Não há descanso para os impios
Era escuro e o silêncio fazia os ouvidos doerem. Doía existir, também. Doía tanto, que de alguma forma, era quase que anestésico. Não de um jeito bom.
Depois de minutos que logo se tornaram horas, se ouviu o primeiro som. Ondas. Depois delas, veio a sensação de tato, que o fez se lembrar de que de fato tinha um corpo.
E então, ele ouviu a voz.
De primeira, não conseguiu entender o que ela dizia. Era baixa, triste e quase sussurrada, de alguma forma que o fazia se sentir elétrico. O terror que aquela voz lhe proporcionou o fez se sentar, mesmo que não enxergasse nada e mal entendesse o que estava acontecendo consigo, quase como se seu corpo estivesse em alerta pois precisava fugir. Sentiu os músculos de seu corpo contraírem, despertando uma dor lancinante por toda extensão de seu ser, e o grito que lhe escapou da garganta que havia acabado de recobrar a consciência de que tinha, o fez se lembrar.
Ele era Frank Vicent, e estava morrendo, mesmo que tecnicamente fosse imortal.
Ele sabia que aquilo iria acontecer, de uma forma ou de outra. Todo Asahsqui parava de existir quando seu mestre morria, para voltar a existir quando fosse invocado de novo. Mas daquela vez, Itzel não estava morta nem viva. E Frank também não estava sem existir, mesmo que não estivesse no ápice de sua existência, de todo modo. Ele só estava desmaiado na laje da casa do Charlie faz não sei quanto tempo, enquanto vagava pela própria cabeça, lidando com a dor que só o corroía por dentro. Sabia que só havia desacordado por conta de algo com a mestre dele, que agora nem tinha um corpo, e isso piorava ainda mais a situação dele de existir/não existir.
O som das ondas aumentou bruscamente, de forma quase que ensurdecedora. A voz estava bem próxima, mesmo que ainda ininteligível, e Frank quase pôde sentir o calor do corpo que seria o dono da mesma, antes que todo som se extinguisse e e ele estivesse dentro do mar, afundando.
Os raios de sol atravessavam a água e desapareciam acima de sua cabeça, antes que chegassem a tocar de fato nele. Se debateu um pouco, tentando voltar para a superfície, mas seu corpo não emergiu um milímetro, o que o fez desistir silenciosamente, apesar da agonia. Ao contrário do que esperava, sua cabeça continuava grudada em seu pescoço e ele conseguia sentir o gosto salgado da água que inundava sua boca e seja lá qual fosse o substituto equivalente a pulmões para a sua raça, e por mais que tentasse lembrar de que aquilo não era real, era difícil não se sentir aterrorizado. Era um sonho horrível, mas um sonho, e mesmo que ele tentasse controlá-lo, sabia que seria quase impossível quando ainda estivesse acompanhado da mulher que agarrava seu pé, o puxando levemente para baixo mesmo que o segurasse como se fosse nada mais nada menos do que um balão de festa.
Itzel afundava junto com ele, seu rosto em uma expressão calma. Se afogar em seu próprio subconsciente não era doloroso, a não ser que se quisesse que fosse, coisa que ela não queria. A imensidão do oceano fazia os dois parecerem grãos de areia, flutuando presos em um vácuo que os empurrava lentamente para baixo, enquanto bolhas subiam para a superfície toda vez que ela tentava buscar ar, por conta do instinto de sobrevivência. Mas ela estava tranquila. Não ter um corpo e muito tempo para pensar fez Itzel ficar tranquila com todos os absurdos que poderia vir a passar. E além do mais, o que mais poderia lhe acontecer? Ela só iria conversar com Frank. De novo.
Mesmo que ele não estivesse nenhum pouco calmo e ela soubesse que não iria ser uma conversa pacífica.
A dor fazia Frank sentir como se estivesse em chamas. A água, mesmo que não real, o assombrava. A falta de som e a presença da mulher que tinha destruído a vida dele arrancava os últimos resquícios de calmaria que ele podia ter. Mas novamente tudo mudou em um segundo, e eles estavam na praia em que o castelo um dia esteve, a mesma praia em que Itzel cortou a cabeça dele com uma espada. O que era diferente nessa vez era que eles estavam em cima do castelo, bem no topo.
- ...
Frank pensou em falar, mas as palavras não queriam sair. Ele já tinha confrontado Itzel uma vez, mas dessa vez parecia mais difícil. Ele estava exausto emocionalmente e não queria ter que enfrentar aquilo de novo, não agora, que tudo parecia tão confuso e distorcido. Loydie o odiava, Ulukie havia ido embora sem dar grandes explicações e ele estava precisando lutar contra uma coisa que mal compreendia, tal coisa que o fazia sentir um aperto terrível no peito. De todo jeito, ele se virou para ela, que estava apoiada nas próprias pernas como uma adolescente descolada, o cabelo cor de rosa cobrindo o seu rosto. O estranho era que ela estava meio transparente, como um fantasma, as pontas de seus dedos desaparecendo contra a luz, enquanto ela esticava um dos braços e encarava as próprias mãos como se fossem coisas de outro mundo.
- O que está acontecendo? - Frank murmurou, tentando não olhar para ela. Se conteve para não se encolher. Ele não podia se encolher pois mostraria que estava apavorado, mesmo que fosse óbvio, e não podia confirmar para a mestre que ela tinha esse tipo de poder sobre ele ainda.
Itzel se espreguiçou, esticado ambos os braços e se ajeitando no teto de pedra laranja do castelo tão alto quanto as nuvens. Seu corpo translúcido era atravessado pela luz do sol, e ela parecia se feita de arco-irís por um segundo, por conta de algumas gotas de chuva que insistiam em cair apesar da majestosidade da estrela no céu.
- Eu não estou viva nem morta. A natureza está tentando dar um jeito de acabar comigo. Conosco. Nós somos um erro não natural e não deveríamos estar vivos ainda, mesmo que sua magia tenha garantido o contrário. Está acontecendo isso, e é simples, mesmo que horroroso.
O Asahsqui não disse nada, e ficou olhando para os próprios pés. Percebeu que também estava translúcido.
Itzel coçou a garganta, alto.
- Está doendo como o inferno, não é? Mais do que o normal. Mais do que você pensou que fosse possível. - Seu tom era quase em um deboche, mas de alguma forma parecia quase que reconfortante. Sim, estava doendo como inferno. Sim, mais do que o normal e mais do que ele pensou que fosse possível, e ela saber isso o fazia se perguntar se a Nahuatl sentia o mesmo.
- Isso é porque seu plano de existência não é mais o mortal, mas mesmo assim você continua lá. - Ela continuou, sorrindo de maneira quase desacreditada com a própria situação. - Doí em mim também. A natureza não é nada gentil quando tenta expulsar seu filhos.
Frank cuspiu um resto de água que continuava em sua boca depois de seu mergulho forçado. Ele sabia que Itzel não estava apenas jogando conversa fora, então iria esperar ela se cansar de falar com as paredes e dizer a sentença final sem mais delongas. Ela não costumava gastar saliva sem um motivo importante por trás, portanto Frank não iria fazer o mesmo.
Ela suspirou, deitando de barriga para cima no telhado que era minimamente inclinado horizontalmente, olhando para o céu. O céu tinha um tom lilás estranho, indo para o rosa, e continuava a chuviscar cada vez mais forte apesar do tempo aberto. As gotas de água brilhavam.
- Eu quero que tire minha imortalidade Frank. E eu não me importo com seus sentimentos em relação a isso. Eu não quero sentir a dor de desaparecer aos poucos enquanto o universo espera que eu desista e morra de vez. Eu quero morrer logo e só posso fazer isso se você morrer também.
Frank mal esperou ela terminar.
- Não. Eu já disse que não.
Itzel fez uma cara feia, enquanto Frank se afastava um pouco dela. Ele tremia. Ele sentia raiva, e raiva não era uma coisa que gostava de sentir pelos outros.
- Eu estou te dando a opção de decidir antes de tornar isso uma ordem imediata. - Se levantou, de forma intimidadora, cerrando os punhos. Fingir uma paciência que não tinha para conseguir o que queria estava cada vez mais impossível. - Sei que na nossa última conversa eu pareci compadecida com sua vontade de viver, mas você é meu servo. Eu posso ser o demônio encarnado, e você pode me odiar com todas as forças, mas quando eu mandar, você vai fazer. E eu estou mandando. Se você não pode devolver para mim as pessoas que eu amo, ao menos me deixe morrer logo, como eu já deveria ter morrido. - Ela disse, falando cada sílaba das palavras com uma calma assustadora. Itzel tinha essa loucura contida e aterrorizante que dava calafrios.
- Não. - Frank persistiu, com a voz trêmula. Mas mesmo assim, ele a encarava de queixo erguido.
Itzel era orgulhosa demais para dizer as palavras: "Me deixe mortal de novo AGORA". Um agora mudaria tudo, mas mostraria que o outro não tinha nenhum respeito por ela e tudo acabaria nesse protesto silencioso, em que seu desejo só foi concedido por ela ter usado um arranjo de palavras diferentes, que o obrigava a fazê-lo imediatamente.
Ela riu de forma colérica, passando as mãos pelos cabelos de forma que fez Frank pensar que ela os arrancaria ali mesmo.
- O que tem de tão importante na sua preciosa vida para lutar por ela de forma tão patética? Você existe para servir. A sua vida toda foi para isso. Não existe outra coisa para você sem ter um mestre para lhe dizer o que fazer. Pode não ser eu, mas você sempre vai procurar alguma nova figura de autoridade para obedecer, não é? É seu instinto. Você é um cachorrinho. Foi assim que foi parar com aquele cara esquisito do casaco ridículo. Você precisava de um dono na minha ausência, e assim foi.
Frank não gostava de sentir raiva, mas não conseguia não senti-la com aquilo. Continuou sentado, apertando uma mão contra a outra, enquanto percebia que estava um pouco mais translúcido do que antes.
- Ulukie não é meu dono. - Ele murmurou, abaixando a cabeça.
Itzel gargalhou de forma quase que histérica, se curvando um pouco para cima do outro.
- Não? Mas você o obedece não é? Você o obedece e o protege, como faz com todo mundo e como fez comigo. Você é um servo, Frank, você não pensa em si mesmo quando a coisa é servir. Se pensasse, não teria levado os tiros, e não teria me desafiado. Se pensasse em si mesmo, se autopreservaria. Mas você não faz isso, pois sempre está servindo a alguém, mesmo que não seja eu.
Frank estremeceu, sentindo que alguma coisa o comia por dentro. Naquele ponto já não sabia se era a dor, a raiva, ou o ressentimento.
- O que quer com isso? O que quer falando todas essas coisas para mim? - Ele perguntou, usando o resto de autoconfiança que lhe havia sobrado.
- Quero mostrar que sua vida é estúpida e que independente do que faça, isso não vai mudar.
Os dois se encararam por longos segundos. Ambos estavam desaparecendo aos poucos, e a praia parecia estar sofrendo do mesmo.
- E você acha que eu não sei? - Frank perguntou, com a voz chorosa. Ele só queria que aquilo terminasse logo.
Formou-se um minuto de silêncio. A tensão era quase palpável, e havia começado a chover forte. Ao longe, o horizonte ia se manchando de preto, como se houvessem lhe jogado tinta. A verdade era que Itzel não queria fazer aquela criatura chorar, e muito menos esperava aquela resposta vindo dele. Ela só queria que ele desistisse de ser um teimoso do caralho e que fizesse logo o que ela queria.
- Frank. Vamos fazer um acordo, tá bom? - Ela começou, depois de algum tempo, voltando a se sentar, dessa vez afastada dele. A chuva ensopava seu cabelo volumoso.
O Asahsqui não disse coisa alguma, o que fez ela levar como se fosse um sim.
- Fale algo que você quer, que não envolva não morrer. Sei lá. A paz mundial. Que um amigo seu fique rico, qualquer coisa, e eu te peço isso para que realize. Depois, você vai conceder o que eu quero e nós dois vamos morrer. Pode ser?
Frank se interessou ao ouvir o "qualquer coisa".
- Qualquer coisa?
- É.
- Eu quero tirar a maldição do Ulukie. Eu quero impedir que ele morra.
Não foi como se ele tivesse precisado pensar por muito tempo. As palavras saíram de sua boca em uma facilidade incrível. Ele não queria que Ulukie morresse e não sabia o que fazer para evitar isso, então tentava fingir que aquilo nunca iria acontecer. Mas daquela vez, ele podia impedir.
Asahsquis não matavam nem ressuscitavam, mas não havia nenhuma regra que os impedisse de evitar uma morte, mesmo que isso causasse a sua própria.
Itzel franziu o cenho.
- Você só pode estar de brincadeira comigo.
Ele não entendeu a reação dela, mas não disse nada a princípio. Logo, viu as pontas dos próprios pés sumindo e o mundo ao seu redor desintegrando gradativamente. Se demorasse mais um pouco, ele não iria acordar, e ficaria naquela realidade não viva nem morta com Itzel para sempre.
Não era como se importasse. Ele estava quase aceitando o que ela queria.
- Por que? - Questionou, confuso. Só queria resolver aquela situação o mais rápido que pudesse.
- Por que? Quer dizer que você pode manter os seus amigos vivos e eu não? Porra de acordo. Você é um egoísta irredutível. - Ela bufou, e os dois se encolheram, ambos encharcados pela chuva. Frank queria dizer que não, que ela que era uma egoísta irredutível, a qual nunca parecia estar perto de entender os motivos dele para não ter concedido aquele desejo dela, a qual tinha matado meio mundo de gente inocente e que tinha tornado a vida dele uma tortura. Que ela era infantil e que ele tinha motivos. Que ele tinha muitos motivos.
- Eu... eu mudo de pedido. - Acabou por dizer, mesmo que não quisesse mudar. Ele realmente não queria que Ulukie morresse, e naquele momento parecia a hora certa para resolver esse impasse, já que nunca poderia fazer algo sobre sem que sua mestre mandasse. Mas ele não tinha tempo para implorar. Então, precisava pensar rápido.
Itzel deu de ombros, esperando que ele falasse.
- Tire minha dor e me faça continuar vivo depois de sua morte. Nessa ordem. Tire minha dor, e depois peça para que eu não morra contigo quando eu tirar sua imortalidade. É só isso que eu peço.
Ela suspirou.
- São dois pedidos Frank. Eu disse um.
- Essa é a minha condição.
A extensão da praia já havia desaparecido fazia algum tempo, e tudo havia se tornado uma cópia da escuridão em que o Asahsqui havia ido parar no começo, quando o sonho começou. A única coisa que ainda existia era um pedaço do castelo, o qual eles estavam, e o resto de seus corpos, que continuavam a sumir.
- Certo.
Foi a única coisa que Itzel disse antes que fizesse os pedidos. Primeiro, desejou para que ambos não sentissem mais dor alguma, e assim foi feito. Depois, pediu para que Frank continuasse vivo independente de sua morte, o que também foi realizado sem dificuldades. Por último, pediu para que não fosse mais imortal, e assim ela se foi.
Frank se perguntou para onde almas como aquela iriam depois de tudo aquilo. Para onde almas como a dele iriam. Se perguntou se existiria descanso eterno para quem enganou a morte tantas vezes, e a única resposta em que conseguiu chegar foi de que não há descanso para os impios.
A coisa era saber se ele era impio também.
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