Capítulo 3
(Ícaro)
A casa do Samuel é um sobrado, enfrente à praia.
Todos estão na extensa varanda do andar de cima, vendo o festival de fogos de artifício, comendo e comemorando mais um ano que se inicia.
Vim para a cozinha pegar mais um copo de Sprite e me deparo com Kaynon, que acaba de sair do banheiro social. Assinto com a cabeça e ele se aproxima.
— E aí? — "Cumprimenta".
— E aí. — Respondo. Ficamos nos encarando por alguns segundos. Sei que há algo estranho pairando no ar. E dentro de mim também. — Quer refrigerante? — Aponto para a garrafa de dois litros sobre a mesa. Kaynon nega com a cabeça, puxa uma das cadeiras e senta. Olho para a escada, para constatar que ninguém está descendo. — O que você quer com a Amanda, cara? — Pergunto, me impressionando comigo mesmo pela pergunta que fiz. Eu realmente queria perguntar isso?!
Ele franze as sobrancelhas por uns segundos e por fim enche um copo com refrigerante.
— Por que ela tinha que espalhar pra todo mundo?! — Questiona, e então sinto meu sangue ferver. É como um instinto protetor. Que estava dentro de mim e eu não havia descoberto. Não até agora, tendo a chance de esclarecer todas as coisas.
— Nós somos melhores amigos! — Falo entre os dentes.
— Pensei que a Sarah fosse sua melhor amiga!
Aperto os lábios e inspiro devagar. — Algum problema?
— Nenhum. — Responde, e passam-se mais alguns segundos em silêncio total.
— E então? — Pergunto.
— Então o quê?
Respiro fundo e solto o ar, fazendo um pequeno barulho com a boca. — Por que você tentou beijá-la?
Ele pensa um pouco. — Isso não deveria ser da sua conta!
— Mas é. — Ponho o copo novamente sobre a mesa. — Se você acha que pode vir do seu país de primeiro mundo achando que, por conta disso, você é melhor...
— Escuta, você quer chegar aonde?! — Me corta. — A questão aqui não era por que eu tentei beijar a Amanda?! Minha vida pessoal ou o país onde vivo não deveria fazer diferença alguma! A não ser que você seja um ignorante!
Respiro fundo novamente e cerro os punhos. — Você gosta dela!
Kaynon sorri e franze a testa. — Você gosta dela? — E consigo perceber a ironia em sua voz.
Analiso sua pergunta e penso no que responder, mas antes que eu tenha tempo para isso ouvimos Samantha descer as escadas.
— Vim pegar água. — Anuncia.
Apoio-me nos braços da cadeira à minha frente e levo as mãos à testa. Quando levanto a cabeça novamente Kaynon já está terminando de subir as escadas.
Olho para Samantha e percebo que ela já estava me encarando.
— O que houve aqui? — Suas sobrancelhas estão franzidas e consigo perceber a preocupação em sua voz.
Ignoro sua pergunta sentindo meus músculos ainda tensos, mas assim que dou uns passos em direção à sala, ela põe a mão direita em meu ombro e me faz parar.
— O que houve aqui, Ícaro?! — Sua voz é firme e cheia de uma autoridade que impressiona. Ela tem um jeito natural de manipular as pessoas.
Respiro fundo. — Não sei! — Respondo, então me solto da sua mão e ando em direção ao sofá.
— Não sabe?! Como assim "não sabe"?! — Samantha questiona assim que chega à sala, ficando à minha frente.
Fecho os olhos e tento me acalmar para não descontar nela todo o fluxo de emoções que se passa dentro de mim agora.
— Por favor, Samantha... — Começo, com os olhos fechados.
— Ai, meu Deus! — Ela senta ao meu lado e põe uma das mãos na minha perna. — O que aconteceu naquela cozinha, Ícaro?!
Abro os olhos e viro-me para ela. — Caramba, Samantha! — Exclamo e me levanto. — Como você é insistente!
Mas assim que me viro ela também levanta, põe as duas mãos sobre os meus ombros e me empurra contra a parede. — Sobre o que vocês estavam falando, Ícaro?! — Pergunta séria e compassadamente.
Franzo o cenho enquanto a encaro nos olhos, já sabendo que não vou poder escapar mesmo do seu interrogatório.
— Responde, Ícaro! — Pressiona, aumentando o volume na voz.
— O idiota do Kaynon tentou beijar a sua irmã, caramba! — Elevo finalmente o tom de voz e me desfaço outra vez das mãos de Samantha, mas me deparo com Amanda em pé no alto da escada, me encarando com os lábios entreabertos.
Solto um suspiro frustrado, balanço a cabeça e ando a passos largos em direção ao quintal, ouvindo as passadas rápidas de Amanda atrás de mim. Droga!
Quando chegamos ao quintal eu viro em sua direção e ela logo para à frente da porta, me encarando sem reação.
— Ícaro! — É o que diz, e então respira fundo. Está com as sobrancelhas franzidas.
— Eu não...
— Você brigou com o Kaynon?! — Ela pergunta, dá uma rápida olhada para trás e depois caminha até mim sobre o gramado.
Levo as mãos à cabeça e dou passos curtos de um lado para o outro. — Eu...
— Então você se preocupou com isso?! — Ela pergunta, e tenho certeza que consigo ver um fio de esperança em seu olhar.
— Olha, Amanda, eu só... — Tento explicar e espero que ela me corte outra vez, mas ela apenas fica em silêncio, escutando-me com toda a atenção possível. — Eu...
Franzo as sobrancelhas e percebo a confusão que se forma dentro de mim.
Minha mente não para de voltar ao episódio que aconteceu um ano atrás.
Estávamos no aniversário de 15 anos da Sarah. A festa já estava no final e eu tinha ido para o lado de fora já desatando o nó da minha gravata. Eram aproximadamente 3 horas da manhã e quase todos os convidados dançavam dentro do salão. Apenas nós dois estávamos fora.
Amanda estava com um vestido azul claro, e seu cabelo laranja ainda estava na altura dos seios, com as pontas enroladas.
"O que você está fazendo aqui fora, sozinha?" Perguntei, me aproximando. Ela estava em pé a alguns metros da piscina, com os braços cruzados. Quando ouviu minha voz, virou em minha direção e abriu um largo sorriso, movimentando o pescoço para trás.
"Estava planejando dar um pulo nessa piscina. Começar o ano com uma atitude radical!" E então sorriu novamente, já abaixando a coluna e descalçando os pés de seus saltos dourados.
"Nossa, que radical!" Exclamei com ironia e me aproximei, retirando a gravata que eu havia acabado de desatar e também o terno.
Quando viu que eu havia tirado o terno, ergueu as sobrancelhas e abriu um sorriso satisfeito. Tirou o par de brincos das orelhas, o colar e a pulseira do seu braço esquerdo. Sorri de volta para ela e tirei os sapatos, as meias e, por último, a camisa.
Amanda olhou para mim com os olhos arregalados e a boca aberta em formato de "O". Abri um meio sorriso malicioso e ergui as sobrancelhas.
"Está frio, Ícaro!" Ela exclamou, meio boba e sem reação.
Sorri novamente. "Não importa!" Então corri em direção à piscina e, antes de pular, a puxei comigo.
No instante seguinte sentimos o choque com a água extremamente gelada em nossos corpos. Quando nos erguemos para a superfície percebi que ainda estávamos de mãos dadas, e acabamos ficando frente a frente.
Eu não sentia nada por ela, mas naquele momento estávamos a apenas alguns centímetros de distância, ambos molhados na piscina, em um lugar lindo, com a música do salão ao fundo. Começamos a nos encarar por muito tempo, e o sorriso sumiu dos nossos lábios, deixando apenas um clima constrangedor entre nós.
Se fosse em um dos filmes que a Safira gostava de assistir, aquela seria a cena do beijo perfeito. E nenhum de nós tinha dado o primeiro beijo. Era mágico demais.
Mas como disse: eu não sentia nada por ela. Ou pelo menos até o momento em que nossos lábios se encontraram.
Eu segurei o seu rosto com as duas mãos e a aproximei devagar. Em nenhum momento ela hesitou, então apenas continuei. A puxei, e logo nossos lábios se colaram. Ela pôs as mãos pelas minhas costas e o resto foi automático. Era uma sensação gostosa e eu queria mais, mas quando abri os olhos eu só consegui sentir vergonha.
Vergonha e raiva de mim mesmo. Porque eu havia beijado uma das minhas melhores amigas.
"Me desculpa por isso!" Foi o que falei.
Amanda continuou me encarando. "Não, foi... Bom!".
Eu segurei o olhar por mais uns segundos, com um pouco de pena dela — e de mim mesmo — e depois virei o rosto para sair da piscina.
Foi quando vi o corpo de Sarah do outro lado da grande janela de vidro do salão. Ela estava com uma das mãos no vidro, nos olhando como se tivéssemos acabado de cometer o pior erro de nossas vidas.
Saí da piscina com ódio de mim mesmo e deixei Amanda lá. E depois fiquei com mais ódio de mim ainda porque a última vez que me referi a ela naquele dia foi com um "Vamos esquecer o que houve aqui."
Eu não poderia ter sido mais idiota e cafajeste do que aquilo! E nós três ficamos estranhos por vários meses, tudo por minha culpa.
Entretanto o tempo foi passando e eu percebi que, na verdade, eu nunca esqueci o que houve ali.
— Você o quê? — Ela ainda espera que eu complete.
De repente, me sinto envergonhado na frente dela. Porque o Kaynon fez exatamente o que eu deveria ter feito: evitado aquele beijo, evitado tê-la magoado, evitado me apaixonar.
— Me desculpa! — Então mudo o olhar de direção e saio do quintal, andando diretamente para a varanda, onde estão todos, onde esse assunto não poderá ser mencionado tão cedo.
Deixo-a sozinha novamente. Fazendo o que há um minuto atrás queria ter evitado. Cometendo o mesmo erro outra vez. Evitando encarar a realidade. O que há de errado comigo?!
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