No escuro
A criatura estava sentada com a elegância e prepotência de um gato, em cima do balcão amarelo gema sujo de poeira e limo, com as pernas cruzadas em um ar debochado naquela pose que só quem faz é quem tem o mundo inteiro sobre os próprios pés. O cabelo escuro cheio de ondas caía sobre os ombros dela, cobrindo um pouco o seu colo nu, já que usava um vestido tomara-que-caia preto colado ao corpo, o comprimento um pouco acima dos joelhos. Segurava uma taça meio chique, e usava luvas também pretas compridas, enquanto sentada ao lado de uma garrafa de vinho do próprio bar, que era o que enchia o conteúdo de sua taça. Quando viu a dupla entrando no lugar, deu um sorrisão, mostrando os caninos afiados.
- Charlie! Quanto tempo, não é mesmo? Você emagreceu. Esse lugar está a mesma coisa de quando eu saí, também. E parece que você adotou mais alguém para ficar aqui, como de costume. - Continuava sorrindo graciosamente, os lábios pintados de azul.
Charlie pareceu recuar por um momento ao ver a vampira, mesmo que sem muita expressão. Respirou fundo, enquanto começava massagear a têmpora esquerda, na esperança daquilo ser uma alucinação e que a têmpora fosse um botão que desligasse alucinações. A vida dele estava muito agitada e o demônio não tinha energia emocional e nem vontade de ter que lidar com mais ninguém, muito menos com tanta socialização em tanto pouco tempo. E o mais preocupante: iria acabar perdendo a novela das sete.
- Oh, uau, Cheryl. Vá embora logo. Hoje é a reprise do último capítulo e você tá destruindo a minha noite de reprise do último capítulo.
Do lado de Charlie, Frank estava na defensiva. Aquela mulher lhe lembrava uma pessoa, e não sabia se podia confiar nela. Estava um pouco receoso de esse encontro ser parte do plot inicial da coisa em que Charlie estava envolvido, e se fosse seria um pouco complicado, já que Frank nunca tinha chegado naquela parte, e em um mês e quinze dias Ulukie terá ido embora, ou seja, ele tinha que resolver isso rápido. Ele apenas fazia uma prece silenciosa para que a história em que o vestido com a camisa da Hatsune Miku estivesse envolvido não fosse uma história apocalíptica, já que Frank estava sem sua montante para cortar monstros gigantes, ou qualquer outra coisa que causasse o tal apocalipse. De toda forma, o estagiário estava confiante, pois confiava no seu próprio potencial que nem o panfleto da firma tinha dito que devia se fazer.
Cheryl pulou do balcão, com o cenho franzido, depois do que Charlie disse. Não tinha praticamente nenhuma curva, sendo extremamente magra, mas muito bonita, sem fazer nenhum esforço para isso. Se aproximou do demônio, o olhando como quem se olha para uma criança que acabou de ficar órfã. Vendo de perto, se percebia que ela estava muito pálida, até para os padrões de um vampiro, e com uma expressão cansada que sabia disfarçar muito bem. Segurou o queixo do barman que tinha chifres de carneiro com tremenda delicadeza e disse:
- Pensei que iria me receber melhor depois de dois anos, sinceramente.
Charlie respirou fundo, com a animação de um professor de matemática em uma escola pública numa segunda-feira de manhã cedo.
- Me desculpe por não pular de alegria, é que eu tenho um problema na rótula do joelho.
- Não vai ao menos apresentar seu amigo?
- Não é meu amigo. Ele tá me vigiando.
Frank continuou meio sem saber o que dizer ali, mas pronto para pegar Charlie e sair correndo caso algo desse errado. De toda maneira acabou se apresentando, formalmente, estendendo a mão para a vampira.
- Frank Vicent, do Departamento de Maldições e Sentenças de Morte.
A vampira apertou a mão de Frank, com a mesma formalidade.
- Cheryl Audrey, babá do Charlie.
- Você não é m-
- Charlie, você deve seu cu pra mim. Eu posso me auto intitular sua dona se eu quiser. Eu posso até te chamar de Bebel e te colocar numa coleira, e do jeito que eu te conheço você iria adorar.
Charlie calou a boca, meio contrariado
Frank pensou em comentar alguma coisa, mas acabou se afastando um pouco e se encostando na parede. Parecia o mais certo a se fazer, já que os dois pareciam ter muito o que conversar. O estagiário não gostava nada de ser deixado de lado, mas a dor estava especialmente irritante aquele dia, então era quase que forçado a se manter quieto, em sua forma de caveira.
- Você tacou fogo em outra cidade? - Cheryl perguntou para Charlie, que tirou uma carteira de cigarros do bolso e acendeu um com o isqueiro, dando uma tragada.
- Não. Você sabe que eu não tenho mais esses poderes. - Ele disse indiferente, enquanto andava até o balcão.
- Então o que você fez dessa vez?
- Estou num livro.
- Estão escrevendo uma biografia sua?
- Não. Você vai entrar?
- Vou. E me explique isso direito logo.
Charlie pulou a portinhola do balcão, vagarosamente, e se agachou ao lado da porta que algumas boas horas atrás foi um elevador, abrindo o frigobar que ficava ao lado, pegando um suco de uva em caixinha. Cheryl pegou a garrafa de vinho barato dela e Frank ficou quieto no canto, observando a situação, como o esperado. Charlie estava com o cigarro no canto da boca, quando furou a caixinha com o canudo e deu mais umas tragadas, antes de tomar um gole juvenil, com direito a barulho de sucção do suco pelo canudo. Cheryl atravessou a portinhola e abriu a porta que dava para o lado de dentro do bar, aonde não era mais bar, e sim a parte residencial do imóvel. Charlie entrou logo atrás e a porta se bateu quase que sozinha, mesmo que não existisse vento ali.
Frank resolveu não ir.
Uma coisa que se deve saber sobre Frank Vicent, o Asahsqui, espírito metamorfo e servente, é que ele tinha uma penca de problemas complexos e nem sempre era possível manter todos em ordem o tempo todo. A dor insistente da decapitação não sumia, apesar de já fazer tempos que ela realmente aconteceu. A cabeça continuava meio solta, e Frank vivo, por ser amaldiçoado a ser imortal, e quando se tenta matar algo imortal esse algo não morre, obviamente.
Mas Frank não se regenerava. E a dor da morte que não aconteceu perseguia ele.
Como um espírito metamorfo e servente, obviamente ele fazia duas coisas: se transformar em coisas diferentes (é isso que metamorfose significa, sabe, a coisa das borboletas. Todo mundo viu isso na escola, eu acho) e servir a algo ou alguém. Mas depois da decapitação os poderes de transformação dele mal funcionavam, então só conseguia mudar da forma original de crânio esquisito para a humanoide, mas penosamente, já que que alterar a forma exigia muito mais esforço que o normal para Frank. De todo jeito a forma humanoide era a única aonde ele podia manter a cabeça no lugar, literalmente, e isso era de grande importância, já que a dor melhorava consideravelmente quando ele o fazia e era muito mais prático não precisar se preocupar em saber se a cabeça não caiu no chão enquanto se andava.
E o estagiário virou um homem ruivo e se sentou num banquinho no balcão do bar, pensando um pouco no que aconteceria em um mês e quinze dias, enquanto o silêncio do vazio preenchia o seu crânio oco como se fosse água. Almas amaldiçoadas costumam ficar preocupadas o tempo todo. Deve ser algum tipo de efeito colateral trágico.
***
Charlie e Cheryl deixaram Frank no bar e foram casa a dentro. Logo após a porta que entraram havia um corredor surpreendentemente bem arejado, apesar de parecer apertado, com paredes e chão de cimento, igualmente úmido como bar, repleto de limo nos cantos. Caqueiros grandes de plantas como samambaias e renda portuguesa ficavam ao lado esquerdo da entrada, amontoados desordenadamente enquanto encostados na parede e embaixo de uma escada que dava para um primeiro andar, que poderia se visto olhando de baixo se o corredorzinho fosse mais amplo, já que esse primeiro andar tinha vista do térreo.
- Explique-se. Não quero que te punam novamente por estar fazendo besteira. - Ela disse, impiedosa, o encarando. Segurou no braço do demônio como se se apoiasse, disfarçando menos o cansaço e fraqueza antes um tanto evidentes.
- Alguém me amaldiçoou para ser o protagonista de um livro. Isso é perigoso, eu acho. É uma merda. Aí tem esse cara que fica comigo pra impedir de que algo dê errado. - Respondeu. Não parecia se importar muito com a situação nem querer entender ou acabar com ela. Charlie não se importava muito com coisas sérias, preferia gastar a própria energia em coisas mais produtivas como se preocupar em manter seus doramas em dia, quebrar o próprio recorde no tetris e escrever fanfics de Crepúsculo.
- Isso é a coisa mais absurda que já ouvi sair da sua boca. Mas não julgarei, apesar de parecer tolice. Preciso te dizer coisas importantes, mas antes eu... preciso de um pouco de sangue, ok? Essa semana eu mal comi. - Murmurou. O encarava com aqueles olhos azuis escuros felinos, como se conhecesse toda a alma podre dele, se é que demônios tem algo que se pode ser considerado alma. Charlie fez um barulho com a garganta mostrando a sua desaprovação para com aquela situação, como uma adolescente mimado.
- Você vai embora e volta pra beber meu sangue. Você já foi melhor caçadora. Não achei que fosse preferir sangue doente de um demônio fumante e sedentário.
Terminaram de subir as escadas. O andar se resumia em uma pequena estrutura de cimento como chão e três portas que davam em dois quartos e um banheiro, além de um portão de ferro enferrujado no final do corredor que dava em uma segunda escada a qual se usava para subir na laje. Cheryl suspirou.
- É complicado. Vamos entrar no seu quarto logo, ok?
- Meu quarto não.
- Já superamos isso, Charlie.
- Não.
- Puta que pariu Charlie, faz dois anos.
- Não quero repetir uma tragédia de dois anos.
- Eu nem vou encostar na porcaria da sua cômoda. Irei ter cuidado.
- Eu não confio em você. Sumiu por dois anos. Não sei que merda se passa na sua cabeça.
Cheryl encarou com desgosto para Charlie, como se perguntasse mentalmente para ele qual era o retardo mental que ele tinha.
- Charlie, eu posso ser tudo, mas tenho toda certeza que eu não passei meus últimos dois anos armando vir aqui para derrubar seu cacto da cômoda de novo. Eu não tenho culpa se seu quarto é um aterro sanitário e eu sem querer me esbarrei nele.
O demônio seguiu por meio minuto encarando profundamente a vampira, como se quisesse ler as intenções dela para com Tiffany, seu cacto de estimação. Entre alimentar uma vampira e manter um cacto a salvo, Charlie mantinha a segunda opção como prioridade, já que vampiros não tem coração. Demônios também não tem, mas ele preferia não falar muito de si mesmo pra não ficar deprimido. Se esgueirou até a porta de madeira do próprio quarto e a abriu com a ajuda de um molho de chaves. Depois de empurrar e dar alguns chutes na porta emperrada, ouve um barulho de correntes, e se viu os seis cadeados que protegiam a porta do quarto do barman. Ele se pôs a abrir cada um com a calma e delicadeza de um maestro. Cheryl se apoiou na parede, um tanto tonta. Nunca entendeu a necessidade de tantos cadeados.
Abriu o quarto depois de um minuto e meio de uma cerimônia de abertura da porta. Cheryl seguiu ele ao entrar no quarto, tomando cuidado aonde pisava, já que o chão era como um campo minado cheio de trecos, roupas, pratos sujos e talvez um ou outro rato morto. Um colchão estava no canto do quarto, na frente de uma televisão antiga que estava ligada baixinho num canal coreano. Tinha cheiro de morte e a única luz ali vinha da tv, já que não havia uma lâmpada.
- Bitch, you live like this? - murmurou Cheryl, mesmo que já acostumada com a miséria da higiene dele.
- Quer o sangue ou não?
- ...Quero. Fica na parede. Eu não vou sentar nisso que você usa como cama.
Charlie se afastou o máximo da cômoda embaixo da única janela do quarto, para que não houvesse possibilidade de acidentes com o cacto que rezidia ali em cima. Do lado de fora da janela escancarada apenas um vazio ensurdecedor. O único barulho ali era da televisão e das vozes dos dois. Quando se encostou na parede, apagou o cigarro no chão e colocou o suco num cantinho ali. Cheryl se aproximou e segurou seu rosto, antes de abocanhar seu pescoço.
As más línguas diziam que mordida de vampiro dá tesão, e meu senhor Jesus Cristo, ninguém sabe como Charlie sofreu naquele momento para não soltar algum barulho comprometedor que insistia em querer sair de sua garganta. Isso durou por uns longos dois minutos, as fisgadas no pescoço fazendo ele se arrepiar.
- Vai me deixar anêmico. Para aí. - Murmurou, já não aguentando segurar um gemido por tanto tempo. Ela parou imediatamente e riu um pouco.
- Obrigada. Podemos ir a um lugar menos podre? Eu quero conversar com você sem vomitar todo o seu sangue.
- Não. Seja rápida. Eu já disse que hoje é dia de reprise do último capítulo e você já passou tempo demais aqui.
- A televisão está ligada em um canal de vendas coreano. Não me venha com desculpas.
- Eu vou assistir no YouTube.
- A novela?
- Tem um canal que transmite Maria do bairro ao vivo semanalmente. Algum problema com isso? Fala logo o que você quer.
- Maria do bairro já acabou fa- ok, ok, eu desisto de me esforçar pra lidar contigo. Irei me casar.
- Eu sei. Com um humano.
- Demian te falou?
- Falou. Foi a coisa mais absurda que eu já ouvi, mas agora eu percebo que você convidou um demônio pra um casamento. Você realmente perdeu a cabeça.
Ela deu um sorriso orgulhoso e tirou um convite da bolsinha pequena que carregava. O convite era cor creme e cheio de viadagens e dobraduras de papel casamenteiras.
- Dois demônios. Você também está convidado.
- Se eu pisar um pé na igreja a terra explode Cheryl.
- Eu vou casar só no civil. Vai ser num espaço de eventos e com um juíz, e vai ter uma festa bonita. Eu te dou uma credencial para o seu vigia também, o tal do departamento de maldições e sei lá o quê. Eu quero que você vá. - Ela disse com um sorriso contagiante, empurrando o convite contra o demônio, que a encarava com cara de peixe morto.
- Vamos recapitular aqui, Cheryl, que eu sou amaldiçoado a viver no vazio. Só tenho permissão a ir para o inferno e só no horário de trabalho. Da última vez que fui pra qualquer outro lugar tiraram minhas asas. ENTÃO MUITO OBRIGADO MAS VAI EMBORA LOGO DIACHO POIS EU VOU PERDER A NOVELA.
Cheryl levantou as sobrancelhas de forma convencida, com um sorriso maligno. Tirou da mesma bolsa um documento em papel preto, com letras brancas datilografadas.
- Por isso mesmo que conversei com o responsável pelo seu caso e consegui uma permissão para ir à superfície por dois dias nas condições de que você não possua nenhum mortal, não mate ninguém nem toque fogo em outra cidade, além de que não fique fora por mais do que esse tempo.
- Vai tomar no cu.
- Vai tomar no cu você. O Miguel quer que você vá.
- ...Miguel?
- Meu noivo.
- VOCÊ VAI SE CASAR COM UM FILHO DA PUTA QUE TEM NOME DE ANJO? E ELE QUER QUE EU, EU, VÁ?
- É. Na verdade eu disse que você era um primo meu que mora muito longe e tem problema com drogas, e ele me incentivou a vir nessa viagem até a sua cidade muito muito distante para te convidar. Ele é muito gentil. - Cheryl era um garota de treze anos apaixonada pelo Harry Styles. Não existe descrição melhor do que essa.
Charlie estava enojado.
- Obviamente ele não sabe que você é uma vampira.
- Não.
- Nem que você chamou demônios, vampiros e uma galera pior pra o casamento.
- Não.
- Mas que porra Cheryl.
Ela deu de ombros. Desviou o olhar e ficou encarando a janela aberta, daonde não vinha vento nenhum e só se via a eterna escuridão do vazio, em seu silêncio cacofônico.
- Eu amo ele. É a coisa certa a se fazer. - Ela disse, ainda encarando a janela, depois de um bom tempo naquela contemplação solitária. Charlie tinha voltado a beber do suco de uva em caixinha, fazendo o barulhinho.
- Tanto faz. Você decide o que faz.
Apenas a luz da televisão que falava coreano estava ali para iluminar o rosto de ambos com sua cor azulada.
- Não sei como ele ficaria se soubesse. É algo complicado. Eu prefiro como está.
- Você passou mais de uma semana sem comer por causa desse cara. Começou a ter pena de se alimentar agora? É burrice.
- ...É difícil.
- É burrice.
- Eu sei.
- Eu não me importo com sua burrice, mas não vejo isso dando certo no futuro.
- Charlie.
- Quê?
- Você já está aqui por uns 30 anos, não é?
Ela continuava encarando a janela.
- É. Que é que tem?
- Aqui é tão sozinho que dói.
- O vazio?
- É. Como você se sente?
O vazio não era céu nem inferno. Estava em total oposto do Limbo, em um plano completamente diferente. Nada existia, nada fazia nada. Algumas almas condenadas apareciam ali de vez em nunca, desmemoriadas e sem rumo. Não existia som. Luz. Dia, noite, inicio, fim.
Era apenas vazio.
- Não sei. No escuro. Eu me sinto no escuro. Esse lugar não tem futuro e eu não vou sair daqui. Eu não sei o que vai acontecer. Mas eu já não ligo.
- Eu não sei o que vai acontecer. Mas eu já não ligo. Eu me sinto no escuro. Eu não tenho controle sobre o futuro ou sobre o que vai dar se um dia ele descobrir que em 1120 um vampiro me mordeu e cá estou eu. Mas eu não ligo. É meio fácil de entender, não é?
Charlie ficou quieto. Ela colocou a permissão dele para ir, o papel preto com letras brancas datilografadas, em cima da cômoda com o cacto, e saiu do quarto depois de mais algum tempo.
- Te espero lá. Não vá com a camisa da Hatsune Miku.
Ela disse e saiu, fechando a porta.
E Charlie ficou ali, no escuro.
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