○3. - Sombras Mascaradas
(a ilustração da capa foi feita por mim)
O chacoalhar do trem embalou Alex até que pegasse em um sono leve e conturbado. Deitada no sujo chão do vagão e usando sua única mochila como travesseiro, encolheu seu corpo o máximo que conseguia para proteger-se da fria brisa que entrava pela janela.
As luzes estavam apagadas, mas a luz da lua entrava por onde pudesse. Tirando o barulho do trem, ouviam-se apenas cochichos quase inaudíveis dos outros passageiros.
Ivan sentiu sono, mas não conseguia dormir. Em todo o caso, passou um dos braços por cima da irmã, para senti-la por perto caso cedesse ao cansaço. Com a cabeça encostada na parede, olhava para fora. Árvores mergulhadas na escuridão dariam calafrios em qualquer um.
Perguntou-se onde estariam e quanto tempo levariam até chegar em Aracê. Nunca, em seus quase dezoito anos, teve a oportunidade de explorar nada além das fronteiras de Amanaci, mesmo que para as cidades vizinhas.
Como podia ter entrado em um trem sem saber ao certo seu destino? Para onde dariam esses trilhos que os afastavam mais e mais dos entes queridos? Sem ao menos saber o que fariam quando chegassem? E de repente, lembrou da resposta estampada no rosto de seus pais. Desespero.
Afastou seus rostos dos pensamentos por um instante, fechou os olhos e tentou adormecer. As preocupações ficariam para o dia seguinte.
○
O trem parou bruscamente e os irmãos acordaram com um susto. Ao redor deles, o murmúrio das outras crianças quebrava o silêncio.
Alex imediatamente se levantou e olhou para fora. Nada. Não conseguia enxergar nada a mais de cinco metros de distância para nenhum dos lados. A não ser pelas sombras que se moviam. Silhuetas humanas. A garota deu um salto para trás, assustada.
— O que foi? - Ivan olhava para o rosto branco da irmã e logo em seguida todos estavam grudados na janela a procura de algo.
— Eu vi alguém. - Disse, dando mais e mais passos para longe da porta.
Ivan se levantou e fez uma concha com as mãos, apoiando-as no vidro para olhar para fora.
— Não tem nada aqui, Alex. - Ao ver a expressão no rosto da irmã, soube que ela não estava convencida.
— Eu vi alguém!
As outras crianças começaram a olhar para eles.
— Sabe, nossa mente nos prega várias peças quando estamos com medo, ainda mais no escuro. Não acho que...
Um som alto não o deixou terminar. Algo como um rojão cortando o ar. Algo como um tiro.
Todos se abaixaram e gritaram, automaticamente. Ivan trocou olhares com a irmã, agora compartilhando de seu mesmo medo.
Segundos depois, o trem inteiro chacoalhou severamente e fez com que os que estavam em pé se desequilibrassem.
Pânico.
Outro chacoalhar. O vagão pareceu quase deitar.
Toda a atmosfera mergulhou em caos e gritos de desespero.
As portas dos vagões se abriram. O vento gélido entrou para lhes dar certeza do que estavam pensando - estavam todos vulneráveis.
Outro tiro.
Alex começou a chorar e se abaixou, de cócoras, como se isso a protegesse de qualquer coisa. O coração de Ivan palpitou. Ele olhou ao redor e decidiu tomar a dianteira da situação.
— Todos para fora! Agora! - Gritou.
Ivan puxou a irmã pelo cotovelo. Os dois pularam para fora do vagão e caíram na terra. Uma garoa fina e gelada os recebeu. Os dois olharam rapidamente para todos os lados, a procura de algo para lhes nortear. E encontraram.
As silhuetas. Completamente vestidas de preto, se aproximaram dos dois e das outras crianças que decidiram segui-los. Com um movimento de mãos, pedia que se acalmassem, mas Ivan pôs-se a frente de Alex. Ao som de gritos, as crianças se dispersaram para onde conseguiam, e as sombras começaram a correr em suas direções.
— Vamos! - Ivan puxou Alex para dentro da floresta escura. Seus olhos se acostumaram aos poucos ao breu, mas corriam cegamente. Ivan só conseguia pensar em como gostaria de ainda poder segurar sua irmã no colo como antigamente e correr com ela para longe. Mas ela não era mais uma criança. Ele a puxava pelo punho o mais rápido que podia, mas teria que acompanhar a velocidade da garota.
Sentiam os galhos cortarem seus corpos e tentavam desvencilhar-se sem sucesso. Tropeçavam, caíam e se machucavam, mas a adrenalina que estavam sentindo não os deixava sentir nada.
Com uma olhada rápida para trás, Ivan entrou em pânico. Estavam os seguindo.
○
Alex estava perdendo velocidade. Corriam há demorados minutos, e ela não conseguia respirar.
Nenhum dos dois olhara para trás há algum tempo - não sabiam se ainda estavam sendo perseguidos.
Ao pensar rápido, Ivan mergulhou no meio de um arbusto, atrás de uma grande árvore, e puxou a irmã consigo. Estavam escondidos. Alex tapava a boca com as duas mãos para poder respirar ofegante sem fazer barulho. Foi ali que ficaram até o sol nascer.
○
A luz fraca do dia entrava pelas copas das árvores, e os gritos ao longe não eram mais ouvidos. Os irmãos não trocaram nenhuma palavra ainda.
Ivan, mais velho, tomou a decisão.
— Vou ver como está a situação. - Cochichou, abaixado ao lado da irmã.
— Vou com você.
Alex levantou do esconderijo, determinada, mas ele a puxou de volta.
— É claro que não! Você vai ficar aqui. Se tudo estiver limpo, volto para te buscar.
— Está brincando, né?
— Não estou. Fique aqui, em segurança.
E dessa vez, Ivan levantou. Alex tentou puxá-lo de volta, mas não conseguiu. Queria dizer muito mais sobre como achava arriscado. No fundo, não queria ficar sozinha.
Ivan espiou a floresta na direção em que vieram, depois para todos os outros lados. Não viu nada nem ninguém. Não sabia há quanto tempo estava ali, mas a luz do dia o deixou mais confiante. Ele se abaixou e pegou um pedaço de tronco para se defender.
Estava há bons metros de distância da irmã quando sua visão periférica o alertou, tarde demais.
○
Alex escutou o irmão gritar, e o baque de algo caindo no chão.
Não pensou duas vezes. Saiu de onde estava escondida e correu em direção ao som, pensando se seria estúpido gritar o nome do irmão.
Em questão de segundos, parou bruscamente e deixou escapar um grito abafado.
Há pouco mais de quinze metros dela, Ivan estava no chão, deitado, com as mãos erguidas em rendição. Uma arma apontada para sua cabeça. Duas figuras mascaradas o cercavam. Máscaras de gás compunham o traje verde militar. Os dois armados.
Todos olharam para ela e Ivan tenta se levantar, em pânico, mas foi chutado pelo peito de volta para o chão e imobilizado por um dos mascarados.
O outro deles começou a correr em direção à garota.
— Corra! - o irmão gritou, com a voz embargada.
Não foi preciso dizer duas vezes. Tão em pânico que não conseguia nem chorar, Alex correu costurando as árvores da floresta como se sua vida dependesse disso. Talvez dependesse.
○
Tinha conseguido se esconder em uma gruta, rodeada por vegetação que a camuflava. Deu sorte.
Ao ver a figura mascarada passar por ela e não encontrá-la, Alex sentou no fundo de seu abrigo e começou a chorar baixo. Em questão de poucas horas, sua vida dera a mais brusca reviravolta que poderia imaginar.
O mundo estava acabando. Valeria a pena sobreviver sozinha?
Não queria morrer. Apenas esperou o que lhe pareceu ser mais uma hora até que o sol alcançasse o ambiente por completo e saiu andando pela direção que viera. Sem rumo. Não lhe importava mais.
○
Não deixava de sentir medo. Todo o seu corpo tremia e ela chorava, desistindo.
Andava por tanto tempo que começou a achar que estava indo na direção errada, mesmo que não soubesse ao certo para onde gostaria de ir – para longe daquilo, ou de volta para o trem.
Quando se sentiu emocionalmente fraca demais para continuar, ajoelhou-se no chão, nas raízes da árvore mais próxima, e descabelou-se a chorar. O mundo a deixara sozinha.
— Querida? - Uma voz doce chamou, mas Alex já estava de pé, com uma pedra na mão dominante, seus instintos mandando-a se proteger.
Mas ela não viu perigo. Um rosto amigável sorriu e lhe estende uma mão. Uma mulher alta, loira, com algumas rugas no rosto se aproximou dela. A figura era familiar. A garota se lembra de já tê-la visto pela tela da televisão.
Alex não sabia quem era, entretanto, mas abaixou a pedra em sua mão. A loira se aproximou dela e a envolveu em um abraço. A garota se assustou, mas recomeçou a chorar copiosamente, consolada por uma completa estranha que a encontrou no meio da floresta.
— Vou te levar de volta agora, tudo bem?
Alex balançou a cabeça e secou as lágrimas, tentando parecer forte, e ambas seguiram a caminhar.
A mulher loira a levou de volta para o trem e a ajudou a subir no vagão. Agora estava vazio, com apenas algumas crianças que pareciam tão perdidas quanto ela.
— Vamos retomar viagem logo, tudo bem?
Mais uma vez, ela não respondeu. Apenas acenou com a cabeça.
A mulher vai embora e Alex olha em volta. Conseguiu voltar exatamente para o vagão em que estava. Olhou para sua mochila, jogada ao lado da de Ivan. Ela tremeu ao se lembrar do irmão, mas não encontrou mais lágrimas para chorar.
A porta logo fechou e encerrou a noite conturbada. Estavam seguindo viagem, mais sozinhos do que quando começaram.
○
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