○23. - Olivia Não Quer Ser Princesa
(Alex na imagem abaixo)
— Vamos dar o fora daqui. - Gabe recompõe-se o suficiente para falar. Uma infinidade de possibilidades passa por sua mente, e nenhuma é boa.
Uma coisa está clara para todos - estarão aqui em breve.
A garota Carla e Ivan se ajudam para tirar Nic do chão.
— Júlia, tire todos daqui. Quero que pegue todo o armamento militar que conseguir, e comida. Temos a vantagem de não saberem que sabemos ainda, então vamos dar o fora daqui agora. - Gabe dita as ordens para a loira, que escuta com o olhar tenso.
Ela recebe as ordens sem questionar. O mais rápido que pode, grita pelos corredores.
— Ok, pessoal, todos para fora agora! Sem hesitar! Precisamos sair daqui agora!
Sua voz ecoa por todo o recinto. As pessoas murmuram, agitadas. Uns batem nas portas dos outros.
Em segundos, os corredores estão lotados de pessoas que zanzam sem rumo em completo desespero.
Ivan sai do quarto logo em seguida, rumando para os andares de cima. Os abrigados agitados com o caos não entendem o que está acontecendo.
O mais rápido que a dor em sua perna permite, ele corre por todos os corredores, batendo nas portas. A mensagem é a mesma:
— Saiam, agora!
Júlia esbarra com um rosto conhecido.
— O que está acontecendo? - Luís pergunta, pálido. A noite tranquila de sono interrompida.
— Reúna o pessoal da caça. Quero todos tirando o armamento daqui o quanto antes. Levem os outros pra floresta, e se escondam, em silêncio. O mais longe daqui. Não olhem pra trás, ok?
Luís engole em seco. A situação não pede por justificativas. Segue às ordens da garota.
Logo acima deles, o som de algo cortando o ar os paralisa.
Ivan já está ao lado da namorada novamente, petrificado.
— O que foi isso? - Ela pergunta.
Ele gostaria de não saber, mas sabe exatamente o que o som significa.
— Aviões.
Pela expressão no rosto da namorada, ela compreendera o fim daquilo - vão bombardear o abrigo.
○
Em silêncio, os três caminham em fila. Alex na frente, beirando os estabelecimentos e becos escuros que poderia usar para se esconder caso venha a ser necessário. Maia segue com o rifle em mãos, alerta a qualquer movimento à frente deles. Murilo segue atrás, também armado, observando a retaguarda do grupo.
Quanto mais se aproximam do centro, da casa da garota, mais tensa a situação fica.
Faltando apenas quinze minutos de caminhada, depois de horas andando na chuva gélida, Murilo puxa as duas para uma viela residencial.
Nenhuma delas pergunta de imediato, apenas espia por trás das paredes.
Distantes - mas próximos - figuras armadas rondam pela cidade em grupos.
— Como caralhos vamos chegar lá? - Maia pergunta, de forma quase inaudível.
— Eu tenho uma ideia. Só não sei se é boa. - Murilo se pronuncia.
Alex o olha para perguntar sobre, mas ele apenas olha para cima. Uma simples escada de incêndio se eleva por toda a lateral do prédio ao lado deles.
— É, os telhados salvaram nosso pescoço uma vez. Eu apostaria neles de novo. - Ela concorda.
Sem esperar resposta, Alex segue na frente. Estão tão próximos.
Enquanto sobe com todo o cuidado a escada enferrujada e molhada, ela olha ao redor. A padaria onde costumava almoçar com os pais e o irmão aos domingos, preguiçosos demais para cozinhar. O mercadinho de esquina em que ela fazia compras para a casa quando pediam, sempre trazendo waffles congelados e escondendo no fundo do freezer só para ela. As lembranças a acalentam e machucam ao mesmo tempo.
Sem prédios altos ao redor, eles não tem que se preocupar com os inimigos vindos de cima.
A jornada continua, passo ante passo, prédio por prédio, por cima da cabeça dos que os perseguem, até chegarem ao destino.
O condomínio em que Alex morava é simples, sem muita segurança. Ocasionalmente tinham que fazer reuniões para discutirem os frequentes furtos às casas. A garota nunca achou que essa característica do lugar onde morou até seus doze anos pudesse ser tão útil agora.
Enquanto Maia vigia os arredores, Murilo e Alex tratam de desparafusar delicadamente e sem fazer barulho toda a parafernalha que prende a pequena porta no chão, um alçapão para dentro, a passagem perfeita.
Quando finalmente é possível destrancar a porta, Murilo acena para Maia, que se junta a eles.
Os três olham para a escuridão lá embaixo. Não sabem o que esperar, mas a esperança e excitação desperta no coração de todos ao mesmo tempo.
Murilo toma a dianteira. Usando toda a força que dispõe, desce devagar para o breu. Sua queda no andar de baixo é completamente encoberta pela chuva.
Do escuro, uma luz se acende, fraca. Ele trouxera a lanterna, que ainda funciona com dificuldade. As amigas o seguem.
Finalmente chegaram em seu destino. No prédio de Alex. No andar de Alex. Só falta a garota tomar a coragem de abrir a porta.
○
Devidamente posicionados no subsolo do prédio ao lado do da garota, Naomi e Levi espiam por entre as frestas da janela.
Não havia sido difícil chegar até lá. Os dois reconhecem as habilidades que têm de ser sorrateiros, e sem cinco pessoas em seus encalços, com certeza é mais fácil misturar-se às sombras.
O centro é rondado de minuto em minuto por patrulhas do governo. Com o rifle empunhado, pronto para se defender a qualquer ameaça, Levi se posiciona na pequena janela do subsolo.
Naomi observa pela do lado, tensa.
Vasculha sua mochila à procura do walk talk. Alguém pensou exatamente como ela - a luz vermelha está ligada.
Ela se afasta da janela o máximo que pode. Em um canto distante do subsolo do prédio abandonado, onde um dia foi uma copa para funcionários, ela sintoniza na frequência doze.
— Ei. - Sua voz sai apenas o suficiente para que a escutem.
Ninguém responde. Ela insiste mais duas vezes, até que a voz de Maia converse com ela.
— Oi, estamos ouvindo. Onde estão?
— Prédio ao lado.
— Seguros?
— Seguros, e vocês?
— Estamos no apartamento.
Naomi suspira aliviada.
— Ótimo, como está Diego?
— Ficou pra trás com Rafa. Não estava pronto pra vir.
Naomi não responde.
— Desculpa, Na, mas ele não podia...
— Eu sei. - Ela interrompe. - Só fico preocupada.
— Eles vão nos responder logo. Estão mais seguros que nós, pode confiar. Vamos acabar com essa merda logo.
— Ok. Estamos de olho na fachada, se precisarem, gritem.
— Ok.
○
A porta da casa de Alex está destrancada, arrombada. A maçaneta no chão aos seus pés.
Os amigos têm pressa, ela sabe, mas ela não consegue entrar.
— Vamos, garota. - Maia abre a porta por ela. - Quanto menos tempo ficarmos aqui, mais fácil vai ser.
A luz da noite que atravessa as cortinas ilumina a sala do apartamento em que ela viveu com a família. Se lembra da história de Gabe, que os pais foram mortos ali mesmo, e o simples relato não a deixara dormir há dias. Há manchas de sangue no tapete - um dia branco - da sala.
Tudo parece muito menor para ela. Alex cresceu.
Em frações de segundos, toda a sua vida no apartamento passa por seus olhos. Desde a primeira lembrança, brincando com Ivan aos quatro anos no sofá da sala, até quando se reuniram ali mesmo para ouvir sobre a chamada para o trem. Em nenhum cenário possível ela esperaria acabar ali.
— Eu não sei nem o que estou fazendo aqui. - A voz trêmula de Alex corta o silêncio, sincera. Os raios do lado de fora iluminam mais que a pobre lanterna de Murilo.
— Chegamos até aqui, Alex. Precisa nos ajudar. - Maia diz, com medo de soar ingrata.
Mas Alex sabe que ela tem razão.
Antes que perca a coragem, ruma para o quarto dos pais a passos largos.
Maia e Murilo não têm o que fazer a não ser vigiar e esperar.
A cama dos pais ainda está perfeitamente arrumada. Com pressa, ela escancara as portas dos armários. As roupas penduradas em cabides vão ao achando. Bijuterias, cintos, tudo.
Nada.
Borboletas de Olivia.
Ela força a mente, mas nada vem.
A tensão começa a se transformar em desespero.
Sara Annemberg morrera sem saber o peso que estava deixando sobre os ombros da filha.
Embaixo da cama, nada.
Ela entra no quarto de Ivan, ao lado, e faz as mesmas coisas com os pertences do irmão.
Todas as roupas no chão, reviradas uma a uma. A mesa, a prancheta. O computador.
Nada.
Ela tenta não se lembrar do apego emocional pelas coisas do irmão e dos pais, mas o mais difícil ainda está por vir.
Alex está parada na frente da porta de seu quarto. Figurinhas de álbuns de desenhos que ela gostava estão coladas próximas à maçaneta. A tinta branca da porta desbotando.
Murilo se sente na necessidade de ajudar.
— Ok, novata, o apartamento é pequeno. O que quer seja, vamos encontrar aqui, ok? Seja forte.
Ela nem mesmo o olha, mas se sente mais leve por Murilo estar ali.
Empurra a porta do quarto, que se abre gradativamente com um rangido.
Sua garganta forma um nó.
Um segundo apenas ela tira para olhar as coisas como um todo - o quarto que acolhera seus choros e lamentos durante toda a quarentena.
E mãos à obra - Maia e Murilo se juntam a ela. Desmontam o guarda-roupas da garota a procura de algo que nem entendem.
Bichos de pelúcia, televisão, materiais da escola, livros, DVD's, quadros.
Nada a remete à Borboletas de Olivia.
Em certo momento, ela para. Um objeto em suas mãos.
Os amigos olham de canto de olho.
Alex tira uma foto de dentro de um porta-retrato quebrado.
Seus olhos marejados ainda distinguem perfeitamente - ela com um ano no colo da mãe. Ivan, com seis, no colo do pai. Os olhos dos quatro fechados por causa do sol. Uma selfie em um dia de passeio no zoológico.
Ela dobra a foto e a coloca contra o peito. Instantaneamente, sente a dor.
Todo o sentimento que segurou desde que Ivan a tirou do bunker dias atrás, toda a dor, todas as lembranças, tudo a ataca sem aviso prévio. Um soluço sai de sua garganta, e ela não precisa mais se esconder dos dois.
Ajoelha no chão, aos prantos, as mãos contra a boca para abafar o choro.
Murilo e Maia não ousam falar nada. Alex havia sido extremamente forte até ali. Ela teve o mundo virado do avesso e não reclamou um segundo sequer.
E lá estava ela.
Em posição fetal no quarto, a foto da família no peito. Os pais mortos. O irmão distante. Ela arriscando a pele ao lado de desconhecidos. O destino de vidas em suas mãos e ela não sabe como ajudar.
Maia se abaixa ao lado da garota. Sem dizer nada, puxa os cabelos emaranhados de Alex para trás, poupando-lhes das lágrimas e lhe dando mais ar.
Alex abre os olhos com o toque da amiga, e como se o Universo quisesse que aquilo acabasse tanto quanto eles, ela vê um livro em meio aos diversos outros no chão. Instantaneamente, para de chorar. Os soluços ainda a assolam.
Ela alcança o livro de capa dura branca e sem título.
Na capa, uma porquinha ilustrada em aquarela com um vestido vermelho. Um livro de colecionador.
Então ela se lembra.
Na contracapa, a primeira frase.
"Olivia não quer ser princesa".
— Cacete. - Ela diz, entusiasmada pela primeira vez.
— O que foi? - Maia olha por cima de seus ombros, e lê a frase.
Olivia. O nome a faz ter esperança.
— O que é isso? - Murilo pergunta.
Alex se levanta, o livro nas mãos.
— Esse foi o meu primeiro livro. Eu nem lembrava mais dele... Mamãe lia quando eu não conseguia dormir até uns quatro anos.
— E daí?
— E daí que essa - ela mostra a contracapa - é Olivia.
Em sincronia, os outros dois se amontoam atrás dela, observando-a folhear as páginas. Tudo volta à memória da garota como um soco que a deixa com falta de ar.
As ilustrações da porquinha brincando com seu irmãozinho, indo ao museu, pintando paredes.
Pintando paredes.
Mais rapidamente, mas com todo o cuidado, ela folheia o livro. Sabe exatamente o que procurar, como se uma chave acabasse de ter sido virada em sua memória.
Em determinada página, borboletas. Olivia gostava de pintar borboletas na parede. Alex adorava aquela parte da história.
Suas lágrimas retornam, mas dessa vez de emoção.
Logo abaixo do desenho, tapando a numeração da página, um bilhete em papel rasgado colado com fita crepe, e a mensagem escrita com a caligrafia da mãe.
"Não tinha dúvidas de que me encontraria, minha filha".
○
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