Ruim demais pra morrer
Ulukie estava cansado. Estar cansado já tinha se tornado um estado de espírito para ele, mas ele estava mais cansado do que o usual, o que era muita coisa.
Quando o elevador apareceu na porta de seu quarto, ele pensou que seria uma coisa rápida, apesar de estar no ramo faz muito tempo pra saber que nunca é uma coisa rápida, já que sempre acontece algo que para consertar leva mais de duas horas, o que já configura muito tempo pra ele. Frank não o tinha chamado ainda e nem tinha feito nenhuma atualização preocupante sobre o rumo da história de Charlie durante todo aquele tempo, o que só fazia Ulukie se preocupar mais, pois sempre que as tragédias demoram para acontecer é porque a tragédia vai ser muito trágica, e ele tinha coração fraco pra esse tipo de coisa. Tanto estresse uma hora ia acabar o matando, se é que já não tinha matado.
Mas ele não achou que ia ser tão ruim. E olha que ele já tinha as expectativas pessimistas bem lá em cima, para não se assustar quando visse alguma merda pesada acontecendo na história do demônio. Durante suas duas décadas de vida, Ulukie tinha aprendido a sempre esperar o pior, e sempre funcionava, ao ponto de que quase mais nenhuma desgraça o atingia, mas quando ele entrou no elevador a desgraça foi demais comparada às expectativas dele.
Pois ficou preso no elevador por dois dias.
De início, ele pensou que ia morrer. No meio do tempo, teve certeza. Chamou o suporte do elevador interdimensional pelo interfone debaixo dos números dos andares, e Ty, a mulher do suporte, só falou que teve alguma merda fudida com o espaço tempo e que a viagem entre dimensões tinha se fudido junto. Ulukie se sentou no canto do elevador, chorou um pouco, treinou tocar gaita e atirou contra as paredes de um metal estupidamente forte para descarregar seu tédio e descontrole emocional enquanto esperava o elevador voltar ao funcionamento, logo começando a sentir fome e em consequência sentindo medo de morrer de inanição, mesmo que no final tudo tenha ficado bem. Ulukie achava que já tinha aceitado a morte com muita maturidade depois de tantos anos, mas inanição não estava nos seus planos, então achava melhor evitar.
Quando finalmente o elevador voltou ao seu funcionamento normal e chegou aonde devia chegar, ele se levantou, puto. Mal tinha conseguido dormir naqueles dois dias, e apesar de isso já ser de praxe em seu dia-a-dia, já que ele nunca conseguia dormir bem de toda maneira, ninguém se acostuma em estar em claro por tanto tempo e ele não era nenhum tipo de exceção a essa regra. E além de tudo, ele estava minimamente preocupado com aquela situação. Na verdade, muito preocupado, mas não iria demonstrar isso bem pois tinha muitos outros sentimentos tomando conta de seu corpo diminuto quando viu a desgraça que estava naquele salão de festas desafortunado. Frank todo metralhado, gente desmaiada, um cara com óculos muito bonitos e uma outra pessoa desacordada, que ele tinha certeza absoluta que não era daquela dimensão. Logo, devido a toda a situação e a fome insuportável a qual sentia, apenas bradou a plenos pulmões segurando as pistolas na mão que nem um descontrolado, o que não era muita mentira sobre a sua situação mental naquele momento.
- MAS QUE DIABO ACONTECEU AQUI?!??
Ulukie tinha passado os últimos dois dias pensando em todas as coisas ruins que poderiam ter acontecido. Principalmente no apocalipse. Mas quando viu alguém de outra dimensão ali, alguém de outra dimensão que não era o Frank, ele percebeu que não tinha pensado em todas as probabilidades, já que pensou que aquela probabilidade em específico não poderia ser tão provável assim.
Mas era exatamente o que estava acontecendo.
Frank se esforçou pra focar o pensamento em apenas o que estava acontecendo ao seu redor, principalmente em Ulukie que tinha acabado de chegar, e não na dor agonizante que estava sentindo depois de todos aqueles tiros e balas ainda cravadas em seu corpo. Mas era difícil. Mal tinha entendido uma palavra que o chefe tinha dito, como se estivesse com a cabeça debaixo d'água e todo o som da superfície apenas viesse de forma distorcida e abafada ao seu encontro. Sentia que ia afundar no chão. Mas não ia gritar.
Demian encarou Ulukie, ofegante e com um singelo medo dele ser mais um atirador maluco ali, pois era o que parecia enquanto segurava aquelas pistolas bradando feito louco. Logo o demônio se levantou, meio desengonçado como se tivesse acabado de acordar, enquanto ainda em um espécie de choque depois de tudo que tinha acontecido. Demian não gostava da polícia ou de qualquer figura de poder, e mesmo que aquele cara com as armas parecesse algum tipo de policial estranho vestindo roupas de cafetão, Demian resolveu confiar nele. Ninguém sabe o que fez Demian associar a imagem de Ulukie à de um policial, mas a mente dos demônios é conturbada demais para ser explicada logicamente.
- ... Apareceu um portal e...
E foi só isso que Demian disse, gesticulando até demais para uma frase tão curta. Não sabia muito como explicar aquilo tudo. Logo ele foi voltando a si e percebeu que sim, tinha aparecido um portal, sim, Charlie tinha sido sequestrado, e que sim, o cara maluco da metralhadora tava desmaiado junto de Cheryl no chão. Isso fez Demian entrar em um pequeno choque de realidade e dar uma risada nervosa.
- E meio que estamos fudidos. -Concluiu, ainda com o sorriso nervoso na cara, colocando as duas mãos na cintura.
O cara no elevador praguejou com a explicação não muito explicativa de Demian. E foi só isso que o demônio teve dele, pois Ulukie logo foi em direção à Frank no chão, que estava largado ali de forma meio torta e encostado contra a parede, feito um bêbado de virote. Ele se agachou e segurou os ombros do estagiário, tentando o fazer olhar para ele.
- Frank. - Disse, o encarando, sério. Como Frank estava em sua forma de caveira, não era possível observar nenhuma expressão em seu rosto, mas era mais do que óbvio de que ele não estava em seus melhores dias. Encarou o chefe, tentando prestar atenção.
- Tá me ouvindo? - Ulukie disse, ainda segurando seus ombros. Era meio claro que estava preocupado, apesar de tentar não parecer tão desesperado quanto realmente estava, mesmo tremendo um pouquinho.
- Sim. - Frank murmurou, se acostumando um pouco com a espiral infinita de dor em que se encontrava.
Ulukie deu um suspiro de alívio quase imperceptível, e se virou pra Demian, que dava toquinhos com o pé no corpo desmaiado do atirador, como se conferisse ser de verdade ou algo do tipo.
- Pega um desses panos que tão cobrindo as mesas não destruídas e amarra esse cara. Ele é o que saiu do portal? Cadê o outro demônio lá? Quem é essa mulher aí? Ela morreu? Quem é tu? Eu quero respostas rápidas, se não entendeu ainda. - Ulukie disse para Demian, ainda abaixado e inquieto perto de Frank, enquanto pensava em um jeito de tirar aquelas balas dali.
Demian não gostou de receber ordens. Encarou meio desconfiado Ulukie, já que não confiava em policiais, mas acabou amarrando Loydie da melhor maneira possível com um dos lençóis, enquanto tentava explicar o que diabo aconteceu, olhando meio preocupado pra Cheryl que continuava terrívelmente pálida e com a chicotada na cara regenerando de forma bem lenta.
- Eu não sei, eu só sei que o Frank entrou no banheiro onde eu tava, só que ele parecia o Charlie, e eu acho que o Charlie tinha possuído ele, e quando eu vi tinha um portal e uma mulher e um cara com uma metra-
Demian parou imediatamente de falar quando ouviu as sirenes de polícia vindo ao longe. É claro que a polícia ia aparecer num tiroteio daqueles, e só não apareceu antes por tudo ter acontecido rápido demais e o departamento de polícia não ser lá tão eficiente. Ulukie não sabia muito bem do que se tratava aquele barulho de sirenes, mas percebeu o olhar de Demian então pensou não ser uma boa ideia continuar ali. Tinham uma mulher que parecia morta, um homem caveira e um cara com presas amarelas saindo pra fora da boca, e eles pretendiam ir parar na área 51 ou coisa pior.
- Sabe algum jeito da gente sair daqui rápido?!? - Perguntou Ulukie, com a voz meio esganiçada. Não sabia se era confiável entrar novamente no elevador, pois não queria perder os últimos 28 dias que lhe restavam em mais uma confusão do espaço-tempo.
- PEGA ESSAS VELA AÍ, PEGA UMAS SEIS E COLOCA AO REDOR DO CÍRCULO QUE EU VOU FAZER, OK? - Demian gritou, se referindo à algumas velas ainda acesas da decoração do casamento. Sujou a mão com o sangue que ainda escorria da cabeça de Loydie e foi desenhando no chão branco de mármore um círculo meio esquisito com alguns símbolos no meio. Mordeu um pouco do dedo pra jogar uma gota de sangue no meio, e Ulukie correu pra pegar as velas. Frank observava tudo, já que ainda estava meio incapacitado de existir direito.
Ulukie não sabia exatamente o que estava fazendo, mas o barulho das sirenes estava cada vez mais perto. Quando o círculo terrivelmente torto e mal feito foi devidamente terminado, o desenho no chão brilhou em uma luz púrpura gay. Demian falou pra Ulukie ajudar ele a carregar o povo desacordado e impossibilitado de existir direito por culpa da dor para o centro do círculo, e logo os cinco estavam ali dentro. O demônio apagou uma parte do círculo com o pé e tudo brilhou ainda mais, e bum, eles não estavam mais lá.
***
Tudo escureceu por um segundo, e logo estavam no Vazio, apenas alguns metros de distância do bar que estava de portas abertas, sendo a única coisa que emitia luz ali. Cheryl e Loydie permaneciam desacordados e Frank se segurou em Ulukie, se levantando com dificuldade.
- Chegamos no Vazio. Não acho que dê pra abrir um portal aqui. Né? Eu não entendo muito de portais. - Demian disse, pegando Cheryl no colo, mais como um saco de batatas que tudo, mesmo ele tentando ser minimamente cuidadoso. Ulukie pegou Loydie pelo pé, e saiu o arrastando pelo chão. Não ia dar pra carregar ele no colo e servir de apoio pra Frank. Era baixo demais pra isso, e ele apenas não tinha paciência.
- Você ainda não me deu nenhuma informação decente. Eu preciso sa-
Ulukie começou, mas logo foi interrompido pela voz meio rouca e cansada de Frank.
- Sequestraram o Charlie. Queriam me pegar mas acabaram pegando ele, servindo quase como uma isca.
Ulukie ficou parado, pensando nisso por um tempo, meio que tentando ligar os pontos, mas logo continuou arrastando Loydie pelo chão e sendo apoio de Frank, enquanto Demian ia na frente carregando Cheryl em seu vestido de noiva completamente destruído.
- Esse cara aqui é da tua dimensão, né? - O mini chefe perguntou, apontando pra o atirador em modo berserk que segurava pelo pé.
- É. Ele e a outra que veio junto.
- Eu não tô entendendo nada da conversa de vocês, sinceramente. - Demian disse, entrando no bar e logo colocando Cheryl delicadamente sobre o balcão, encarando o rosto dela pra ver se ainda tava viva, pois não parecia. Ulukie apenas largou Loydie no chão, que amarrado naquele lençol de mesa rendado com a cabeça sangrando e tudo isso, parecia um porco sendo levado ao abate. Frank se forçou a sentar em uma cadeira, ainda tremendo. Ulukie estava com a cabeça a mil, alternando em olhar preocupado para o estagiário e com nojo para o demônio.
- Se tu não vai ajudar tenta não atrapalhar porque eu tô tentando pensar em alguma coisa. Toma conta dessa mulher morta enquanto isso, e me arranja uma pinça e algum remédio de dor. Aqui tem remédio de dor né? E porquê diabo tu trouxe um corpo de uma mulher morta? - Ulukie estava tremendo de nervoso enquanto falava, pois mal conseguia organizar seus pensamentos. Demian estava nervoso também, mas apenas mordeu novamente o dedo pra que sangue saísse e pingou uma gota perto da boca de Cheryl. Ulukie encarou a cena com confusão e um pouco de nojo, que nem quando se lê fanfic hot do Restart escrita por menina de 11 anos. Frank apenas deu um suspiro.
- Me diz o que merda tu tá fa-
A fala de Ulukie foi interrompida pela cena de ressurreição meio violenta de Cheryl, que só faltou arrancar a mão de Demian com mordidas. Demian gritou, Ulukie gritou e Frank tomou um susto mínimo pois não estava prestando muita atenção, já que continuava preso na espiral de dor que só se afunilava a cada minuto.
- SOLTASOLTASOLTASOLTASOLTASOLTA - Foi a sequência amálgama de palavras gritada por Demian, enquanto chacoalhava a mão em desespero na esperança de que os caninos de Cheryl desgrudassem dali com o movimento. Ulukie quase caiu desmaiado pra trás, pois jurava que ela tinha morrido, e mortos não costumavam cravar seus dentes nos outros. Cheryl achou o escândalo meio ridículo, mas logo soltou a mão de Demian, encarando ele com um pouco de desgosto, os olhos meio vermelhos.
- Quem é o porteiro de maquete? - Cheryl perguntou, apontando com o queixo pra Ulukie. Normalmente ela não falaria algo assim, mas porra, ela tinha levado tiros, uma chicotada na cara, tinham destruído o casamento dela e ela estava faminta. Qualquer um estaria puto numa situação dessas.
Ulukie respirou fundo. Odiava ter que lidar com gente.
- Ok. Alguém pode me ajudar a cuidar do Frank, prender direito esse cara que ficou pra trás, E ME CONTAR DIREITO O QUE DIABO ACONTECEU PRA PENSARMOS EM UM PLANO DE AÇÃO? - Pela oitava vez no dia, Ulukie estava perdendo a paciência. Cheryl suspirou e se sentou no balcão, péssima, e deu um resumo rápido de tudo o que sabia e se lembrava que tinha acontecido, e Demian completou com o o ponto de vista dele. Cheryl apenas suspirou de novo ao saber do sequestro de Charlie. Mas que inferno tava a vida dela.
- E o que você acha que a gente pode fazer? Um funeral pro Charlie e sei lá, mandar esse cara apagado aí pra Cuba? - Cheryl disse, enquanto procurava alguma coisa debaixo do balcão.
- O Charlie não morreu. Ele é ruim demais pra a morte querer ele. Ruim demais pra morrer. - Demian disse, enquanto amordaçava o cara desmaiado, sem nenhum grande motivo, além de que ele nunca tinha participado de um sequestro não intencional direiro então estava apenas seguindo o que via nos filmes. E também porque achava meio legal.
- Eu preciso que alguém me apague. - Disse Ulukie, pensando alto, ainda na frente de Frank e encarando a maioria dos ferimentos dele, inquieto, batendo o pé no chão. - Tu não achou nada que preste aí não, mulher que não morreu?
- Achei uma pinça daquelas pequenas de fazer sobrancelha, uma pexeira meio enferrujada e também tem vodka. Vai ter que servir. Eu vou usar o pouco que vi em Greys Anatomy, então não tenha muitas espectativas. - Cheryl disse, colocando as coisas que mencionou em cima do balcão. Não estava muito empolgada em arrancar balas de alguém, mas agora ela apenas estava seguindo o fluxo das coisas, e as coisas estavam fluindo para essa direção. As coisas não tinham muito bom gosto de que direção fluir, obviamente.
Frank estava acordado, infelizmente, e apenas não conseguia pensar muito sobre toda a situação para opinar decentemente ou algo do tipo, como dizer que parecia uma péssima ideia e que teriam que esterelizar aquela faca antes. Apenas se mexeu um pouco na cadeira, se concentrando em algum ponto fixo pra esquecer a dor, e ficou deixando a vida levar ele. A vida era meio malvada.
- Serve. E eu preciso que alguém aqui me apague. Eu vou tentar usar a conveniência do roteiro do narrador pra conseguir alguma coisa com o outro demônio lá, e talvez saber aonde exatamente ele foi parar.
Cheryl saiu de trás do balcão, em seu traje de noiva cadáver, com a maquiagem borrada e a chicotada na cara quase sumindo, ainda bem pálida. Parecia uma enfermeira demoníaca, ainda mais agora que iria tentar tirar as balas de Frank, com aquela pinça minúscula, uma garrafa de vodka e uma faca enferrujada. Tudo aquilo tinha tudo pra ser um grande desastre, e ela estava com a nervos a flor da pele. Demian logo terminou de amarrar novamente seu prisioneiro e o colocou em cima do balcão como se fosse um pedaço gigante de presunto, meio orgulhoso de seu trabalho.
- Você não fala coisa com coisa. É pra a gente te dar um boa noite cinderela? De que isso vai adiantar?
Ulukie simplesmente não suportava uma palavra de Demian. Nem Demian uma palavra de Ulukie. Era ódio a primeira vista.
O chefe de Frank apenas revirou os olhos e encarou Cheryl, agora ajoelhada na frente do estagiário pra tirar cada progétil da carne do cara da forma mais horrenda possível. Ulukie sentiu um arrepio percorrer a espinha. Não queria que aquela criatura ali sofresse mais. Não gostava de ver aquela criatura ali sofrendo mais. Conhecia Frank tempo suficiente pra saber que estava tão fudido quanto ele, ou até mais, e isso o deixava nervoso. Se virou novamente pra Demian.
- Me dá um soco bem encaixado no queixo pra eu desmaiar. Eu vou ver se encontro o demônio lá em sonho. A gente tá num livro, e isso vai gerar uma oportunidade de uma bela conveniência narrativa e eu vou ver um jeito do que fazer.
Demian encarou Ulukie com cara de cu. E deu um soco na cara dele, sem mais nem menos. Ulukie só pende um pouco pra trás segurando o rosto, com um barulho de dor. Não tinha funcionado muito bem.
Cheryl começou a odiar todos os homens do mundo durante todo aquele lenga lenga, enquanto ela fazia o trabalho complicado. Fez um sinal pra que Frank esperasse um pouquinho, se levantou e meteu um soco na cara de Ulukie, que caiu duro no chão.
- E VOCÊ CALA A BOCA E ME AJUDA SE NÃO EU QUEBRO TUA CARA TAMBÉM. - Gritou para Demian. Cheryl estava nervosa com sua função de arrancar balas. Frank não estava lá mais em sua plena consciência pra notar o que estava acontecendo em sua plenitude então não teve nenhuma grande reação. Demian mordeu o lábio, meio assustado, e se agachou junto com Cheryl, para ajudar a arrancar balas do homem caveira.
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