Que os mortos enterrem seus mortos
Aretha limpou as botas sujas de sangue de demônio no chão de pedra, esfregando os pés contra a rocha repetidas vezes. Logo, abriu vagarosamente a porta de ferro que se arrastou de forma débil pelo chão causando um barulho irritante de metal contra rocha, e a fechou, imediatamente começando a andar com passos largos pelo corredor, esperando que conseguisse fugir de quem tinha ouvido chegar, mesmo que tivesse certeza de que não era possível.
Sentiu uma mão tocar seu ombro a puxando para trás, e logo a respiração do dono da mão estava contra seu pescoço. Parou de andar, tensa. Nem tinha percebido que ela já havia chegado ali, e não perceber coisas assustava Aretha.
Ela estava muito perto, perto até demais, o que Aretha com o passar do tempo aprendeu que era uma situação perigosa de se ficar. Era silenciosa como um fantasma, mas um fantasma que podia fazer um estardalhaço infernal com um estalar de dedos se lhe bem entendesse ou se o clima estivesse agradável para isso. E um fantasma tão poderoso assim também assustava Aretha.
- Você não pode evitar as perguntas para sempre. Elas sempre chegam, não importa o quanto corra, apesar de eu já saber as respostas.
Aretha ouviu a voz melodiosa cuspir palavras contra seus ouvidos, ainda segurando seu ombro, a boca perto de sua orelha. Era um tom doce e venenoso, e mesmo ela que não demonstrava facilmente os sentimentos na frente de ninguém, prendia a respiração ao estar na mesma sala que aquela pessoa, ainda mais depois de tudo o que tinha acontecido. Pois aquela mulher não era ninguém. Era alguém. Alguém bem difícil de se conter.
- Eu trouxe um homem. - Aretha começou, mantendo a postura firme e a indiferença apática para com a situação - Eu acho que é um homem. Ele parece ser amigo de Frank, então talvez ele venha buscá-lo. - Ela concluiu, se esforçando para manter o semblante inexpressivo, a franja caindo sobre os olhos. A mão que apertava seu ombro afrouxou e a mulher começou a andar ao seu redor como quem encurralava uma presa, logo parando à sua frente a encarando enquanto segurava uma esfera de um preto opaco atrás das costas, com o rosto tão próximo do dela que a tensão que Aretha sentia lhe havia se tornado palpável. A sua pele negra entrava em contraste com os olhos de vermelho vivo, o cabelo cacheado caindo sobre o seu rosto. Deu um sorriso, e não era um sorriso bonito. Era um sorriso de quem cerrava os dentes para tirar foto, de quem tinha se esquecido como sorrir, de quem não sabia o que estava fazendo. Alguma coisa emanava daquela mulher, e não era ruim nem mal.
Era apenas vazio.
- Claro que ele virá buscá-lo. Frank não é de abandonar ninguém, a não ser que esse alguém seja eu.
Ela disse, em um tom estranhamente melancólico e cansado, e Aretha ficou quieta. Ficaram em silêncio por longos segundos que para Aretha pareceram horas, e ela conseguia sentir que as coisas não estavam bem para o lado dela. Já não era mais tão útil, e coisas inúteis sempre são descartadas.
Resolveu que deveria sair andando dali logo, pois encarar aquele rosto era deprimente de uma forma nostálgica e um pouco apavorante, como se olhar demais fosse fazer seus próprios olhos cegarem. Precisava pensar num jeito de pegar Loydie de volta, e não podia depender pra sempre daquela maluca assustadora. Ela só tinha entrado naquilo por conveniência e porque parecia o certo a se fazer naquela hora, mas agora não lhe parecia mais ser tão conveniente nem certo, lhe parecia apenas perigoso e estúpido, pois se Loydie morresse ou sumisse para sempre ela iria morrer e sumir junto, e Aretha não queria morrer nem sumir.
Mas mesmo não querendo morrer, se virou de costas e voltou a andar.
Deu alguns passos. Andou um pouco mais rápido. Não iria correr.
Ouviu algum ruído estranho e todo o lado direito de seu corpo se entorpeceu. Caiu no chão, e a dor foi infernal por um segundo, antes que fosse sendo substituída por algo estranho, como se o corpo dela estivesse desligando, a dor afundando na água como uma bigorna. Sentiu como se a bigorna puxasse seu corpo para baixo e agora era ela que estava afundando no chão, afundando e afundando, se afogando em lençóis freáticos e depois queimando em magma no centro da terra para depois virar cinzas, antes que tudo se acabasse de vez. Os olhos ficaram pesados demais para se manterem abertos, os sentidos foram ficando cada vez mais nebulosos e tudo foi colocado em um efeito de vinheta que se afunilava a cada nanosegundo. E logo, tudo ficou escuro.
E vazio.
***
Itzel tinha um irmão. Todos nahuatl tinham um, sempre um gêmeo do sexo oposto. Foram largados cedo no mundo como fazem os passarinhos, que jogam os filhos para fora do ninho pra que voem logo naquele caralho. E Itzel voou, e o irmão também, como todos os outros jovens irmãos voavam. Não voar mesmo, pois não tinham asas, é claro.
E em seu décimo segundo inverno vivo, o irmão de Itzel morreu num desmoronamento de neve.
Ela respirou fundo e continuou andando. Não podia ficar ali tanto tempo, esperando uma ressurreição milagrosa, enquanto encarava o monte de neve e gelo. Que os mortos enterrem seus mortos, e ela não queria enterrar ninguém. Não que ela não gostasse do irmão. Todo mundo gosta de seus irmãos.
Talvez ela só não gostasse o suficiente para morrer de frio enquanto chorava por sua morte.
***
Se escondeu em uma caverna. Viu em uma estalactite de gelo que seus olhos já estavam completamente vermelhos. Olhos vermelhos eram a marca dos que falharam e dos que se tornariam monstros, e para os monstros o tempo não parecia passar normalmente. Era tudo muito mais lento, como se o gelo estivesse congelando além de suas lágrimas, também o tempo.
Se sentou em um canto, abraçando a si mesma em um reflexo meio solitário e melancólico. Ela sabia da história. T’agavor havia morrido, e o luto que sua esposa sentia a teria feito criar o inverno, para que todos sentissem sua tamanha dor e fúria. Se até os deuses morriam, Itzel deveria estar bem com a idéia de se tornar um monstro em sua morte. T’aguhi havia se tornado um monstro ao castigar a todos com um inverno infernal, e isso devia lhe ajudar a aceitar. Todos viram monstros. Até os deuses.
Mas Itzel não aceitava, e se levantou antes que virasse uma estátua de gelo. Respirou fundo como se tomasse coragem e correu para fora da caverna, afundando os pés no meio da neve, como qualquer criança estúpida pensaria em correr para tentar esquentar o próprio corpo e preservar a humanidade. Tinha a benção de ser leve feito um graveto pois quem mais comia a comida caçada era seu irmão agora morto, e a sua nutrição desfalcada ao menos tinha lhe rendido peso o suficiente para não afundar na neve fofa. Correu até sentir seus músculos ardendo em chamas, cacos de vidro rasgando seus pulmões e ácido de bateria correndo em suas veias, e depois, correu um pouco mais.
Quando seu corpo esqueceu de funcionar devido a sua pura exaustão, caiu no chão como um peso morto. A cabeça se chocou contra a neve, e Itzel foi rolando pelo chão como um carro que capotava, ou um bicho morto sendo usado como bola. Suas costas se chocaram contra algo grande e ela parou bruscamente seu deslocamento geográfico involuntário com um grito meio mudo, arfando. Acabou ali, esparramada no chão com o rosto virado para o céu cinza daonde caíam flocos de neve que depois de tanto tempo queimavam suas bochechas e nariz, mas ela já não sentia mais, ao menos não tanto.
Se esforçou para recuperar o fôlego de sua corrida, mas seus pulmões ardiam em suas inspirações como se ela estivesse inalando água. Sentiu que o controle estava sumindo, e não queria isso, então continuou se esforçando a respirar calmamente. Inspirou e expirou, como sempre fazia quando o inverno começava. Inspirou e expirou novamente e fechou os olhos, tentando caçar a calma, enquanto sua mente se confundia com milhares de assuntos de que ela nem se lembrava mais quais eram.
Antes que o irmão dela morresse, Itzel tinha O Controle. Os nahuatl conseguiam se transformar em feras, (eram como lobisomens, mas mais dramáticos, complicados e flexíveis) e isso era muito útil na caça. Eles eram rápidos, fortes e ferozes, e trabalhavam bem em dupla. Todos eram assim, como uma regra da natureza para continuarem vivos, sem excessão alguma. Tinham o controle de se transformar quando quisessem. Tinham a racionalidade durante a transformação. Era uma bela carta na manga, uma carta na manga dada pelos deuses, como uma benção divina. Itzel gostava de chamar esse controle de O Controle, pois soava mais imponente e era realmente assim que se parecia para ela. Ter O Controle era ter poder sobre o que ser e o que não ser, sobre si mesmo, sobre as coisas. Era ter o poder que os deuses lhe deram e poder usufruir dele como se bem entender.
Mas os nahuatl perdiam O Controle facilmente, e viravam feras de forma permanente. Monstros. Sem a racionalidade. Era como morrer dentro do próprio corpo, e virar um bicho que acabaria sendo morto e virando churrasco no futuro. Relações fraternas fortes rompidas com violência dilaceram esse maldito controle, e Itzel sabia disso, pois agora o sentia indo embora, como se O Controle evaporasse diretamente de sua pele.
- Oi? - Itzel ouviu uma voz, mas não teve tempo nem força o suficiente para se levantar para procurar o dono. Uma menina de cabelo azul bebê cortado de uma maneira esquisita apareceu em seu campo de visão, vestida com peles que protegiam ela daquela neve toda. Parecia ter a mesma idade que Itzel. Seu olhos assustados eram amarelos e tinham pupilas, como os de Itzel eram antes do irmão dela morrer.
- Oi. - Itzel respondeu, com a voz meio rouca. Deu um sorriso minúsculo e forçado, encarando a menina com a visão embaçada.
- Oh. Droga. - A de cabelo azul disse, ao ver os olhos da pessoa caída no chão - Isso é triste. Vamo, eu te ajudo. - A segurou pelos ombros e a puxou, a fazendo sentar. Itzel foi recuperando o fôlego aos poucos, e percebeu que havia batido as costas em um tipo de parede gigantesca de uma cor cinza clara, e que havia um menino também de cabelo azul e olhos amarelos ali perto, de cócoras, uns dez metros de distância das duas. Ele parecia analisar toda a situação pensando em estratégias de como agir, como se esperasse que Itzel perdesse O Controle de vez e virasse uma besta sanguinária. Ela não o culpava. Já tinha passado por situações parecidas com o irmão. Já havia matado muitos que perderam O Controle para se manter a salvo. No final era assim que as coisas funcionavam, e ela não podia fazer nada para impedir.
Mas algo lhe chamou atenção, no chão, alguns metros atrás do menino. Era um esfera de tamanho meio médio , de um preto opaco e sem brilho, totalmente ensanguentada.
- Moça me diz que cê tá me ouvindo por favor me diz eu tô te pedindo. - A de cabelo azul a balançou um pouquinho, em um tom estranho de súplica. Itzel percebeu que não havia ouvido nada que ela tinha falado antes, pois estava muito focada olhando a esfera suja de sangue.
- Tô na escuta. - Foi o que ela conseguiu responder, com a voz ainda meio rouca e exausta.
- Moça cê tem que ficar calma e bem ok eu não quero matar você e não quero morrer você tá entendendo aquele ali é meu irmão a gente vai te levar pra aonde a gente tá ficando mas você tem que prometer que vai ficar bem. - A de cabelo azul falava muito rápido, quase como se ela tivesse destruído toda a pontuação de todos vocabulários existentes. Era um desespero adorável e Itzel deu uma risada curta, apesar de sua situação, pois realmente era engraçado e ela não sabia muito bem o que fazer naquela situação. Rir na desgraça sempre foi um de seus maiores charmes.
- Ok. Fico bem. - Respondeu, mesmo que não soubesse realmente como ficar bem. Mas não queria ser um monstro, e ter força de vontade deveria bastar. Tinha que bastar.
A de cabelo azul deu um sorrisão satisfeito com a resposta e puxou Itzel pra cima a ajudando a se levantar. O menino também se levantou, pegando a esfera negra do chão. Agora em pé, Itzel finalmente entendeu no que havia batido as costas: Era o corpo de um animal de grande porte, morto e com um buraco gigante na barriga. A neve cobria um pouco de sua extensão, e o sangue do ferimento já havia congelado faz tempo.
Itzel se arrepiou um pouco e sentiu pena do bicho. Ela era uma caçadora, mas aquela morte havia sido brutal e aparentemente desnecessária, então se permitiu sentir empatia pela carcaça, pensando em até fazer algum tipo de funeral simples, mas logo tirou aquilo da cabeça. Tinha coisas mais importantes para fazer, como tentar se manter no controle. Que os mortos enterrem seus mortos, e era apenas mais um animal morto no mundo, de toda forma.
- Meu nome é Illa, esse é meu irmão Kayron, e esses são Loydie e Aretha. - A menina de cabelo azul disse, apontando o primeiro menino que Itzel havia visto, e depois outros dois nahuatl que estavam encolhidos num canto do abrigo improvisado. Os olhos deles eram vermelhos, iguais o de Itzel, e apesar disso eles não pareciam estar fora do Controle, pois não haviam virado bestas demoníacas. Todos acenaram para Itzel com a cabeça.
Itzel também percebeu que não havia percebido a hora em que haviam chegado naquele lugar, e muito menos a hora em que haviam colocado um cobertor sobre os ombros dela e a sentaram perto de uma fogueira. O menino, que agora Itzel sabia se chamar Kayron, estava rolando a esfera negra (agora não mais ensanguentada) pelo chão, perto da fogueira. A luz do fogo iluminava a todos, mas não parecia chegar à esfera, como se ela fosse um erro da física materializado.
- Qual teu nome? - Loydie perguntou, abraçadinho em Aretha, com um tom meio de raiva. A de cabelo azul que disse se chamar Illa estava muito animada com aquela reunião, com um sorriso bobo na cara. De resto, todos tinham cara de morto, como se acolher um com os olhos daquela cor já fosse rotina. E realmente era, já que haviam mais dois de olhos vermelhos ali.
- Itzel.
- É um nome muito feio. Feio que nem a sua cara. - Loydie disse, falando com um ódio de como se Itzel tivesse matado toda a sua família.
- Eu não achei feio. - Aretha disse, apertando Loydie um pouco, e ele pareceu reconsiderar a beleza do nome.
- Talvez não seja tão feio assim. - Concluiu.
- É um nome bonito. - Illa disse e Itzel deu um joinha para todos. Kayron não falou nada, continuando a brincar com a esfera que rolava pelo chão de pedra, fazendo um barulho de faca sendo amolada.
Itzel se sentia mais calma. O controle não escorria mais dentre seus dedos, e ela estava perto do fogo. Não era mais tão frio. Ainda estava confusa, ainda era difícil se manter em uma linha de pensamento, mas de alguma maneira aquilo funcionou.
Ficou viva até matarem quase todos deles, e continuou viva até muito depois.
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