
○39. - De Dentro Para Fora
(ilustração - Júlia)
Ivan tomba sobre Júlia, os dois joelhos dobram, e ela o abraça. Os dois vão ao chão juntos. A dor no peito da loira é tamanha que nem mesmo sabe se vai conseguir respirar novamente. Espera que as balas tenham a atravessado também, mas a dor é diferente. Vêm de dentro.
Ela grita com o garoto ensanguentado em seus braços. Um grito que nunca imaginou sair de seus lábios. Não liga para o homem que aponta a arma para sua cabeça. Ele está há um instante de puxar o gatilho quando seu próprio crânio explode. Atrás dele, Alex empunha a arma com as mãos trêmulas.
— Alex? – A voz de Júlia falha.
As duas trocam um olhar pesaroso antes de o retornarem à Ivan. Seus corações despedaçados.
Júlia se senta no chão e, aos prantos, vira Ivan para ela com certa dificuldade e cuidado, o apoiando no braço e deixando sua cabeça sobre o ombro. O sangue quente que sai dos ferimentos em suas costas banham a roupa da garota.
Alex se mantém estática por um segundo, até finalmente tomar alguma providência e correr em direção aos dois. Ela se ajoelha devagar ao lado de Júlia, que não segura os gritos de dor que cortam a sala gelada. Ivan a puxa para mais perto, olhando dentro de seus olhos embaçados.
— Pare com isso. – Ele diz. Ivan não havia imaginado a morte assim. Imaginava que sentiria medo, mas a vida que viveu foi boa. Por causa dela. Deixara seu legado. – Esse é o melhor jeito de ir embora.
Ele seca as lágrimas de Júlia, que não consegue pronunciar uma só palavra, engasgada com tudo o que nunca disse.
— Protegendo a mulher que eu amo, nos braços dela.
Júlia lhe dá um beijo molhado, segurando os soluços por um segundo.
— Cuide dele. – Ele pega a mão de Júlia e a coloca sobre a barriga da garota, entrelaçando os dedos com os dela. – Vou estar sempre com vocês.
— Não posso... – Ela se esforça para falar. – Não sem você.
Ele deixa uma lágrima solitária escorrer. Alex a seca. Os olhos espantados, a boca semiaberta, mas a verdadeira reação ainda não chega para ela. Sente apenas como se um buraco a engolisse.
O irmão a olha e pega sua mão, apertando com a força que lhe resta. Faz seu último pedido.
— Cuide dela, tá bom?
Alex leva a mão à boca, contendo o sentimento. Ela promete com o olhar.
A mão de Ivan se afrouxa devagar da sua. Seu corpo pesa sobre o de Júlia, e ele lhe lança mais um profundo olhar, antes da vida fugir de seu corpo como água escorrendo por entre os dedos da garota.
Alex olha do imóvel irmão para Júlia, que desmorona em cima do corpo sem vida do homem que amou. Não sabe como reagir. A atmosfera inteira ao seu redor parece estar em silêncio, parada no tempo. Mais uma vez, sente como se tudo fosse o pior pesadelo de sua vida. Que aquela dor a acordaria de um sonho perturbado em seu colchão no setor A com o bip irritante do monitorador às 6:10. Mas não consegue acordar.
Um toque em seu ombro a tira do estado de transe. Ela olha por cima do próprio ombro. Diego a puxa pelo braço em direção à porta com tanta força que chega a machucar, arrancando antes a arma de Ivan e o walk talk preso em sua calça. Ela quase se esquece da guerra que estão travando. Pega a própria arma do chão e a guarda no lugar. Deixa que o amigo a guie para fora do casarão.
Braços fortes envolvem Júlia pela cintura, a tirando do chão. A tirando de perto do corpo do namorado.
A garota se debate, mas não consegue se livrar. Levi a segura com força, resistindo contra qualquer ofensiva da parte dela, ignorando a dor no corpo recentemente ferido. Segura os próprios sentimentos para senti-los mais tarde. Eles têm que sair de lá agora, e ele sabe. Júlia sabe, mas não consegue se importar.
Ela olha para o corpo do amado no chão. Sozinho. Banhado de sangue. Os olhos abertos. Merecia um final melhor.
Vendo que Levi não irá soltá-la, sua consciência retorna aos poucos. Ela coloca os pés no chão e foge daquela casa e de tudo, correndo cegamente para o ponto de encontro combinado com Rafael.
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Cegamente, Alex segue Diego mata adentro. Não se ouve mais nada a não ser a respiração ofegante dos dois. Ele sabe exatamente para onde está indo e que caminho seguir. Ela percebe o que ele faz - passa a mão pelas árvores ao redor, sentindo um corte bem dado com uma faca. Como na história de João e Maria, o grupo deixou suas migalhas.
Quando finalmente os encontram, está escurecendo. Devem ter corrido por mais de vinte minutos, os pensamentos de Alex vazios, os sentimentos mais ainda.
Na floresta que recomeça a mergulhar no reconfortante e pavoroso breu, Diego para. Alex logo atrás dele. As sombras começam a ganhar rosto.
Rafael é o primeiro que se aproxima deles, seguido logo pelos outros amigos. Os olhos de Alex se cruzam com os de Nic por um instante, que corre para abraçá-la, xingando a amiga de insana por ter voltado atrás. Mas ela não escuta.
Há rostos faltando na multidão. Ela se pega procurando pelo rosto do irmão. Logo atrás deles, Levi e Júlia se juntam a eles. Júlia está com os olhos tão vermelhos e inchados que parece ter apanhado.
Olha para frente novamente. Naomi, com o braço enfaixado improvisadamente, revesa o olhar entre Alex e Júlia, os rostos com a mesma expressão. Júlia não consegue sustentar seu olhar, mas Alex tenta. Quando finalmente seus olhos admitem, ela sente o soco na boca do estômago e tapa a boca com as duas mãos, soltando um grito de dor. Sua ficha finalmente cai sobre sua cabeça como um tiro ardente.
Alex ajoelha na terra. Nic tenta ampará-la, mas logo entende o que acaba de acontecer. Em posição fetal, Alex deita na terra úmida, mas Nic a puxa para o peito, abraçando-a forte. É tudo que ela precisa, que ele a abrace forte. Mais forte, mesmo que a machuque, porque precisa sentir algo além daquela dor.
Os outros sentem o próprio luto em silêncio. Ela não consegue olhar para ninguém. Deseja desesperadamente gritar, mas se contenta em afundar os dedos na terra até que a raiz das unhas peçam arrego.
Como um flash em sua cabeça, se lembra da última conversa com o irmão. Os dois sentados no mesmo saguão em que jaz seu corpo sozinho, conversando sobre o futuro. Ele construiria uma casa com os pés na areia para morar com a mulher que amava. Ensinaria o filho a surfar. Estava curtindo cada segundo de seus sonhos, arrancados de seu peito com a maior brutalidade possível.
De repente, Alex não se sente mais triste. Sente o peito arder em raiva. Fúria.
Ela aperta seu coração com força. A textura da foto por baixo da blusa a pinica. Ela a alcança e desdobra com carinho. Os olhos embaçados veem a família que um dia tivera. Mãe, pai, e irmão, o qual acabara de assistir morrer.
Ela não se via encaixada naquela guerra até o momento, mas agora é como se fosse chamada em primeira pessoa. Os ombros tremem, mas ela se levanta, guardando a fotografia novamente no peito. Saca a arma que usara para matar o homem que matou seu irmão. Está pronta.
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— O que vamos fazer agora? - A voz desconhecida surge da escuridão. Os interessados reúnem-se, aproximando-se, criando um círculo não intencional.
— Seguir o plano. - Naomi responde. Júlia permanece de cócoras em seu canto, incapaz de falar. Naomi se sente pequena, cansada, culpada. Não deveria tê-los deixado. Independente disso, sabe que se não puderem escutar Júlia, terão que escutá-la.
— Não estão pensando em ir ainda, estão? - Um dos homens do grupo pergunta.
Como se em consenso, todos tiram um segundo para se olharem. A pergunta os pega de surpresa.
— Ainda nem contamos nossos mortos. - Ele fala, mas corrige-se. - Ainda nem sentimos por nossos mortos.
Maia sai de seu canto para responder.
— É por isso que precisamos ir.
O homem a olha com interrogação nos olhos.
— Não temos escolha. Se ficarmos aqui, nos encontram essa noite, e já era. Não tem pra onde fugir.
— Isso é muito reconfortante. - Gael, cuja voz não é ouvida há tempos, pronuncia-se sarcástico, sendo a voz de seu povo. Mesmo ele, contra tudo aquilo o tempo inteiro, entende a encruzilhada em que se encontram.
— Qual vai ser? - O primeiro homem pergunta de novo.
Um silêncio mortal se segue. Todos pensam em suas vidas e futuros. Tudo depende da decisão que tomarem ali.
— Estão brincando, não é? - Alex, sentada em seu canto, levanta-se para olhar os outros de frente. Ela solta uma risada falsa, ainda engolindo os soluços. - Não estão vendo?
De repente, ela tem a atenção de todos. Mesmo dos que não consegue ver devido ao escuro. Sente os olhares a cutucarem. Ela ainda não tinha feito por merecer a confiança daquelas pessoas, juntas há quase uma década. Mas se fará ser ouvida. As palavras estão com ela. Ela aperta a foto dentro da blusa antes de falar.
— Se decidirem ficar, já estamos mortos. Eles vão nos encontrar antes dessa noite acabar. Eu não vou ficar aqui. - Ela continua. - Se for pra morrer, eu vou morrer levando quantos filhos da puta eu conseguir comigo, e eu não estou falando só desses merdas que estão no nosso encalço, eu estou falando dos merdas mais em cima, os que mandam em tudo, e lucram com nosso sofrimento.
Ninguém a debate. Alex segura as lágrimas. Têm muito a botar para fora.
— Todos já perdemos entes queridos, não importa quando. Eu acabei de ver o meu irmão morrer, - As palavras saem rasgando por sua garganta. - e é exatamente por isso que eu vou entrar naquela prisão e vingá-lo. Vingar Ivan. Vingar Murilo. Vingar cada uma das vidas que nós perdemos hoje. As vidas dos seus pais, filhos, amigos. - Ela vê algumas cabeças concordando com ela. - Porque se eu tiver que morrer hoje, eu vou morrer lá, lutando. E não aqui, chorando. A decisão de vir junto é de vocês.
Os sons da floresta mergulhada na escuridão vem reforçar seu argumento.
— Eu vou.
Alex procura a voz na multidão. Próxima a ela, escondida na segunda fileira de pessoas, uma mulher de olhos cansados a fita, emocionada. Abraça Carolina em um dos braços e Vítor no outro.
— Vou por eles. - Ela diz para que todos possam ouvir.
Alex se emociona. É uma mãe. Não uma guerreira. Nenhum deles é, mas a vida os cobra naquele momento.
— Nós vamos. - Eduardo olha para o que restou de seu povo, o coração partido pela perda.
— Nós vamos. - Carla, a garota que auxiliava na enfermaria do abrigo, fala por ela e pelos próximos. Sente a recente perda da mentora Sra. Kira.
De repente, todos esperam um posicionamento de Alex. Ela respira fundo, emocionada. Um sentimento diferente de tristeza a assola. Emoção, força, raiva, fúria. Tudo mistura-se em um bolo em seu peito.
Ela olha para as garotas que a guiaram até aquele momento. Júlia está sentada no chão olhando para ela com carregadas olheiras, mas sentimento no olhar. Faz das palavras da garota que salvou sua vida, as dela. Do lado oposto, Naomi a encoraja com um aceno de cabeça, os braços cruzados, as sobrancelhas arqueadas, sentindo o peso de cada palavra da recente amiga.
— Podemos ser poucos agora, - Ela necessita tirar aquelas palavras do peito. - Mas acabaram de mexer com a família errada.
Ela olha para a recém tatuagem no ombro. Ainda queima, mas lhe dá uma força que não esperaria ter no momento.
— Vamos destruir aqueles merdas de dentro pra fora de um jeito que não vão nem saber o que os atingiu.
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