Tylenol
- Eu vou ficar louca.
Foi o que Cheryl disse, após retirar a décima sexta bala do corpo de Frank, com um suspiro trêmulo. Mal sabia ela, mas já tinha enlouquecido faz muito tempo.
Demian estava em pé ao lado, com uma garrafa de vodka na mão, suando frio feito um porco antes do abate, se é que porcos suam. Tinha começado a ajudar a vampira com as balas, mas teve que parar, pois estava começando a se desesperar um tanto com a situação toda. Ao Cheryl jogar o projétil número desesseis no chão, ele acaba fazendo um barulho estranho quando entra em choque contra a madeira mofada. Frank não diz nada sobre a remoção de mais uma bala. Ele desmaiou na retirada da oitava, então seria impossível que dissesse algo, mesmo se quisesse. Ele podia ser resistente e imortal, mas não indestrutível, e de toda forma sua resiliência tinha sido completamente esmigalhada com toda aquela dor infernal sentida de uma só vez. E convenhamos, era um pinça de fazer sobrancelha e uma faca enferrujada, ele era um santo por ter se aguentado acordado tanto tempo.
- Você acha que ele morreu? - Perguntou Demian, meio nervoso enquanto dava um gole na garrafa de vodka, que tinha sido usada antes para esterelizar da forma mais idiota possível os instrumentos da cirurgia.
Cheryl pareceu pensar por um momento em uma resposta, enquanto enfiava a faca no décimo sétimo buraco de bala, empurrando o objeto porcamente para cima. Demian não ajudava muito em mantê-la calma naquele momento ao fazer esse tipo de pergunta, ainda mais com aquelas três pessoas desmaiadas ali, o que configurava aquela situação como desesperadora, e certamente era, já que as mãos dela tremiam tanto. Ela só queria ter se casado. Ter terminado a porcaria daquele casamento estúpido e humano, com o noivo estúpido e humano dela, pra viver uma vida estúpida e humana até que ele percebesse que ela não aparecia em espelhos, que nunca saía na luz do sol e que tinha alergia à alho.
Mas ela não podia se lamentar para sempre.
- Não sei. - Cheryl finalmente disse - Ele não parece ter coração e nem pulso, mesmo antes antes de desmaiar. Sei lá como se vê como uma criatura dessa tá viva, eu não assisti filme de et o suficiente para isso. - Ela estava com fome, e realmente precisava se concentrar para não se desviar de sua função enquanto sentia o cheiro de sangue de forma tão intensa. O cheiro não vinha de Frank, pois não havia nenhum resquício sanguíneo em seu corpo (e talvez isso fosse a coisa mais desconcertante em fazer uma cirurgia nele, pois a falta de veias com fluídos em sua carne só reforçava a ideia dele ser um alien ou coisa pior, tipo sei lá, um reptiliano) O sangue vinha da cabeça ensanguentada de Loydie depois de uma garrafada bem dada por Cheryl, e do nariz de Ulukie, que parecia ter quebrado com o soco da vampira e do qual agora escorria um sangue estranho de cor violeta. Nenhum dos dois acordados ali pareciam se importar muito com esse último detalhe, ou ao menos ter percebido, já que estavam devidamente entretidos em suas agonias pessoais.
- Preciso de seu sangue depois, Demian. Eu estou cansada e tonta, e eu ainda preciso resolver a coisa do casamento com meu noivo. Ou marido. Namorado. Sei lá, não sei nem se temos algo ainda. - Deu um suspiro - Se você estivesse se casando e algo assim acontecesse você acha que no final iria dar tudo certo? - Ela perguntou fingindo descaso, depois de jogar a bala de número 17 no chão, e começar a trabalhar na número 18, que estava abaixo do peito de Frank.
Demian bebeu mais um gole de vodka, e apreciou o gosto ruim de bebida na boca, enquanto ela descia pela sua garganta de forma amarga. Era assim que ele lidava com possíveis traumas e stress: Se embebedando e fingindo que não aconteceu, pois era muito mais fácil ficar bem quando não se encara os problemas. Não vejo, não existe; ele levava isso como lema pessoal.
- Não sei. Eu sou um demônio agora, se eu pisar o pé Ele vai mandar tacarem fogo em mim, então não sei se daria pra eu me casar - Demian também tinha outro problema, além do alcoolismo pós-stress: Fazer comentários completamente desnecessários em conversas sérias. Era quase como questão de saúde, sentia que se não fizesse uma piada sem graça a imunidade baixaria só de sofrimento. De todo modo, Cheryl o olhou de forma tão esperançosa por uma resposta que a ajudasse, após jogar com um pouco de raiva a décima oitava bala no chão, que Demian decidiu continuar falando. - Não sei Cheryl. Não sei como eu lidaria com isso, muito menos a pessoa. Sei lá, no teu caso ainda é um humano. Eles são todos ferrados da cabeça. - Terminou de falar, com a voz evidenciando pena e incômodo, dando um outro gole da garrafa.
Cheryl apenas respirou fundo, e continuou cavando e arrancando balas como se estivesse caçando ervas daninhas. Demian virou o resto da garrafa como se tomasse coragem e pegou a pinça, começando a tirar uma bala no ombro do estagiário.
Logo, seguiram trabalhando em silêncio.
***
Ouviu-se um barulho enquanto Demian retirava a bala número 35 do corpo de Frank. Cheryl tinha parado com a cirurgia, pois agora estava muito ocupada digitando mensagens furiosas em seu celular de tela rachada, com seus polegares vestidos de luvas de seda branca manchada de sangue que faziam o aparelho escorregar um pouco em suas mãos. Os dois tiveram o olhar atraído pelo barulho, e viram que Loydie, o dono da metralhadora que havia sido amarrado feito um pernil gigante, tinha se jogado da bancada, atingindo o chão.
Três segundos de silêncio, e se entreolharam. Não tinham pensado no que fazer quando ele acordasse.
- ALGUÉM ME SOLTA NESSA DESGRAÇA EU TO CANSADA DE CADÊ ARETHA MINHA CABEÇA DÓI QUEM FOI O FILHO DA PORRA QUE CARALHO AONDE EU TÔ CADÊ MINHA METRALHADORA O QUE FIZERAM COM MINHA METRALHADORA EU VOU ENFIAR ELA NO CU DE QUEM ME AMARROU E SUMIU COM A PORRA DA MINHA METRALHADORA ESSA DESGRAÇA DESSE CARALHO QUE BOSTA CADÊ ARETHA ARETHAAAAAAAA QUE PORRA PORRA - Loydie disparou-se a berrar, como um despertador que não dá pra desligar de jeito nenhum. Continuou gritando, e os xingamentos se transformando em apenas um amontoado indecifrável de palavras vociferadas ao ponto de que não se fosse mais possível documentá-las em texto.
Cheryl se arrependeu de ter a benção da audição.
- PARA DE GRITAR E XINGAR CARALHO - Demian gritou e xingou, enquanto retirava uma das últimas seis balas, tentando se concentrar. O chão agora tinha munição suficiente para matar uns quinze dinossauros. Ou quarenta, dependendo do tipo, pois existem dinossauros pequenininhos.
- A VAI TOMAR NO CU DO AH VAI SE FUDER ME SOLTA ME SOLTA ME SOLTA - A gritaria prosseguiu, enquanto Loydie se debatia e se contorcia no chão, com os braços e pernas amarrados. Cheryl colocou o celular no balcão com um suspiro enraivado. Parecia que o noivo a tinha bloqueado no Whatsapp. Cheryl não se surpreendeu, pois a sogra sempre colocou na cabeça dele que ela era uma bruxa, e como ele vivia das visões de mundo da mãe, deve ter feito disso um fato após um discurso de ódio bem elaborado e acalorado sobre a feitiçaria de Cheryl e seu papel na tragédia do casamento.
Cheryl se abaixou em seu vestido de noiva destruído, ficando de cócoras ao lado de Loydie que prosseguia gritando. Segurou com raiva os cabelos curtos e cacheados do Nahuatl no chão, levantando sua cabeça e em consequência seu corpo como se fosse uma mala de mão, e ficou a encarando, com uma expressão cansada de desgosto. Loydie parou de gritar tão intensamente, já que seus cabelos eram puxados de forma tão grotesca ao suportar todo o peso de seu corpo, e apenas continuou rosnando, encarando Cheryl com aqueles olhos vermelhos assustadores. Não iria admitir, mas a vampira lhe dava um pouco de medo.
Cheryl ergueu a faca de serra enferrujada com uma cara de que iria talhar o rosto todo de Loydie, mas apenas suspirou novamente, quase que com pena de si mesma e da humanidade.
- Se você parar de gritar eu corto essas amarras e a gente te devolve pra Aretha. - Cheryl não sabia quem diabo era Aretha, mas parecia ser alguém importante - Mas pra isso você precisa colaborar com a gente. Porquê invadiram meu casamento e o que querem com aquele cara metralhado ali? - Ela disse, num tom estranhamente calmo, apontando pra Frank com a mão que segurava a faca. Demian deu um joinha pra Loydie, ainda arrancando balas.
Mas Loydie cuspiu na cara de Cheryl.
A vampira jogou a criatura no chão com violência. Limpou o rosto na luva, e pegou a coisa raivosa no chão, novamente pelos cabelos, agora a puxando pra atravessar a portinha do balcão. Demian ficou em choque com a cena de novela mexicana, mas acabou rindo, e continuou arrancando balas, agora na antepenúltima.
- Vou te trancar no banheiro. - Cheryl deu o veredito, quando abriu a porta que dava para dentro da parte residencial do bar. Abriu a portinha dobrável de plástico no canto da parede de concreto, e jogou Loydie dentro do banheiro como se fazem naqueles filmes culto violentos.
Loydie gritou mais trinta dúzias de chingamentos variados. Ofendeu noventa das gerações passadas da família de Cheryl, ofendeu o ar, a terra e o mar, e qualquer outra coisa que restasse no mundo pra ser ofendida. Rosnava que nem bicho, e caiu que nem um pedaço de bosta no box do banheiro meio imundo ao ser jogado por Cheryl no cômodo.
Cheryl fechou a porta e voltou para o bar. Demian retirou a última bala e deu um suspiro.
- Acabou. Agora é só esperar que ele esteja vivo. - Disse, arrumando os óculos de lentes vermelhas na cara. Se ajeitou sentado no chão, apoiando as costas no balcão amarelo gema.
- O que fazemos agora? - A vampira perguntou, pegando uma garrafa de alguma bebida transparente da estante do bar. Se sentou no chão de madeira mofado, ficando ao lado de Demian e a abriu. Bebeu um gole direto do gargalo. Cheryl compartilhava dos mesmos princípios de Demian para lidar com problemas e traumas.
- Não sei. Esperamos o carinha ali acordar. - Apontou com a cabeça para Ulukie, e arregalou os olhos por um instante ao ver o estado de seu nariz, juntamente com o sangue de cor esquisita - Tu quebrou o nariz da criança, Cheryl. - Ele disse, com uma voz em meio a um tipo de lamento risonho.
- Nossa. Que droga. - Deu mais um gole. Ofereceu a garrafa pra Demian, que pegou prontamente. Ao fundo se ouvia gritos furiosos de Loydie, e agora até as pessoas que não tinham nascido ainda tinham sido ofendidas por seus xingamentos. - Devíamos procurar remédio pra o cara das balas. Se ele não tiver morrido, é claro.
- Deve ter algum Tylenol aí.
- E Tylenol melhora dor de ferimento de bala?
- Deve né. É pra dor muscular, e a bala foi no músculo, então faz sentido.
- ... É. Deve ser.
Cheryl sabia que a lógica de Demian não fazia sentido, mas não tinha nenhum outro plano em mente. Demian acreditava piamente no poder do Tylenol, e deu outro gole na garrafa. Ulukie permanecia desmaiado, e algumas moscas começaram a pousar no sangue que escorria de seu nariz. Parecia um cadáver, e Demian deu uma risada engasgada, pois cadáveres eram engraçados e tristes. O demônio acabou dando um último e longo gole, pois morria de medo de cadáveres, mesmo assim.
Cheryl pegou a garrafa de sua mão e bebeu um golinho, se levantando.
- Vou procurar Tylenol.
Demian logo concordou com um joinha, tentando não olhar para Ulukie de novo.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro