro, Spokelsesby não é uma cidade como as outras, por isso deve se certificar que seu carro está em perfeitas condições antes de viajar, para que não quebre por aqui. Segundo, é melhor deixar a vovó e os animais de estimação em casa, pois, não é fácil correr quando se está carregando um gato assustado ou uma senhora de camisola. O terceiro é não venha nos visitar se estiver procurando um lugar para passar três dias de completa tranquilidade, aqui até mesmo os corvos evitam durante uma viagem. Por último, e não menos importante - Na verdade, preste muita atenção, essa dica te fará ficar vivo por mais tempo - Não aceite o convite de estranhos para passar a noite em enormes quartos vitorianos.
Tenha uma boa viagem.
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A fatalidade e desventura fazem parte da minha família, é algo universalmente conhecido que se você nascer Uheldig², você estará amarrado a uma longa vida de azar, e é claro que posso provar: minha irmã, Onélia Uheldig está internada num sanatório desde a adolescência, meus pais morreram durante o sono sem nenhuma causa pré-existente, e eu Teresa Uheldig que me divido entre visitar um manicômio e um cemitério por mais vezes do que gostaria de admitir.
Passar as tardes numa sala cheia de loucos era um preço que eu pagava para poder ter momentos com minha irmã, ela não podia receber visitas em ambiente privado, eu odiava isso mesmo sabendo que ela poderia me atacar se ficássemos sozinhas. Onélia era esquizofrênica e vivia numa alucinação vívida, na qual ninguém era confiável e todos queriam matá-la. Ela é um grande pé no saco para os enfermeiros.
A visita de hoje foi rápida, os sinais de tempestade manifestaram-se ao longo de toda a semana, e apesar de todos os alertas que as rádios deram pensei que daria tempo de voltar para a cidade antes de começar o temporal. Eu obviamente estava errada.
Quando cheguei no carro, eu estava encharcada. As nuvens estavam pretas, escurecendo todo o céu em plena tarde. Tive que ligar os faróis até para sair do estacionamento. Não dava para ver um metro a frente, por isso dirigir havia se tornado uma tarefa quase impossível.
Liguei o rádio e a única estação funcionando era a gospel, e mesmo ao aumentar o volume o máximo possível, nada parou o irritante barulho das gotas caindo violentas contra o vidro e a lataria, era tão forte que parecia pronto para quebrar todo o meu velho carro; nunca diria isso em voz alta, mas eu dirigia uma grande lata velha.
Um relâmpago cruzou o céu escuro e iluminou tudo a minha frente por alguns segundos, o bastante para eu conseguir ler a grande placa de "Bem-vindo á Spokelsesby". Nunca havia passado por essa cidade antes, por isso estava segura de que havia errado algum caminho, o que me deixaria por mais tempo em baixo dessa tempestade que se formava.
A chuva despencou sobre o carro. A rádio se reduziu a estática, mas ainda consegui ouvir uma coisa. Aumentei o volume e entre os barulhos havia uma voz.
"Teresa, Teresa..." Ela cantava. "Estou vindo para você, não tem como escapar..."
Senti um frio na espinha, e não era por estar toda ensopada e sem agasalho, a voz era sombria e baixa, sussurrando meu nome como se a causasse dor. Desliguei a rádio e me concentrei em me manter com as quatro rodas na pista, tinha que ignorar aquilo, devia ser algo da minha cabeça.
Outro relâmpago partiu o céu, clareando a estrada e a sombra de uma pessoa que havia nela. Joguei o volante para o lado, eu iria bater na sombra no meio do asfalto. Pisei o freio e o carro deslizou facilmente pelo chão molhado e escorregadio, girando pela pista. Segurei o volante com toda a força que consegui. Deu três voltas na escuridão e parou, bati meu corpo na lateral do carro e sabia que amanhã amanheceria com um belo roxo na minha costela.
Mesmo com toda a água que caía do céu, ainda dava para ver a fumaça saindo do capô. Os faróis formavam um círculo pálido de luz ao redor da chuva, e não havia mais sombra em lado algum.
Saí cambaleando do carro direto para a chuva, não sabia o que fazer, mas tinha que tentar algo. Meu corpo ainda estava tenso pela derrapagem, e a adrenalina ainda pulsava em minhas veias. Olhei ao redor, tentando reconhecer algo naquela cidade desconhecida e tudo o que tinha era uma floresta de um lado, e uma enorme casa do outro.
As plantas mortas do jardim imundo daquela casa pareciam alegres pela água que receberiam. Poças de lamas se formaram e escorriam até a pista. Olhei para o alto, para aquela casa de madeira podre e pulei para trás.
Havia pessoas me olhando de volta.
Parado na porta da frente, um casal segurando uma criança me acenavam, chamando-me para entrar.
Sabe quando a sua mãe te ensina a não aceitar doce ou carona de estranhos? Bem, a minha nunca me falou nada sobre entrar na casa de pessoas desconhecidas em uma cidade totalmente deserta no início de uma tempestade.
Corri espalhando água e lama por toda a minha calça, apertando os braços e a pequena jaqueta jeans ensopada. O casal abriu espaço para que eu corresse para dentro, e depois que fui abraçada pelo calor, eles bateram à porta.
- Oh, sagrado Deus! - Disse a senhora, colocando a garotinha no chão, ao lado da poça que eu havia criado. - Venha, vamos te esquentar.
Tentei dizer um obrigada, mas minha boca estava ocupada demais tremendo para eu conseguir falar alguma coisa.
- Não devia estar lá fora com esse tempo. - O senhor disse, ranzinza e tive que me segurar para não revirar os olhos na frente dele, o que ele achava, que eu havia saído para dar um passeio no meio da chuva?
- Meu carro quebrou...
- Eu sei. - Ele me interrompeu. - Quase atropelou minha filha.
Franzi o cenho e olhei para a criança ao meu lado. Estava completamente seca, com cachos perfeitamente feitos e não tinha mais do que 4 anos, não era nada parecida com a sombra.
- Nossa outra filha. - A senhora disse, dando um sorriso e tentando amenizar o clima que estava se formando. - Ela está bem, não aconteceu nada. Vamos menina, vou te levar para a banheira.
- Meu nome é Teresa. - Me apresentei, enquanto era levada pelas escadas.
- Oh! - Ela deu um sorriso mínimo. - Igual a Santa Teresa de Jesus.
Acenei com a cabeça, nunca fui muito religiosa, muito menos para saber nomes de santos de cabeça. Esperei para que ela me dissesse seu nome, mas todo o caminho até o banheiro ela permaneceu calada. No silêncio do corredor, notei como a casa não condizia com o que se mostrava pelo lado de fora, era muito estilosa. Era antiga, mas devia ser uma das mais bonitas em alguma época.
Procurei ao redor algum sinal da garota da pista, mas nada ali mostrava que mais alguém morava na casa. Também não ousei perguntar, conversa fiada parecia não ser algo que eles gostavam de fazer.
Liguei a torneira da velha banheira de cerâmica e esperei sentada em cima do vaso, ainda tremendo pelo frio. Folhas e galhos se balançavam com ferocidade do outro lado da casa, os galhos das árvores batiam no vidro da janela fazendo-me saltar com cada batida. Dentro de um teto, o som da tempestade não parecia tão feroz.
Houve uma batida na porta e a senhora colocou sua cabeça para dentro.
- Trouxe uma toalha e roupas secas. - Falou, colocando-os em cima da pia.
- Obrigada. - Murmurei antes dela sair.
A banheira já estava cheia, e a água quente havia aquecido todo o ambiente. Tirei minhas roupas ensopadas e as joguei num canto e olhei o desastre que eu era no espelho. Maquiagem escorrida, cheia de lama e cheirando a cachorro molhado.
Suspirei, pronta para me virar e entrar na água, mas algo reteve minha atenção. Me olhei no espelho novamente, e por um milésimo de segundo eu achei que além do meu reflexo, também tinha o de outra garota.
Pisquei, assustada e a figura desapareceu. Devo estar imaginando coisas!
Afastei as cortinas ao redor da banheira e afundei meu pé na água e fui absorvida pelo calor, me senti no paraíso. Era como ser beijada por um anjo. Mergulhei dentro da banheira, por alguns segundos ficando totalmente submersa pela água, sendo consumida. Quando voltei para a superfície, o plástico da cortina florida estava me esperando para me sufocar.
Me debati, batendo minhas pernas contra a borda da cerâmica branca e tentando puxar o plástico para fora do meu rosto, buscando por ar. Quanto mais me debatia, mais forte a cortina me sufocava. Abri os olhos em desespero e através dos espaços transparentes entre uma flor e outra, pude ver claramente a silhueta de uma garota. Seus ombros inclinados para frente, mostrando como ela me asfixiava com o plástico.
Tentei alcança-la e bater-lhe com a mão, mas tudo acabou em seguida. A cortina caiu ao meu lado e voltei a respirar. Olhei para a porta e ela continuava trancada, assim como a janela; eu estava sozinha.
Me joguei para fora, derramando água por toda parte. Me sequei e vesti o mais rápido que pude, queria sair daquele banheiro o antes possível. Alguém havia tentado me matar, tenho certeza disso.
Do outro lado da porta, a pequena garotinha me esperava, quase caí em cima dela quando corri para fora. A menina com seus perfeitos cachos me olhava com um sorriso animado. Apesar do susto, eu a dei um sorriso parecido.
- Ela gosta de brincar com você. - Disse, solene e inocente.
Senti meu queixo cair e meus músculos tensionarem.
- De quem você está falando?
- Da garota que vive no espelho. - Respondeu baixinho. - Ela sai quando fica escuro. Eu a escuto brincar pelo corredor de noite.
Eu não tinha voz, não o suficiente para conseguir formular qualquer som conhecido. Nunca acreditei em fantasmas, mas já havia assistido filmes de terror o suficiente para acreditar no que uma criança diz.
- Ela gosta de cantar. - Ela continuou a falar.
- Florzinha! - A voz da senhora a chamou do andar de baixo. - Venha jantar!
"Florzinha" me deu um último sorriso e se virou para descer.
- Teresa, Teresa. - Ela cantarolou. - Estou vindo para você, não tem como escapar...
Eu preciso ir embora daqui!
Corri escada a baixo, correndo direto para a porta, mas um som me fez parar.
- Teresa! - A senhora estava na porta de uma das alas da casa. - Já coloquei um prato para você.
Tentei dar um sorriso, mas o único que consegui foi entortar a boca. Eu a acompanhei até a estilosa sala de jantar. Em pleno século XXI e aquela família ainda usava castiçais como fonte de energia, não tinha nenhuma coisa eletrônica lá dentro, e até mesmo meu celular parece ter evaporado assim que corri para dentro daquelas portas.
Me sentei ao lado da garotinha que balançava as pernas curtas demais para tocar o chão, e ela me estendeu a mão. Olhei para o lado e o senhor também estava com o braço estendido, era hora de orar.
- Pai nosso que estais no céu. - A senhora começou.
O senhor apertava a minha mão cada vez mais forte. A cada estrofe da oração a sua força aumentava contra meus dedos. Todos permaneciam de olhos fechados, mas eu não consegui confiar em mantê-los assim, sentia algo me observando.
A oração acabou e meus dedos se libertaram. Minha mão estava branca quando voltou para perto do meu corpo, e o senhor me deu um leve sorriso quando me viu massageando-a. A sopa era gosmenta e provavelmente de couve ou ervilha, ou qualquer outra coisa verde batida com água.
- Odeio comer sem música! - Disse a senhora e se levantou.
No canto da sala de jantar, ao lado de uma cabine com xícaras de porcelana, havia um gramofone antigo e nada brilhante. A senhora puxou de cima da cabine uma capa de disco empoeirada e a colocou para tocar.
O som do violino invadiu meus ouvidos. Era deprimente, assustadora... Quase hipnótica. E então, alguém começou a cantar.
- Teresa, Teresa... Estou vindo para você, não tem como escapar...
Saltei para fora da mesa e senti algo atrás de mim, como uma parede. Me virei e lá estava a sombra do meio da rua, a garota do espelho e que havia tentado me sufocar. Eu a encarei e tremi pelo que vi. Sua pele era cinza e pálida, cheia de veias saltantes e com olhos brancos; ela estava morta.
Quando assistidos filmes de terror, achamos que durante um ataque fantasma, seriamos capazes de reagir, mas não é assim na vida real. Fiquei paralisada, congelada e estática com minha boca aberta e olhos arregalados.
Ela era tão familiar.
A garota do espelho esticou os braços, as mãos grudadas no meu pescoço e me apertou. Tentei me debater e pedir ajuda, mas os três moradores da casa continuavam a comer ao som do horrível violino e dos meus gritos de socorro.
Me debati tentando me soltar, mas isso só a fez me atacar com mais força. A garota deu um sorriso mostrando seus dentes pobres e um segundo depois entendi por que ela estava feliz, eu estava perdendo a consciência.
É insano, estar consciente que estas perdendo a consciência, mas isso foi o suficiente para me fazer continuar a lutar por ar e vida. Eu me balancei e a empurrei para frente, batendo contra a dobra do seu braço para fazê-lo se mover. Se ela estava morta, não tinha como tentar faze-la sentir dor, era inútil e eu não tinha tempo para perder.
A garota cambaleou e me soltou, raivosa. Corri para a porta, não olhei para trás e nem sei como não fui pega, ela poderia aparecer na minha frente a qualquer momento, mas não o fez. Abri a porta e fui para fora, não tinha chuva, não tinha escuridão e as luzes de uma viatura policial piscavam ao lado do meu carro.
Talvez por isso ela não tenha me pego, talvez não pudesse aparecer para as outras pessoas. Não parei para questionar isso, apenas continuei correndo até ser pega pelos braços de um dos homens uniformizados.
- Estão tentando me matar. - Consegui sibilar e caí.
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Abri os olhos e fui atingida por uma claridade intensa. Minha boca estava seca e meu corpo doía como se eu tivesse levado uma grande surra. Mas não, eu apenas havia sido estrangulada duas vezes por uma pessoa morta, um fantasma de uma garota muito familiar.
Estiquei o braço e senti uma dor intensa. Havia uma agulha na minha veia conectada a um enorme saco de algum líquido transparente. A cama era desconfortável e tudo cheirava a álcool e pessoa doente. Eu estava no hospital.
- Você estava muito agitada, senhoria Uheldig. - A voz masculina tomou conta do quarto e saltei. Se levantando de uma poltrona no canto, um homem me encarava. - Tiveram que seda-la. Sou detetive Primor e gostaria...
- Era um fantasma! - Disse, interrompendo-o. - Eu sei que parece loucura, mas é verdade, um fantasma tentou me matar. Primeiro foi na pista, fazendo meu carro parar de funcionar...
- Um Chevrolet azul? Placa BIT 9876. - Ele leu as anotações num caderninho.
Acenei, qual era a importância disso? Por que estava interrompendo meu testemunho para me perguntar do meu carro?
- O carro pertence à Dra. Samantha Giz, e foi roubado pela tarde de ontem no hospital Spokelsesby.
- Não, o carro é meu... - Suspirei com raiva. Da onde ele estava tirando aquelas idiotices? - Esse nome, é o da cidade maluca que tem uma casa com fantasma.
- Não existe nenhuma cidade chamada Spokelsesby, apenas um Manicômio em Oslo. - Ele me encarou esperando por alguma resposta, me encarava como se soubesse de algo e estivesse me testando.
Tentei me levantar, ficar sentada naquela cama desconfortável e fui impedida pela corrente de ferro no meu pulso, algemas. Eu estava algemada a cama! A balancei, ficando visivelmente alterada, por que eu estava presa?
- Se acalme, Onélia! - Disse o detetive, me fazendo parar e encara-lo.
- Meu nome é Teresa. - Falei, a voz me saiu mais baixa do que pretendia, mas tinha certeza de que havia sido escutada. - Onélia é minha irmã.
O detetive abriu um sorriso.
- Os registos da família Uheldig datam duas crianças, a filha mais velha chamada Onélia e a mais nova, Teresa que morreu na infância. - Ele puxou do caderno uma foto e a estendeu para mim. Era minha família, ele me apontou meus pais, depois minha irmã a chamando de "Teresa" e depois eu, dizendo "Onélia".
Não pude evitar dei uma risada.
- Não, essa é a Onélia, eu sou Teresa. - Afirmei. - E minha irmã não está morta, ela está internada.
- Você está internada no sanatório Spokelsesby desde seus 16 anos por assassinar sua irmã e seus pais. Ontem você matou sua colega de quarto. - Ela puxou outra foto e me mostrou. Era a garota do espelho! - Um enfermeiro e uma médica. - Mais duas fotos me foram entregues, e para meu espanto era o casal da casa. - E depois roubou o carro da doutora, o bateu contra uma árvore...
- Não! Derrapei na pista, a tempestade deixou o chão...
- Que tempestade? - O detetive perguntou. - Estamos em maio, as chuvas só começam em julho.
Aquilo já havia ido longe demais, ele estava negando toda a minha vida e história. Ontem teve uma tempestade, eu não assassinei ninguém e preciso sair dali o mais rápido possível.
- Não. Meu nome é Teresa Uheldig, e fui atacada por um fantasma! - Disse enquanto tentava me soltar das algemas. Não queria tira-la do meu braço, por que sei que é impossível, mas queria quebrar a parte na qual estava presa e correr, uma barra de ferro na parte de baixo da cama.
- Assista isso. - O detetive disse, ignorando minhas tentativas de me soltar. Ele me entregou um tablet e deu play em um vídeo em preto e branco, eram filmagens de uma câmera de segurança. A câmera do sanatório e nela estava eu com uma seringa na mão e banhada em sangue com dois corpos ao meu lado. Não podia ser, mas também não tinha como negar.
Meu nome é Onélia Uheldig e assassinei sete pessoas.
Esfaqueei meus pais quando dormiam, afoguei minha irmã na banheira, esmaguei o crânio da minha colega de quarto no espelho, injetei ar nas veias de um enfermeiro, furei a jugular de uma doutora com uma seringa e espanquei um detetive com a barra de ferro da cama do hospital.
¹ Spokelsesby significa "Cidade fantasma" em Norueguês.
² Uheldig significa "Azarado" em Norueguês.
Por Ana Roberta _VenusH
Avaliado por WannieCristine
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