○14. - Supermercado
(a ilustração da capa é de minha autoria - Maia)
(Maia na imagem abaixo)
Os primeiros raios de sol do dia acordam um a um. Levi mal dormira.
Ele observa o sol nascendo e pintando o horizonte. O mar voltou a ser calmo e sedutor, como se chamasse para um mergulho. O mesmo mar que tentou matá-los há algumas horas, tão indeciso.
Dentro da gruta, Diego refaz as mochilas úmidas e empapadas de água salgada. Faz propositalmente mais barulho do que seria necessário, acordando os outros.
Alex se espreguiça, alongando as partes do corpo doloridas por dormir no chão de pedra irregular. Admira-se com ambos os gêmeos levantando como se tivessem acabado de ter uma noite extremamente agradável. O dia de hoje a intriga e amedronta ao mesmo tempo. Está pronta para rever a cidade em que vivera doze anos de sua vida.
— O que vamos fazer? - Maia pergunta, colocando a arma a tiracolo. Sente-se ainda um pouco envergonhada com a noite anterior, mesmo que soubesse que o pânico fora completamente justificável. Não gosta de mostrar fraqueza.
— Aceito ideias. - Naomi, sentada ao lado dela, recoloca o tênis molhado nos pés. Sente a pressão que não esperava sentir tão cedo. Tinha tudo planejado na cabeça, mas absolutamente tudo dependia de uma bagagem bem montada, que o mar em fúria brutalmente tomara deles.
— Em ordem de prioridade, precisamos de comida, munição, uma troca de roupas seria bom. O que ainda temos? - Diego faz uma lista mental, enquanto recoloca o agasalho preto que havia deixado estendido. Alex observa de canto de olho e algo a intriga. Em seu braço esquerdo, uma linha preta circunda todo seu bíceps. Uma tatuagem interessante.
— Temos o café da manhã. - Rafael empurra para o centro da gruta uma lata de milho recém aberta. - A novata salvou o kit de primeiros socorros. Eu..., bom, na verdade Levi salvou uma caralhada de munição, mas ainda vamos ter que maneirar e... saber dividir, acho que é o jeito.
— Chefia, se me permite a sugestão, - Levi retorna de seu solitário isolamento e sente na pele novamente o frio da gruta. Releva a discussão da noite anterior, como se nada tivesse acontecido. - vamos sobreviver com o que temos. A gente procura comida em qualquer mercadinho de esquina abandonado e vamos direto ao ponto. Não é o fim do mundo, só será uma viagem um pouco mais desconfortável do que esperávamos.
Naomi sabe que ele a está provocando, mas ao mesmo tempo dá uma boa sugestão.
— Sei que dos problemas esse é o menor, mas eu trouxe isso. - Não irá se desculpar pela explosão de raiva, mas ao invés disso tira do bolso um pote circular e transparente, com um conteúdo preto viscoso dentro.
— Boa! - Maia saltita em sua direção como uma criança animada e tira o pote das mãos do loiro.
— O que posso dizer? Gosto de manter tradições.
Maia abre o pote devagar e, sujando dois dedos com a tinta preta, contorna os olhos fechados de Levi com concentração.
— O que é isso? - Alex sussurra para Rilo, quieto até então.
Ele sorri, ansioso para contar histórias do passado.
— Quando começamos a ir para fora arriscar nossos traseiros, pintamos uma vez a cara com lama. Se colocar um capuz e uma bandana no rosto, estará mais camuflada que as próprias sombras no escuro.
Ela observa um pintar o rosto do outro, os olhos ficando escuros como delineadores mal passados e borrados. Murilo se levanta e os segue, rondando o pequeno pote nas mãos de Maia. Ele pega uma pequena quantidade em um dedo e estende para Alex.
— Passa em mim?
Ela hesita um instante, mas tira a tinta de seus dedos e espalha devagar por sua testa primeiro.
— Pareceu uma boa identidade, uma pintura de guerra. Quando voltamos, Júlia lembrou que os indígenas extraíam tinta do jenipapo, uma fruta que tem no pomar. Preparamos uma leva e virou... uma tradição.
Alex sorri enquanto circunda os olhos do garoto com os dedos sujos de jenipapo.
Quando acaba, Murilo agradece e coloca o capuz.
De canto de olho, vê Maia se aproximar dela com os dedos sujos de preto.
— Feche os olhos, novata. É uma de nós, agora.
Mesmo não sabendo bem o que significa, Alex sorri e fecha os olhos, mas antes, vê no punho desnudo da garota um desenho circular, uma linha que o delineia. O mesmo desenho do braço de Diego.
○
Mochilas nas costas - as que sobraram. Preto dos pés a cabeça.
— Ok, repassando. - Naomi sabe improvisar. Ela agacha ao lado da areia e rabisca com o dedo. - Estamos aqui.
Um risco torto representa a costa, um pedregulho é onde estão.
— Das outras vezes que viemos, as patrulhas não se concentraram tanto nas praias, o que me faz pensar que talvez ainda seja a parte tranquila de passar. Alex vivia na Zona Central, certo?
Antes mesmo que Alex possa confirmar, a garota continua. Marca com uma pedra maior o destino deles no rabisco na areia.
— Tá, não é tão perto. Vamos pensar. Precisamos ir pelas sombras, obviamente. Se formos por áreas mais urbanas e com mais prédios, mais chance de nos darmos bem.
— Mais chance de estarem lá também. - Levi argumenta.
— Mais lugares para nos escondermos. Se estivermos em um bairrozinho residencial qualquer e fomos encontrados, estamos mortos. Além do mais, pela cidade podemos achar comida e água. Temos que achar, não vamos passar nem um dia sem.
— E quanto às patrulhas deles? - Rafael pergunta, entretido com o cenário que cria em sua mente.
— Pelo que eu me lembro, a base que eles ocuparam na cidade fica próxima do centro, portanto, mais soldados, e mais arriscado. - Diego complementa.
— É, mas acabamos de invadir o bunker deles. - Maia diz, sentada com as pernas cruzadas e a coluna torta, olhando para cima e fitando os amigos. - Antes eles rondavam por aí sem rumo, procurando hipotéticos sobreviventes. Agora eles sabem que existimos, estarão nos procurando em todo lugar.
Alex engole em seco.
— Então vamos ter que estar preparados. - Naomi conclui. - Diego se lembra melhor da cidade, tome a frente. Eu e Murilo vamos junto, mesma divisão dos barcos. Os outros tomem a retaguarda, fiquem de cobertura. Alex...
Não precisou concluir. Ela tentaria não atrapalhar.
— Todos de acordo?
Quem cala consente. Estão de pé e seguindo viagem.
○
Pés na areia.
Alex curte a praia. Achava até então que nunca mais a veria pessoalmente. Deseja que o mundo caótico seja deixado de lado só por um segundo para ela tranquilamente plantar os pés na areia à beira mar e curtir a imensidão azul - em segurança.
A natureza invadiu toda a cidade, mostrando sua força de resistência em um mundo desabitado. A vegetação cresce por todas as brechas que encontra. As plantas moldam-se à qualquer construção humana e a engolem.
O calçadão está vazio. O vento vindo do mar sopra as folhas caídas das árvores que preenchem o chão por completo. Seria bonito, se não tivesse um ar tão mórbido e abandonado. Carros deixados para trás distribuem-se nas ruas da orla da praia grande de Amanaci.
Silêncio.
Eles seguem em frente. Pulando a mureta da praia ao calçadão, os setes seguem em frente. Com passos calculadamente leves e inaudíveis, misturam-se ao cenário.
Parecem realmente saber o que fazer. Se não é ensaiado, então seus instintos estão sincronizados. Em uma formação semelhante a um prisma, com Diego na fronte e Levi na retaguarda, estão com as armas nas mãos. Um calafrio percorre toda a espinha de Alex. Algo lhe diz que sacar sua arma é uma boa ideia, mas é apenas um enfeite entre seus dedos.
Ela deseja que tivesse tido mais tempo para aprender a se defender. Pode não ser uma boa atiradora, pode não ser forte, mas sabe que é inteligente e aprende rápido. Teria que se virar.
— Não estão aqui. - Naomi cochicha. - Tem um mercado logo ali.
Há poucos metros deles, o comércio à beira mar se inicia. Um supermercado local com a fachada empoeirada e quase ilegível. Ao lado dele, um estacionamento para clientes com carros abandonados.
— Estamos muito expostos aqui. - Maia comenta.
— Não tenho o mapa da cidade na minha cabeça, eu não sei onde têm outros mercados. Nós vamos entrar nesse aí . - Naomi decide.
— Tá. - Diego concorda. - Pelo estacionamento temos mais cobertura.
Eles se espalham pelo estacionamento, observando possíveis entradas para o galpão. Quebrar janela parece a opção mais fácil, mas também a mais barulhenta. Nenhum acesso externo - pelo menos visível - ao telhado.
Alex pensa em como pode ser útil.
Lembra-se de filmes e de como os protagonistas facilmente invadiam e fugiam de lugares complicados, e uma ideia lhe surge na cabeça.
Ela não é pequena, mas é menor que os outros caras. Apesar de ser claustrofóbica, a ideia lhe parece perfeita. Tem um senso de se mostrar independente dos outros que a impede de pedir ajuda. No chão do estacionamento, por entre todo o lixo acumulado, ela encontra uma garrafa quebrada, um pedaço de vidro perfeito.
Desengonçadamente, sobe na tampa da lixeira, logo abaixo dos dutos de ventilação. Para sua sorte, os parafusos já estão desgastados. Estrategicamente posicionando a garrafa quebrada entre a grade do duto e a parede, ela alavanca os parafusos e os tira um por um. Com as duas mãos, tira devagar a grade. O estalar do metal alerta os outros.
— Legal. - Diz Rafael, subindo na lata de lixo ao lado de Alex. Eles olham para dentro do tubo de ventilação escuro e vazio. - Maia, vai lá. - Ele provoca a garota.
— Eu não, vai você!
— Eu vou ficar entalado, você que é a pequena, a gente te trás pra situações assim!
— Eu voto pra tirarmos na sorte! - A garota defende-se.
— Eu vou. - Diz Alex. Os outros param a discussão e a olham.
— Certeza? - Pergunta Naomi, se aproximando dela. Rafael já descera da lata de lixo.
— Claro, só não vou pensar muito. - Ela solta um riso forçado. De dentro da mochila, tira a lanterna. Aperta para ligar, bate duas vezes. Nada. - Não custava tentar.
Ela entrega a mochila para Naomi. Se arrepende imediatamente em ter se oferecido.
— Leve isso. - Levi grita. Agora próximo a ela, estende uma faca. - Mais útil que essa garrafa aí.
Ela agradece com um aceno de cabeça e pega a faca.
Olha bem fundo no tubo e se impulsiona para dentro. Com um leve empurrãozinho em seus pés, está dentro.
Se arrastando como uma minhoca, a sensação é a mesma que passar no túnel para fugir do bunker. Talvez nem tão pior. As paredes de metal não parecem que irão desmoronar, e ela sente o ar entrando de algum lugar.
Assim que seus olhos se acostumam com o escuro, se arrasta determinada para frente, ignorando possíveis insetos escondidos ali dentro por anos. Afasta o pensamento da cabeça, e o mesmo a motiva a ir mais rápido. Logo a frente, uma fraca luz entra no túnel, vinda de baixo. Sua saída. Ela se arrasta para lá.
Logo abaixo dela, outra grade. Ela olha para dentro - as prateleiras parcialmente vazias de um mercado abandonado. A luz do dia entra pelas pequenas janelas próximas ao rodateto.
Com o máximo de agilidade que a luz e o espaço a permitem, ela retira os parafusos da grade estrategicamente, evitando ao máximo fazer barulho. Devagar, retirando o último parafuso, a grade afunda com o peso de seu corpo. Milésimos de segundos depois, ela despenca. Alex solta um grito abafado e enfia o tronco para pegar a grade antes que caia no chão, com sucesso.
— Tudo bem aí? - Uma voz masculina vindo de fora.
— Sim. - Ela responde. Fica aliviada de não ter deixado a grade cair por metros até o chão. O barulho seria abismal e talvez tivesse sido mais eficaz quebrar uma janela.
Recolocando a grade dentro do tubo, ela se arrasta de modo que suas pernas desçam primeiro. O chão está longe abaixo dela, as prateleiras também. Nada a apoiando. Teria que saber cair.
Devagar tenta esticar os braços para baixo e segurar o peso do próprio corpo, mas não consegue. As mãos escapam lá de cima e ela vai direto ao chão. Cai de pé e se joga sentada para trás, abafando um grito de dor pelas articulações dos joelhos e tornozelos. Olha para cima. O duto de ar acima de sua cabeça. Ela conseguira, está dentro do mercado.
○
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