Capítulo 2
(Levi)
Quando entro no quarto do Rafael já posso ver meus pais, Ingrid e Rodrigo; minha irmã e meu cunhado; minha cunhada, Jasmin, e os seus pais, Daniel e Mirela; minha tia mais nova, Lívia, e minha prima de 8 anos, Isabelle. Geralmente minhas reuniões de família se resumem a eles.
Meu pai tinha apenas um irmão mais velho chamado Raul, que morreu há 4 anos. Ele era policial e acabou sendo assassinado a tiros meses depois de prender um componente de uma gangue — até então — desconhecida da cidade. E meus avós paternos moram a mais de 200 quilômetros de distância, no estado ao lado.
Minha mãe tem duas irmãs: minha tia mais velha, Nicole, que mora na Suécia com o marido, os filhos gêmeos Vicente e Ivan, de 18 anos, e meus avós maternos; e minha tia mais nova, Lívia, que mora duas ruas abaixo com a filha, Isabelle; ela e o marido se separaram há dois anos.
Às vezes, nas reuniões, os pais do Matheus e da Jasmin também vêm, mas esse não é o caso de hoje. Os pais do Matheus viajaram com a irmã mais nova dele, e Daniel e Mirela vieram apenas deixar a Jasmin e olhar como está o genro, pois já estão indo para a festa de Réveillon com suas famílias.
Não os culpo. Passar as datas comemorativas no hospital é realmente uma tortura! Já é o meu segundo Réveillon aqui.
Abraço os meus pais, falo com minha tia e Isabelle e cumprimento também os pais da Jasmin. Dou um aperto de mãos e um toque de ombros com Matheus e, por último, falo com minha cunhada.
— Que ótimo presente de Réveillon seu namorado te deu, ein? — Brinco, me referindo ao acidente do meu irmão.
Ela sorri e entrelaça as mãos com ele. — Ótimo presente mesmo: ele está vivo! — Responde e ergue uma das sobrancelhas.
Levanto os braços com um meio sorriso. — Tudo bem, não brinco mais!
Jasmin é namorada do meu irmão há 2 anos. Nós nos conhecemos na igreja, assim que eu me converti, e viramos grandes amigos. Alguns meses depois o meu irmão também aceitou a Jesus e passou a frequentar a mesma igreja que nós dois. Pela nossa grande amizade, Jasmin foi uma das primeiras pessoas de lá a quem o apresentei, e assim que chegou em casa ele me lançou milhares de perguntas sobre ela.
Depois de um ano e alguns meses ele a pediu em namoro. Ela tinha 16 anos quando se tornou minha cunhada, e até hoje estão juntos. De acordo com Rafael, ainda vão se casar um dia.
— Mais um Réveillon no hospital, que maravilha! — Lorenna fala com ironia.
— Mais um Réveillon, que maravilha! — Minha mãe repreende-a indiretamente e eu sorrio com a cena.
Dentro do quarto há uma mesa retangular de plástico onde há uma série de vasilhas com arroz, strogonoff, carnes, saladas, farofa e tortas; e no pequeno frigobar, os sucos e refrigerantes. Meus pais também conseguiram algumas cadeiras, de modo que, mesmo sem muito conforto, todos conseguem se acomodar.
Quando eu tive câncer, as comemorações também eram da mesma forma.
— Essas comidas estão cheirando bem, dona Ingrid! — Matheus exclama com um sorriso.
— Tudo que estiver bom fui eu que fiz! — Responde. — Se estiver ruim, foi a Lívia! — E depois gargalha, juntamente com meu pai e meu cunhado.
— Engraçadinha! — Minha tia faz uma careta.
Apesar de estarmos em um quarto de hospital, o clima está animado aqui dentro. Minha família está feliz e meu irmão está bem, apenas fez uma cirurgia e precisará ficar 30 dias em observação aqui. Quem está me preocupando mesmo é a irmã da Sarah. Ela já está há 28 dias em coma, e parece que a cada dia que passa a Sarah fica mais triste. Eu sempre tento ajudá-la ou distraí-la de alguma forma, às vezes conversando, fazendo piadas, assistindo um filme (que é o nosso hobby favorito)...
Mas eu não consigo falar muito tempo sobre o que ela está passando e sentindo, porque sempre que a conversa toma esse rumo, ela logo fala em outra coisa e não permite que o assunto se estenda. Eu sei que ela se mostra dura e forte, e na verdade, ela é dura e forte, mas eu também sei que sofre; eu sei que ela chora quando ninguém está vendo. Antes, isso era apenas uma tese, mas hoje eu comprovei.
Quando entrei no quarto da Safira, ela estava toda encolhida ao seu lado, e seu nariz estava vermelho. Quando ela acordou e abriu os olhos, eu vi que estavam inchados. E eu sofri com aquilo, porque eu faria qualquer coisa para ajudá-la, mas ela sempre se mantém distante.
Temo que ela se feche cada vez mais e que sofra sozinha ao ponto de ficar depressiva. Eu temo isso porque já vi casos como esse. Eu via como ficavam as famílias de amigos meus com câncer quando morriam, aqui no hospital.
Detesto ter que pensar na possibilidade da morte da Safira, sei o quanto a Sarah é apegada à ela (a ponto de se dispor a passar todo o dia de Réveillon sozinha, em um quarto de hospital, apenas para não deixar a irmã sem alguém conhecido por perto), mas se o pior acontecer, eu não quero vê-la afundada em um poço de tristeza. Sei como é horrível perder alguém que amamos, eu não passei por isso apenas com o meu tio, mas com vários amigos que fiz no hospital e com...
Fecho os olhos.
Ainda lembro dela.
Ainda lembro dos seus olhos escuros e da sua pele pálida. Não era muito mais baixa que eu, mas também não era alta. Seu sorriso era cheio de vida, por mais que seu corpo dissesse o contrário.
Nos conhecemos na ala da quimioterapia; era a minha primeira sessão; eu estava nervoso. Camile já estava na sexta, mas quando eu entrei ela sorriu pra mim, como se tudo estivesse no lugar em que deveria estar.
Eu não deveria. Sabia que não deveria me deixar levar pelo seu jeito. Mas ela era encantadora! Suas palavras eram doces, seus olhos eram brilhantes e seu toque era macio. Eu não deveria ter me apaixonado. Sabia disso.
Mas não pude conter.
Eu precisava acreditar que nós dois iríamos nos recuperar e ter uma vida longa pela frente, mas só tínhamos 16 anos.
Ficamos juntos por 7 meses. Ela faleceu 3 meses antes de eu me recuperar completamente e receber alta.
Camile foi a garota mais incrível que eu já conheci na minha vida! Quando morreu, eu senti que o meu mundo havia acabado. É como se parte de mim tivesse perdido o sentido e o ânimo pra continuar lutando. Porque tudo o que eu mais queria quando saísse do hospital era levá-la ao cinema sem me preocupar se no meio do caminho um de nós desmaiaria de fraqueza ou ficaria enjoado a ponto de vomitar até o que não tinha no estômago! Tudo o que eu queria era levar uma vida normal com ela.
Hoje eu levo uma vida normal. E eu juro que não quero esquecê-la. Porque durante aqueles 7 meses de tortura, ela me ajudou a entender que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus; ela me ajudou a entender que os planos de Deus são maiores que os nossos, e que quase sempre a gente não vai entendê-los, mas precisamos aceitá-los mesmo assim.
Os seus pais não apoiavam muito o nosso namoro no início, mas ela me fez enxergar o mundo de uma forma nunca vista por mim antes! Ela me fez ver alegria em coisas simples, como conseguir dar dez passos depois de uma sessão de químio. Ela me mostrou que existe Alguém que cuida de nós, e que assim como um marido promete à esposa na saúde e na doença, nós devemos prometer a Deus que estaremos ao lado dEle na saúde e na doença, não apenas na saúde, não apenas na alegria, não apenas na riqueza.
Nós líamos a bíblia todos os dias, e ela tirava todas as dúvidas que eu pedia (quando não sabia, ligava para o seu — agora meu também — líder de jovens). Quando não estava cansada demais, ela cantava pra mim. E sua voz era magnífica!
Sua paixão tão arrebatadora por Jesus me deixou encantado, porque eu finalmente descobrira que era exatamente isso o que ela tinha de mais lindo dentro de si! Então era por isso que, mesmo em fase terminal, sua alegria nunca ia embora e seu sorriso era sempre presente.
Eu queria aquilo. Eu disse a ela que era aquilo o que eu mais queria no mundo! Eu queria aquela alegria, queria me sentir completo sem precisar de uma namorada, de muitos amigos, de dinheiro ou de saúde. E se era em Jesus que eu encontraria tanta alegria assim, era a Ele que eu queria.
Ela orou comigo. E foi naquele dia 6 de março de 2038 que eu aceitei a Jesus. E eu me apaixonei por Ele a cada dia, porque eu conseguia descobrir como Ele era — e continua sendo — incrível, mais incrível do que eu possa explicar!
Depois disso, quando nós orávamos juntos nós chorávamos e nos sentíamos satisfeitos, mesmo cansados. Porque a presença dEle é satisfatória, e pode preencher qualquer vazio dentro de nós! Antes eu não entendia por que os crentes falavam tanto dEle de uma forma tão bonita, e eu só descobri isso no dia em que verdadeiramente O conheci. Porque pra você entender, você precisa provar, e quem prova nunca mais quer viver distante, porque sabe que não existe nenhum outro lugar do mundo melhor do que estar com Ele!
Minha relação com Camile durou apenas 7 meses, mas ela me deixou o maior presente que poderia deixar: Jesus, e hoje estamos juntos há quase 4 anos!
Apesar da dor, eu aceitei os planos de Deus, e eu sei que ela está em um lugar muito melhor que eu e que um dia iremos nos reencontrar, quando Ele voltar.
Atualmente o que resta é saudade. Às vezes eu esqueço o tom da sua voz ou como era gostoso o seu abraço. Nunca pude ver ou tocar o seu cabelo, mas ela me disse que era castanho e ondulado. Lembro que eu sempre dizia que logo, logo eu ainda a veria com seu cabelo outra vez, e o amaciaria até cansar!
Eu sinto falta dela. Minha primeira namorada. A primeira — e única, até agora — garota que eu amei de verdade.
Partiu e deixou um buraco imenso em mim, um buraco que apenas Deus, em sua infinita bondade, pode preencher.
Carrego sempre no celular três fotos nossas: em uma, estamos de costas, enfrente à parede de vidro do hospital, cada um em sua cadeira de rodas, um ao lado do outro, de forma que apareciam apenas nossas cabeças carecas (eu pedi para uma enfermeira tirar). Outra eu mesmo tirei: mostra apenas nossas mãos entrelaçadas sobre a sua bíblia preta (quando tirei, lembro que estávamos estudando a história das 10 virgens, que está escrita em Mateus 25); ela tinha um anel de solitária vermelha, que ganhara do pai no aniversário de 15 anos. E a última é uma selfie: ela está com a testa encostada em meu rosto, o largo sorriso de sempre nos dentes e a mão esquerda pousando em meu peito; a minha mão esquerda se entrelaçava com a sua direta sobre a minha perna.
Já fazem 3 anos que ela se foi, mas lembrar de quem fomos, juntos, ainda me machuca um pouco. Depois dela passei 2 anos sem conseguir pensar em mais ninguém; apenas no início desse ano eu tentei novamente com outra pessoa: Júlia, da minha igreja, uma garota morena de cabelos cacheados.
Ficamos juntos de fevereiro até abril, apenas 3 meses, mas eu terminei com ela quando percebi que não gostava o suficiente para manter o namoro. Não posso negar que é uma garota linda por fora e por dentro, mas eu estava buscando alguém que me fizesse sentir o mesmo que eu senti pela Camile. E ainda continuo buscando.
— O que você tem, Levi? — Minha irmã sussurra assim que fica ao meu lado, de frente para a janela. Os outros estão conversando ao redor da maca do Rafael.
Abro um meio sorriso. — Eu... — Mordo os lábios e respiro fundo. Posso sentir meu rosto esquentar ao segurar algumas lágrimas. — Aqui no hospital, eu não... Eu não consigo parar de...
— Pensar na Camile? — Lorenna me corta. Assinto. — Ainda lembro muito dela! — Respira fundo. — Sinto sua falta!
Passo meu braço esquerdo pelas suas costas. — Também sinto!
— Eu queria que... — Pressiona os lábios. — Que você encontrasse alguém que te fizesse tão feliz como ela!
Suspiro e dou um meio sorriso novamente. Não respondo nada, mas acabo pensando na Sarah. Ela e Camile são bem diferentes: a Sarah tem um gene forte, às vezes é um pouco grossa e não é tão doce, paciente e meiga como a Camile, mas...
Penso um pouco.
Bom, eu não sei. Eu realmente não sei o que a Sarah tem de tão diferente das outras, mas depois da Camile, ela foi a única que me atraiu e me fez sentir vontade de querer ficar, de querer cuidar.
Nós nos conhecemos há apenas 15 dias, mas sempre estamos juntos praticamente as 24 horas do dia (descontando a hora de dormir).
Eu não gosto de comparar; na verdade, quando a deixo ocupar meus pensamentos sinto que estou traindo a Camile. Mas a vida segue em frente, e eu preciso de alguém que preencha o seu lugar. Porém de fato não sei o porquê da Sarah me fazer sentir algo que eu ainda não tinha sentido.
Espero profundamente descobrir.
⁂
Antes de abrir a porta do quarto olho para o relógio digital na tela do meu celular: 00:11.
Em minha mão direita tem um prato com arroz branco, farofa, strogonoff de frango, torta de carne e salada de maionese. Eu não sei, mas tenho quase certeza de que ela não foi ao refeitório, por mais que esteja com o cartão de débito da sua mãe.
Giro devagar a maçaneta e entro no quarto escuro, iluminado apenas pela luz que vem dos postes e passa pela janela. Ambas estão dormindo, cada uma em uma maca.
Ando compassadamente pelo quarto e coloco o prato encima do frigobar. Depois, encaro Safira por um tempo. Suas feições são quase idênticas às de Sarah, mas seus lábios são mais carnudos, suas sobrancelhas mais grossas e seu cabelo em um tom de loiro mais claro. Passo a mão pela fria barra de ferro da maca e me viro.
Caminho até a maca na qual Sarah dorme: suas pernas estão tortas e seu rosto repousa sobre o braço direito; na mão esquerda está seu celular, ainda desbloqueado. Puxo o celular que estava preso entre seus dedos e, mesmo me sentindo muito invasor ao fazer isso, vejo sua tela mais recente: Notas. É um texto.
Deus, desculpa, mas eu vou ler!
Olho para Sarah novamente e cubro seu corpo com o lençol que estava apenas sobre seu quadril, levando-o até as pontas dos seus dedos das mãos e dos pés, que estão extremamente gelados.
Diminuo a luminosidade do celular para 0% e sento no colchão que há no chão ao lado da sua maca.
"Princesas desiludidas têm medo de encontrar o príncipe. Porque elas estão machucadas, porque parece que todo príncipe é um sapo. Princesas que se apaixonaram primeiro pelo sapo têm receio do que virá. Porque elas não sabem se, dessa vez, o príncipe vem em forma de sapo, ao invés do contrário. É mais fácil quando elas já sabem o que vão encontrar. Mas elas nunca sabem. Porque há príncipes que não vão pedir para entrar; há príncipes que vão simplesmente entrar, e quando elas perceberem eles já estarão ocupando a melhor poltrona do seu quarto. E elas ficarão com medo novamente. Não medo do príncipe, claro: medo que ele vá embora e deixe aquela poltrona vazia! Princesas sempre vivem com medo: de encontrar, de perder..." — Sarah D.
Meu coração acelera e minha primeira reação é olhar para ela novamente.
A luz que emana da janela ilumina apenas metade do seu rosto, já que ela está deitada de lado. Fico um longo período de tempo apenas a vendo dormir, orando para que, quando acorde, seu coração já esteja mais calmo.
Depois que se passam alguns incontáveis minutos, volto meu olhar para a tela e clico na última nota mais recente: é de uma hora atrás.
"Ela queria dizer o que estava havendo com ela. Ela queria se abrir e ser ouvida, mas naquele cubículo tudo parecida infinito ao seu redor: tudo, menos ela. Ela estava cansada de chorar — ela detestava chorar, na verdade! Ela sentia falta do seu mundo — que nunca foi encantado! Ela achava que faltava um pedaço dela. Um pedaço que havia se perdido em alguém. Ela sentia falta do seu pedaço de infinito. Ela sentia falta do que era infinito dentro dela. Ela sentia falta dela. Da outra. Do seu outro pedaço de mundo infinito — que nunca seria encantado, mesmo! (E olhou para a garota do outro lado do cubículo)" — Sarah D.
Congelo.
Talvez ela seja mais doce do que pensei!
Quanta magnitude em palavras!
Levo a mão esquerda à boca e não consigo organizar meus pensamentos em reações. Eu apenas não acredito no que acabei de ler. É um oceano de metáforas e sentimentos amontoados e escondidos. Sentimentos escondidos em palavras!
E ela me disse que seu hobby favorito era assistir filmes! Que ultraje!
Como pode esconder isso?! Como consegue disfarçar tão bem seus sentimentos?! De onde vem tanta melancolia?! Ela não é assim, aparentemente!
Deus, o que essa garota esconde?!
Volto a encarar seu rosto e sinto uma onda de preocupação repentina invadir a minha mente.
Essa tristeza não pode ir adiante, eu preciso fazer algo!
Penso um pouco no que fazer.
Abro uma nova nota.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro