Maldita mortalidade
O lugar tinha um cheiro de podre, a névoa esverdeada sendo levada pelo vento e fazendo os olhos arderem. Frank não se lembrava quanto tempo fazia desde que esteve ali. O barulho das ondas de cor amarelo esverdeadas, batendo contra as rochas rosa alaranjadas que protegiam o castelo gigantesco feito do mesmo tipo de pedra enchia a cabeça de Frank como se o seu crânio fosse oco e a água estivesse ali dentro, se debatendo violentamente. Ele estava em cima de uma das pedras pequenas que se pareciam com ilhazinhas no meio do mar agitado, ajoelhado, quando sentiu a espada cortando o seu próprio pescoço, como tinha sido todas as outras vezes em que havia sonhado com aquilo. Não chegou a ver o rosto dela, nem a ouvir uma única palavra. Não era como se fosse possível, na situação em que se encontrava, e se fosse, talvez o seu subconsciente já tivesse feito questão de impedir isso. A dor excruciante era uma memória que fazia um gosto amargo vir para a boca, mesmo que ele já tivesse se acostumado, depois de tanto tempo revivendo essa lembrança nos sonhos e na vida real.
É claro que ser imortal seria uma maldição quando você não se regenera.
Ficou vivendo um pouco mais a própria miséria, quando ouviu passos dentro da água turbulenta, exatamente como foi durante o real acontecimento. Tateou cegamente em busca do próprio crânio, ainda sentido a lâmina quente rasgando seu pescoço, mesmo que já tivesse se passado alguns segundos depois de sua própria decapitação. A verdade era que nunca parecia ter acabado. Talvez esse fosse o sentimento da não-morte; independente de que Frank houvesse superado o obstáculo da mortalidade, de alguma forma, continuava morto como devia estar, e a tormenta da vida se esvaindo de seu corpo não iria lhe abandonar até que o fato se consumasse. O fato de que ninguém continua vivo depois de ser degolado.
Acabou colocando a cabeça de volta em seu devido lugar, encaixando-a no pescoço, apesar de ela ter ficado meio solta e encharcada. Se sentou na rocha, encolhido, se virando para de onde vinha o som dos passos, mesmo que só quisesse que aquilo acabasse logo.
Frank estranhou quando viu a figura vindo pisando na água feito uma criança, meio correndo e resmungando, quase sendo levado pelas ondas por culpa do seu tamanho diminuto, segurando o próprio casaco de pelos feito uma princesa que segura o seu vestido longo para não tropeçar. Não era bem assim que ele se lembrava que havia acontecido.
- ESTAG- FRANK? MAS QUE SONHO DEPRIMENTE É ESSE? - Ulukie berrou, à alguns bons metros de distância do estagiário, já completamente encharcado e quase tomando um caldo quando outra onda veio, praticamente o derrubando.
Frank não sabia como reagir a princípio. Se perguntou se a coisa estava tão feia para que seu subconsciente projetasse o chefe em seus sonhos, brigando com ele por reviver essa memória tantas vezes.
- OH IMBECIL,VAI ESPERAR EU ME AFOGAR É? - Ulukie gritou de novo. Não sabia nadar, e de toda forma tinha 1,55 de altura, então era difícil se manter em pé ali. Frank apenas correu até ele e o pegou no colo como se fosse um menino de oito anos sendo resgatado de um incêndio pelos bombeiros. Frank tinha um instinto paterno de segurar as pessoas mais baixas que ele no colo, sempre que tivesse oportunidade, o que não era muito difícil já que todo mundo era mais baixo que ele.
Ulukie tossiu um pouco, enquanto as águas coloridas e agitadas pareceram se acalmar.
- O que m-merda tu tá fazendo aqui agora, dormindo? Eu não te mandei ficar com o demônio lá?
Frank continuou com o chefe baixinho no colo, o encarando. Não sabia o porquê de estar sonhando com ele, e se arrependia de ter dormido no chão da salinha do Departamento de Conspirações do Inferno agora, pois ele acabou parando de vigiar Charlie enquanto isso. E se algo horrível acontecesse?
- Tá olhando o quê? Não vai me responder? - Ulukie tinha o dom de estar puto 100% do tempo e não ser quase nada ofensivo já que ele parecia no máximo um hamster raivoso. Frank começou a andar para fora da água, o carregando.
- Apenas querendo entender porque estou sonhando com o senhor nesse contexto. Não faz muito sentido.
Ulukie encarou Frank com um pouco de descrença.
- Você não se lembra da festa de integração da firma, aquela que foi uma merda?
O Departamento de Maldições e Sentenças de Morte era bem peculiar no quesito de quem contratava. O inferno era organizado em seus departamentos como o de conspirações, e o multiverso também era, quando a coisa era impedir que a realidade implodisse, e Frank e Ulukie trabalhavam nisso. O departamento deles ia atrás de todo ser amaldiçoado com alguma coisa que poderia causar algum mal para a estabilidade do multiverso, em qualquer universo que esteja, e acabava contratando boa parte desses amaldiçoados com o intuito de mantê-los sob controle, ou apenas refugiar os mais ferrados, já que a maioria das vezes quem se encontrava nessa situação tinha alguém o querendo morto. Devido a toda essa diversidade de universos juntos em uma só corporação, era feito um evento de integração, aonde todas as raças se conheceriam melhor e entenderiam mais sobre suas próprias diferenças e as realidades das quais vieram, uma coisa linda e emocionalmente digna de filme da Disney. No final não deu muito certo, já que Ulukie ficou bêbado no começo da festa e passou o resto dela desmaiado no banheiro, e ao menos 70% do resto dos convidados do evento tiveram o mesmo destino. Festas de firma sempre são uma porcaria.
- Aquela em que todos desmaiaram de forma mágica? - Perguntou Frank, chegando em terra firme, longe daquele mar esquisito.
- ...É. Forma mágica. Claro. Eu acho que provavelmente a gente teve uma conversa sobre de onde eu vim. Sei lá. É o seguinte, eu entro nos sonhos das pessoas. Cheguei no seu agora. E foda-se. Não vamos nos aprofundar nessa besteira. Quero saber o que você descobriu até agora sobre o demônio lá. Tem algum suspeito? Alguma merda que poderia ser considerada algum plot da narrativa já aconteceu? Tudo isso é importante e você não me mandou a merda de um relatório ainda.
Frank chegou na faixa de areia escura e colocou o chefe sentadinho em uma pedra alta, para que ficasse mais ou menos na altura de sua altura. Ele tentou ignorar que não fazia muito tempo que estava com Charlie, então não tinha material suficiente para um relatório. Ulukie balançava as pernas.
- Conheci o colega de trabalho dele. Meio excêntrico, mas não parece perigoso. Tem uma obsessão estranha por fichários da Hello Kitty, seja lá o que for isso.
Ulukie suspirou.
- Uma pessoa ter obsessão por fichários da Hello Kitty é sinônimo de psicopatia. Fica de olho nele.
- E parece que o nosso amaldiçoado faz... Hm... Fanfics. De uma tal de bela.
- Da Bela e a fera?
- Bela e a fera?
- É.
- Não, não acho que seja este o nome.
- Ótimo, porque se fosse fanfic daquele tipo... Daquele tipo, sabe? Seria meio bizarro.
- Oh. Entendo. - Frank não entendia, pois ele felizmente não tinha sido apresentado ao mundo das fanfics ainda.
Ulukie deu um pulo da rocha alta em que estava, caindo de pé no chão. Era estranho ver ele em sonho, já que não tinha aquelas olheiras terríveis que tinha na vida real e parecia menos acabado, como se a vida dele toda não tivesse sido uma grande tragédia. Frank gostou de vê-lo bem, apesar das circunstâncias. O chefe dele arrumou o casaco de pelos que vestia, o qual continuava encharcado.
- Tenho um mês e trinta dias até que minha maldição expire. Faço questão de que terminemos essa merda até lá, ok? Não quero ser o cara que morreu no meio de uma investigação importante. Se não der, eu também não me importo muito, eu acho. Você tá com seu cartão, né? Não perde. - Ulukie estralava os próprios dedos, enquanto batia o pé no chão, nervoso, como se estivesse dando instruções para um soldado de guerra e ao mesmo tempo não tivesse muita certeza do que estava falando. - Tente não dormir assim do nada também. Você pode perder alguma coisa importante, ou sei lá. Toma cuidado.
Frank ficou nervoso quando Ulukie falou sobre a maldição dele. Era complicado pensar que já estava tão perto. O estagiário deu tapinhas carinhosos na cabeça do menor.
- Vai ficar tudo bem. Disseram que iam achar um jeito de parar sua maldição, não disseram?
- Eles dizem isso para me animar à continuar trabalhando. Fazem isso com todo mundo, Frank. - Ulukie murmurou, com raiva. - Eu não me importo. Ok? Eu já vivo com isso a anos. Eu já aceitei. Você não deveria ficar se preocupando comigo.
Ulukie odiava o sentimento confuso que o arrebatava toda vez que alguém tentava ter esperança sobre toda a situação que o envolvia. Ele fez questão de se manter distante de todos durante sua vida toda para não lhes dar sofrimento quando ele viesse à morrer por conta de sua maldição, e Frank parecer minimamente comovido à respeito daquilo o fazia se sentir estupidamente emotivo. Afinal, se alguém se importava, o que diabo ele poderia fazer sobre?
- Mas é q-
Frank começou a falar, mas logo foi interrompido pelo chefe, que agora, por nenhum motivo aparente, se recusava a olhar em seus olhos.
- Se abaixa.
- Uh?
- Se abaixa, Frank. Tu é o dobro do meu tamanho.
Frank se abaixou, ficando da altura do outro.
- Se lembre que a partir de agora, todo tipo de merda pode acontecer contigo. É arriscado. Você pode estar sendo narrado agora mesmo. Todo mundo ao redor do demônio tá em perigo pois escritores são espalhafatosos e gostam de fazer os personagens sofrerem. Você entendeu? Por isso temos que achar esse filho da puta antes que minha maldição me pegue de jeito. - Ulukie colocou o dedo na cara de Frank, como se estivesse dando um sermão em uma criança.
- ...Certo.
- Agora faz aquela sua coisa. Se transforma naquele cara ruivo.
Frank se transformou, muito confuso. Ulukie se aproximou um pouco mais.
- Agora acorda e vai fazer as coisas que eu mandei, OK?!?
Ulukie deu um tapão na cara de Frank.
Não existe forma melhor para se acordar alguém do que no susto.
***
- Parece que teu amigo esquisito dormiu, Charlie. - Disse Demian, girando na própria cadeira, encarando o de terno desmaiado no canto da sala.
Charlie continuava digitando em seu computador como se fosse uma máquina de escrever e ele não fizesse a menor ideia de como usar, sentado de pernas cruzadas na cadeira, curvado e encarando a tela com desinteresse.
- Bom pra ele.
- Ah, tu ficou sab-
A fala de Demian é interrompida por alguém atravessando a porta. Um fantasma.
- CHARLIE SEU FILHO DA PUTA COMO VOCÊ TEVE CORAGEM?!?
Gritou a fantasma, que tinha um cabelo bem volumoso e bagunçado, pintado de azul e com a raiz castanha a mostra. Chorava como o inferno, com o nariz escorrendo e tudo. O cabelo cobria quase que completamente seus olhos, e ela não tinha a parte de baixo do corpo, então flutuava de forma estranha.
Charlie tomou um puta susto. Demian deu um sorrisão.
- E ai Eloá, conseguiu fugir da patrulha da reencarnação de novo? Boa menina, abaixo esses opressores q-
- COMO VOCÊ TEVE A AUDÁCIA DE MATAR TODO MUNDO NO FINAL? ATÉ A PORRA DA FILHA DELES CHARLIE. E PORQUÊ CÊ COLOCOU A HERMIONE NO MEIO? A FANFIC NÃO ERA DE CREPÚSCULO?
Era uma fantasma enlouquecida e aos prantos. Charlie prosseguiu com cara de cu, e murmurou:
- Era pra eu ter colocado sal na estrada das portas aqui tam-
Eloá se aproximou mais do barman. Só não o enchia de socos por ser intangível.
- Charlie, me explica de que inferno tu tirou a Hermione e colocou ela pra ser uma assassina maluca e matar o Jacob empalado?
Um silêncio pesou no ar. Demian estava chocado demais com os atos perversos de Hermione para poder dar alguma opinião sobre aquele assunto.
- Hermione é o personagem mais malévolo do universo de Harry Potter. Eu só fiz justiça a quem ela é.
- TU É UM MALUCO SEM CORAÇÃO EU TE ODEIO.
Eloá atravessou a porta da sala. Charlie deu um suspiro. Demian estava assustadíssimo, mas riu, sem graça, meio apático para o surto de fúria adolescente que tinha acabado de presenciar.
Depois de mais alguns minutos de silêncio, Demian falou, agora com um daqueles palitos de chocolate que se coloca em sorvete entre os dentes.
- Tenho medo do que vai acontecer com ela.
- O quê? - perguntou Charlie, voltando ao seu trabalho de apertar a tecla a do teclado quarenta vezes seguidas da forma mais lenta que conseguia.
- Com a Eloá. Ela tá fugindo de reencarnar faz tempo, e ainda por cima veio pro inferno porque quis. Eu não sei bem o que aconteceria com ela nesse caso.
Charlie ficou calado.
- Ela disse que não quer voltar porque não quer morrer de novo, não é? – Continuou Demian, quebrando o palito de chocolate no meio. -Reencarnar meio que é isso. Mas que filha da puta, essa maldita mortalidade. Não podiam sei lá, deixar todo mundo ficar vivo para sempre e ir trocando de corpo como robôs?
O outro demônio revirou os olhos, coçando a cabeça e bagunçando mais ainda o cabelo branco e crespo.
- É ridículo. Ela nem vai se lembrar que teve outra vida.
- Mas agora ela sabe que vai ter outra vida. – Demian rebateu.
- Não se pode fazer nada. Ela faz isso por que quer, essa coisa toda de fugir. Um dia pegam ela e ela reencarna em um bebê gordo e insuportável, fim, felicidade humana até ela ser atropelada por um caminhão ou ter um câncer. - Charlie bufou, apertando com mais força as teclas a de seu teclado.
- Você parece bravinho de que a única leitora da sua fanfic vá reencarnar em um bebê gordo e insuportável. É ISSO MESMO QUE ESTOU VENDO? CHARLIE TEM SENTIMENTOS?- Demian continuou rodando em sua cadeira, enquanto gritava de forma dramática. Charlie deu de ombros, meio irritado.
- Eu espero que você caia.
Mais alguns segundos de silêncio. O calor insuportável do lugar e a música em looping parecia que iria fazer o cérebro de Charlie derreter e começar a escorrer para fora pelo seu ouvido.
- Ah, uh, Charlie, cê já escolheu a roupa pra ir pro casamento da Cheryl? Eu tô em dúvida se eu uso aquela gravata vermelha minha ou se eu vou sem camisa mesmo, pra destacar meu cinto de crochê.
Charlie parou de digitar imediatamente. Não olhou pra Demian. Apenas ficou quieto por alguns segundos, digerindo a informação.
- Cheryl vai se casar?
- É, ué. Ela não te chamou?
- Não. Eu não vejo ela faz dois anos e alguma coisa. - E voltou a digitar lentamente no computador - É algum velho rico de novo?
- Não. Parece que ela resolveu se casar com um humano qualquer por conta do poder do amor, e não para virar duquesa. Eu sei, é estranho.
Charlie demorou mais um tempo pra responder, meio incomodado.
- Isso é mentira. Todos sabem que vampiros não tem coração. Cheryl não iria se apaixonar por um humano.
Demian levantou as sobrancelhas.
- Cê parece triste. Tá triste?
- Eu não.
Ele pensou em dizer algo para confortar Charlie, mas Frank acordou em susto no chão, se transformando novamente em caveira.
- Bom dia minha flor do dia, coisa mais linda! Dormiu bem bonitão? - Disse Demian, com um sorriso, não parecendo estranhar a troca de forma repentina do estagiário.
Frank encarou Charlie, que apenas voltou ao seu trabalho de destruir a tecla a do teclado, e depois voltou a sua atenção para o outro demônio.
- Sonhei com meu chefe. Ele me deu um tapa. – Foi o que o estagiário disse, tranquilo.
- POR ESSAS E OUTRAS QUE MARX QUERIA UMA SOCIEDADE QUE A BURGUESIA NÃO EXPLORASSE O PLORET-
- Demian, com todo o respeito, vai se fuder. - murmurou Charlie, quase que um pouco triste. Já era a quinta vez no dia que ele era obrigado a ouvir um discurso comunista.
- Não adianta dizer com todo o respeito se você diz algo completamente desprovido de respeito logo após, Charlie. - retrucou Frank, com uma voz meio compreensiva.
- É isso mesmo. ESCUTA TEU AMIGO, CHARLIE.
Charlie se levantou.
- Acabou meu turno. Tchau.
Demian fez um biquinho triste.
- Cê tá chateado comigo? Não fica chateado comigo.
Frank estava meionervoso com a situação, sem entender. Apenas seguiu Charlie quando ele abriu aporta e deu um tchauzinho pra Demian. Os próximos minutos foram terríveismomentos em que Charlie e Frank escalaram o Bueiro para ir de volta pro Vazio. Opior foi que quando chegaram no bar, ele não estava tão vazio quanto oesperado.
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