Fantasmas bebendo vinho de cobra
Demian nunca havia organizado um funeral coletivo.
Na verdade, ele nunca tinha organizado nem um funeral solo, imagine um coletivo.
E organizar era uma palavra muito forte para descrever o que ele tinha feito. Não havia caixões nem corpos para serem enterrados, então o que diabo ele organizaria? A única coisa que ele fez foi, depois de muita insistência da parte de Loydie, pedir para que Cheryl comprasse vinho de cobra. Também chamou Frank, já que Loydie não fazia ideia de como enterros nahuatl funcionavam além da estranha tradição do vinho, pois havia sido criado no meio do mato por si mesmo e pelas vozes em sua cabeça.
Cheryl apareceu no Inferno com uma sacola plástica contendo exatamente quatro garrafas de vinho e foi embora tão rápido quanto quando chegou, pois tinha mais o que fazer. Cada garrafa tinha uma cobra embebida no conteúdo transparente. Apesar de todo o drama envolvendo o dinheiro perdido na festa de casamento fracassada, a vampira estava viva a tempo suficiente para ter dinheiro guardado de épocas em que ela foi viúva de lordes ingleses ou diretora de multinacionais, fazendo com que não lhe fosse um grande sacrifício conseguir aquelas coisas. A única razão de ela estar tentando ter uma vida simples agora é que todo mundo entra em crise e toma decisões estúpidas para se sentir vivo, e os vampiros não são uma exceção.
Demian largou o trabalho no Departamento de Conspirações do Inferno, puxando Loydie pelo braço. Não ia negar que estava pensando que talvez precisasse fazer o enterro de Charlie também, junto com o dos outros, já que fazia quase um mês que ele havia desaparecido misteriosamente, mas tinha quase certeza de que não seria o caso. Charlie não era o tipo de demônio que simplesmente morria. Talvez, se um dia ele chegasse a esse ponto, o desgraçado acabaria ressuscitando só por teimosia e preguiça de mudar de estado, pois ir de vivo para morto requereria uma energia que com certeza ele não estaria afim de gastar.
Demian se agachou no chão do corredor de pedra do lado de fora da salinha do departamento, puxando Loydie para baixo junto. Hoje, o demônio estava com sua roupa designada para enterros: Um vestido amarelo de alcinha, botas vermelhas de salto alto e uma jaqueta preta de couro, pois preto é a cor do luto. O nahuatl estava com uma camisa cinza do Capitão América e shorts jeans, roupas que Demian havia ocasionalmente roubado de uma arara da C&A, com a justificativa de que o capitalismo é uma ilusão, já que se ele não o praticava, ele não existia.
- Loy, morde teu dedo pra tirar sangue que eu preciso fazer um desenho no chão pra a gente ir pro Vazio. - Inquiriu Demian, arrumando a sacola plástica para que as garrafas não se quebrassem, já que elas estavam constantemente batendo umas nas outras. Loydie rosnou e mordeu a ponta do dedo, contrariado mas vencido.
Demian fez um desenho no chão com o dedo sangrando do outro. O relacionamento deles era baseado em compreensão e rosnados, e funcionava muito bem assim, por mais estranho que parecesse.
O desenho no chão era algo satânico dentro de um círculo, e assim que essa coisa brilhou, ambos acabaram se teletransportando para o Vazio.
E o Vazio estava vazio, como era de se esperar.
- Era pra a gente fazer isso em casa.
Loydie disse, se levantando e começando a andar, emburrado. Demian deu de ombros, se levantando também e caminhando de forma deslumbrante com sua sacola de bebidas alcoólicas exóticas ao lado do ser de outra dimensão. Casa era algo muito longe do nome adequado para se dar ao lugar onde eles dormiam, já que era um muquifo qualquer no meio do Inferno onde se tinha uma bela vista do lugar onde outros demônios tacavam fogo em almas ao som de Evanescence. Podia-se dizer que era uma vizinhança meio barulhenta, não muito adequada para um evento em homenagem aos mortos, mas não é como se o demônio fosse gastar saliva para explicar isso pela milésima vez.
A dupla entrou no bar abandonado no meio da escuridão eterna do Vazio. Numa mesinha de plástico da Skol estavam sentados Frank e Ulukie, os quais se mostraram realmente aliviados com a chegada dos dois. Não por motivos emocionais complexos ou saudades, mas sim porque se eles não aparecessem, acabariam ficando presos ali para sempre, já que infelizmente estavam dependendo dos desenhos satânicos de Demian para poderem ir embora.
Ulukie girava entre os dedos o cartão de viagem interdimensional que antes era usado por ele para chamar os elevadores, mas que agora não passava de nada mais do que um pedaço de plástico amarelo e inútil. Ele havia se demitido. Com a demissão, vinha a desativação do cartão após o retorno do ex-funcionário para a sua própria dimensão ou qualquer outra de sua escolha, e consequentemente, por falta de melhores opções, Ulukie havia decidido ir para a de Charlie. Talvez houvesse se apegado com a ideia do Inferno ou com os gatos pingados que havia conhecido por lá, mesmo que não os considerasse grandes amigos. Talvez conhecidos. Chegados. Companheiros de tragédia. Além do mais, ele não era louco de ir para a sua dimensão de origem. Aquele nunca tinha sido o seu lugar, e pretendia se manter longe de lá até o fim da vida. Uma parte de sua mente acreditava que o fazia para não precisar lidar com o fato de que Aldebaran havia morrido também, mas a outra parte costumava insistir de que não era nada disso.
Frank também havia se demitido. Ele, com motivações mais simples, já que o fez para que Ulukie não ficasse sozinho. E talvez fosse bom se afastar daquele emprego, por mais que achasse o pessoal do RH extremamente gente fina e fosse sentir falta de Ty, já que havia acontecido muita coisa ruim durante sua estadia naquele trabalho, e se afastar dele parecia uma boa alternativa para esquecer mais cedo de tudo aquilo ou apenas para parar de reviver traumas. Ty disse que iria manter contato, o que era bom, mesmo que Frank soubesse que não funcionaria muito bem com ele por enquanto. Com Ulukie talvez desse certo, já que ele sabe muito bem como mexer em tecnologia, coisa que o ex-estagiário com toda certeza do mundo não sabia. Celulares e computadores eram inimigos mortais que ele não tinha ideia de como funcionavam, e não estava muito afim de descobrir por enquanto.
Demian colocou a sacola com as garrafas em cima da mesa de plástico, com um sorriso nervoso no rosto. Ele não fazia ideia de como lidar com funerais, e muito menos sabia como funerais assim funcionavam. Ulukie também estava meio nervoso, enrolado em seu casaco de pelos e guardando o cartão desútil no bolso em que deixava guardado o pinguim muito feio que tinha ganhado de Frank, consequentemente o segurando um pouco pois o ajudava a se acalmar. Ele não sabia muito bem o motivo de seu nervosismo, mas podia pensar que talvez fosse por causa de todas as mudanças insanas que não paravam de acontecer em sua vida. Ele estava vivo, e por mais bizarro que isso pudesse soar, essa era a primeira vez em que estava lidando com isso de verdade. Era a primeira vez que ele estava lidando com a vida como algo real e que merece ser vivida, e estava fazendo isso em meio a um funeral esquisito em companhia de três pessoas igualmente esquisitas e quatro cobras mortas mergulhadas em álcool.
Frank também estava nervoso, mais por ser um funeral simbólico em homenagem a Aretha, e incrivelmente, a Itzel, do que por qualquer outro motivo. Ele ainda se sentia meio culpado pela morte da primeira, e por mais que Itzel tivesse o arruinado de diversas maneiras, não conseguia sentir um real ódio por ela. Ele havia ficado triste com sua morte, apesar do alívio. Ele ainda estava triste. Não sabia se um dia ia parar de estar triste, mas por um lado estava bem menos triste ultimamente, já que as coisas estavam indo meio que bem. Ulukie estava vivo e isso era um bom início, apesar de toda a incerteza sobre o futuro que se demitir estava lhe causando. Ao menos, eles estariam juntos se as coisas dessem muito errado, e isso lhe causava conforto.
Loydie não estava nada nervoso, e sim com ódio. Não por uma razão específica. Sentir ódio lhe era algo corriqueiro em sua vida, seja por alguém estar respirando alto demais ou apenas pelo sol continuar brilhando no céu. A verdade era que de alguma forma sentir ódio o fazia sentir-se mais próximo de Aretha desde que ela se foi, já que ambos costumavam a odiar as coisas juntos, e essa estava sendo sua maneira de lidar com a falta que sentia dela.
Quando os quatro se sentaram na mesa, igualmente nervosos e ainda sem terem dito uma palavra sequer, o silêncio do Vazio pareceu quase sólido. Demian tirou as garrafas da sacola, cuidadosamente, e inspirou fundo, quebrando a mudez mortal do lugar com uma pergunta que estava lhe incomodando faz tempo.
- Eu posso ser o padre? - Questionou. Funerais tinham padres? Ele não sabia, mas pareceu o certo a se perguntar.
Os outros três não faziam ideia do que diabos era um padre, então se entreolharam.
- Pode ser sim. - Frank respondeu e os outros não reclamaram. Na verdade, ninguém queria perguntar o que era um padre para o demônio pois sabiam que uma hora ou outra, no meio da resposta, Demian iria dar um jeito de começar a falar de anarquia ou comunismo (quiçá os dois) e eles não sairiam dali tão cedo, então era melhor assim. Ulukie deu um suspiro curto e ficou encarando a serpente dentro da garrafa, apoiando o cotovelo da mesa e segurando o próprio queixo, e Loydie começou a morder uma pulseirinha de metal que usava no pulso esquerdo. Ele gostava de morder coisas.
O ex-chefe de Frank suspirou de novo, encarando realmente incomodado as garrafas. Demian e Frank por final acabaram o olhando, se perguntando o que diabos aquelas malditas garrafas tinham de tão errado para alguém suspirar duas vezes seguidas ao vê-las.
- Eu realmente quero saber o que cobras e vinho tem a ver com fantasmas, e até agora não cheguei a nenhuma conclusão plausível. E tipo, essa questão já foi colocada em pauta uns dois meses atrás. - Ele murmurou, realmente compenetrado naquela linha de pensamento, cutucando o vidro da bebida. Ulukie tendia a pensar demais até sobre as coisas mais ridículas.
Demian riu. Ele também não fazia a mínima ideia do que tudo aquilo se tratava e não iria se sujeitar a abrir a boca para questionar o mesmo que o outro. Loydie, por sua vez, não estava mais nem aí para aquela conversa e agora estava sentado de cócoras na cadeira de plástico, roendo a pulseirinha. Ele realmente gostava de morder coisas.
- É que se não oferecerem vinho de cobra para quem morre, as almas não vão para lugar nenhum. - Frank respondeu, em um tom compreensivo, olhando para Ulukie que apoiava o queixo na mesa. As vezes ele parecia se esquecer de que ninguém fazia a mínima ideia do que caralhos ele estava falando, e foi exatamente essa a reação que se pôde ver no rosto de seu interlocutor.
- Eu não faço a mínima ideia do que caralhos você está falando, Frank. - Ulukie respondeu, tentando não parecer tão rude quanto normalmente soava 90% do tempo. Ele estava fazendo esse esforço ultimamente já que havia começado a perceber que era um potencial cuzão, e não queria ser um com ninguém sem motivo, muito menos com o Ahsasqui.
- E todo mundo sabe que geral vai pro Inferno mesmo sem vinho de cobra. - Demian acrescentou, orgulhoso de seu conhecimento sobre a podridão das almas de sua dimensão.
- Só quem é dessa dimensão. Na minha não tem Inferno. - Frank respondeu, se apoiando no cotovelo, sentado do lado de Ulukie. Ainda não tinha se acostumado muito bem com a coisa de não sentir mais dor nenhuma, e só lembrava que de fato tinha a cabeça desgrudada do resto do corpo quando se apoiava nela e seu crânio escorregava para o lado, quase caindo.
- Então pra onde que o povo vai quando morre? - O demônio questionou, cruzando as pernas.
- Eu não sei. Mas sei que é algum lugar, e dependendo de o que você fez em vida, você pode acabar não indo até lá.
- E vai pra onde em vez disso? - Demian indaga novamente, focado, como uma criança enjoada perguntando para os pais de onde os bebês vem.
- Quem não vai pra lá para de existir. - Frank replica, prontamente. Ele gostava de explicar coisas.
- Tá, mas o que o vinho de cobra tem a ver com isso? - Ulukie finalmente se pronuncia de novo. Na dimensão dele, quando as pessoas morriam, tudo acabava para sempre e fim. Ele ainda estava se acostumando com a ideia de que vida pós a morte era algo comum de se acreditar e existir em outras culturas e universos.
- A deusa que guia as almas, Sarpe, é uma cobra gigante.
Loydie acabou quebrando a pulserinha com suas presas afiadas. Ela caiu no chão, fazendo o mesmo barulho que coisas finas de metal fazem quando caem sem querer em um piso de madeira mofada. Ulukie e Demian se entreolharam.
- Aí tipo, ela quer bebidas alcoólicas com cobras dentro como pedágio pra levar os fantasmas pra o lugar lá ou para fazê-los parar de existir? - O menor da mesa, que estava enrolado em um casaco que não condizia com a temperatura do lugar no momento, perguntou, se sentindo realmente perdido com aquela lógica.
- Não, não, o vinho é para os próprios fantasmas. - Frank esclareceu novamente, sereno.
Demian também já estava perdendo o fio da meada.
- Então, ok, a deusa só leva pra o lugar lá ou faz parar de existir os fantasmas que estiverem bebendo vinho de cobra?
- Hurrum.
- E o que diabo acontece com quem não estiver com vinho de cobra? - Ulukie disse, voltando a encarar as bebidas em sua frente.
- Ah - Frank iniciou, se ajeitando na cadeira que não lhe era muito confortável por conta de sua altura. - Quem não tiver vinho de cobra volta a vida, só que como um Ahsasqui.
Demian não sabia o que era um Ahsasqui e muito menos que Frank era um, então não se demonstrou muito abalado. Loydie, por outro lado, sabia muito bem, mas estava ocupado demais mordendo a correntinha que tinha pego de volta do chão. Morder coisas era um hobby ao qual ele se dedicava de forma bem apaixonada.
Ulukie semicerrou os olhos, encarando o homem caveira por alguns bons segundos.
- Então, antes de ser o que é agora, você era um desses caras aqui? - Ele perguntou, apontando para Loydie.
Frank concordou com a cabeça. Ulukie se permitiu fazer uma expressão meio surpresa, e se perguntou se Frank se lembrava de algo de sua antiga vida. Mesmo assim, não disse nada, pois parecia um assunto muito complicado para se debater enquanto não se quer prolongar muito a duração de um evento.
Demian notou o clima esquisito, mas o ignorou completamente.
- Ok, como a gente vai fazer isso? Eu sou o padre, então eu tenho que rezar? - Ele perguntou, ajeitando novamente as bebidas na mesa.
- Na verdade, era para todos rezarem. - Frank falou, ainda se questionando mentalmente o que o demônio queria dizer com "padre". - O enterro vai ser só de Aretha e Itzel ou vai ter mais alguém?
Tinha quatro garrafas de vinho, então essa se mostrou uma pergunta cabível.
- Kayron e Illa. - Loydie disse, finalmente falando algo, ainda roendo a correntinha. Não, ele não queria estar ali, pois não gostava muito de Frank já que se ele não existisse nenhuma das filhas da putagens de Itzel aconteceria. Se ele não existisse, Kayron não teria morrido, também. Se ele não existisse, muita coisa não teria acontecido, e mesmo que Loydie ainda odiasse Itzel por causa do que houve com Aretha, o que caralhos ele poderia fazer agora se não culpar outra pessoa e seguir a vida?
Mas sei lá. Ele realmente não tinha muitas opções e a única coisa que se mostrava possível para ele no momento era continuar odiando Frank de forma reprimida, já que nem todo mundo tem uma epifania ou desenvolvimento louvável no final de um livro. Às vezes, as pessoas existem e continuam existindo em sua maneira para todo o sempre, e nem uma entidade onipotente onipresente pode mudar as suas formas de pensar ou lidar com a vida.
Frank não sabia quem eram Kayron e Illa, mas tinha alguma ideia de quem poderiam ser. Respirou fundo. A conversa que se sucedeu foi sobre se alguém sabia rezar, e como aparentemente Frank era o único que possuía esse conhecimento, ele fez isso pelos outros três. Todo mundo ficou quieto enquanto isso, e quando o ex-estagiário terminou, algum sentimento de missão cumprida pôde ser sentido por todos.
- Acabou? - Ulukie perguntou, agora se preocupando com outros assuntos além da lógica por trás da coisa toda das cobras e dos espíritos. Ele começou a bater um dos pés no chão.
Frank concordou com a cabeça e pôs a mão sobre a do ex-chefe, em uma tentativa de dizer que não era necessário ficar nervoso com qualquer coisa que fosse. Funcionou um pouco.
Demian se surpreendeu. Havia sido mais rápido do que ele esperava que fosse, e deu glória aos céus por isso. Se levantou e pulou o balcão do bar, de maneira jovial e quase digna de um acrobata olímpico, procurando nas prateleiras copos utilizáveis.
- Então a gente pode beber essas coisas agora, né? - Ele perguntou, limpando a poeira de dentro dos copos de extrato de tomate vazios que havia encontrado com a própria roupa.
Frank não fazia ideia se podia, mas concordou com a cabeça de novo em resposta.
Demian sorriu, animado. Ele não era de pedir permissão para fazer as coisas, e mesmo que a permissão lhe fosse negada, ele iria acabar fazendo de todo jeito. Loydie parou de prestar atenção na conversa de novo, já que o luto pelos amigos mortos dele havia sido devidamente prestado, e voltou a morder sua correntinha.
O demônio colocou quatro copos precariamente limpos com suas próprias roupas em cima da mesa de plástico, e tirou um saca rolha do bolso da jaqueta, começando o trabalho árduo de abrir uma garrafa. Ele nunca havia bebido esses vinhos chiques, e a ideia de encher a cara com coisas que custaram mais de seis reais e que não foram roubadas (Demian só havia comprado cachaças baratas em toda sua vida, antes de entrar no mundo do vandalismo e crime.) lhe era bastante empolgante.
Ninguém se permitiu respirar pelos segundos em que duraram a tentativa de remoção da rolha, pois era um trabalho quase que cirúrgico com muitas complicações técnicas, ao depender do ambiente em que se é realizado. E a verdade era que o Vazio não era o melhor lugar do mundo para se abrir bebidas exóticas, mas ninguém ali tinha conhecimento sobre isso.
A rolha em vez de sair pra fora caiu pra dentro da bebida, e foi bem perceptível a tristeza no olhar das testemunhas daquela tragédia.
Mesmo assim, Demian não se abalou, e despejou o líquido nos copos como se estivessem em uma festa e não em um pós funeral muito esquisito e deprimente. Depois sentou em sua cadeira novamente, e deu um golinho na bebida.
Achou uma porcaria e culpou o capitalismo por isso.
Loydie estava muito focado destruindo metal com os próprios dentes portanto não deu um único gole em seu copo. Frank não bebeu pois não sabia se podia, já que quando ele era um fantasma não foi digno e agora provavelmente continuava o mesmo, além de todas as complicações que isso poderia lhe causar, já que sempre existiam complicações para serem causadas em algum momento. Ulukie pegou o copo e bebeu tudo de uma só vez.
- A gente precisa que você faça um daqueles seus desenhos no chão pra a gente ir pra o lugar onde os humanos ficam. - Ele disse, se dirigindo a Demian, o qual colocou o copo novamente em cima da mesa, profundamente arrependido de ter colocado aquela coisa horrenda e burguesa na boca.
- Tá bom. Cês já sabem o que vão fazer lá? - Ele perguntou, enquanto cuidadosamente cutucava Loydie para perguntar se ele queria experimentar da bebida. Tudo o que recebeu de resposta foi um rosnado que por algum raio de motivo o demônio entendeu muito bem, e não se tocou mais no assunto.
Ulukie abriu a boca para falar, e demorou um pouco para fazer isso, mas no final conseguiu.
- Eu não faço a mínima ideia. Eu meio que falei com a Cheryl dessa coisa e ela falou: "Ok, vocês dois podem ficar na minha casa até se acostumarem com o capitalismo e o transporte público, e eu posso tentar te arranjar um emprego no telemarketing ou coisa do tipo". Eu falei ok e é isso que temos até agora. - Concluiu.
A verdade era que Ulukie não fazia a mínima ideia também, além do que iria fazer no futuro, de como conseguiu estabelecer uma amizade decente com Cheryl. A coisa tinha se desenvolvido de forma tão torta e absurda que naquela altura do campeonato ele só havia aceitado que era pra ser. Talvez exista algum estudo científico que seja sobre a enorme probabilidade de se virar amigo de alguém que lhe quebrou o nariz, costurou seus ferimentos em um banheiro imundo enquanto bebia vinho tinto e foi atacado por uma capivara mágica em sua companhia, mas como Ulukie ainda não havia entrado em contato com tal documento, apenas desistiu de procurar lógica naquilo.
Tudo começou no dia após ele não ter morrido e Charlie ter sumido da face da terra. Nessa situação, ele acabou por resolver achar um jeito de falar com a vampira, só para saber se ela tinha alguma pista de onde o desgraçado poderia ter se metido. Naquela época Ulukie ainda estava se preocupando se eles continuavam na narrativa e se aquilo era algum presságio de mais algum tiroteio em casamento que poderia estar por vir, o que o fez tomar decisões extremas como começar uma conversa com alguém para obter informações. Depois de muita burocracia, ele conseguiu o número de Cheryl, um celular e um Whatsapp, para tentar resolver aquela coisa toda com o máximo de distância possível de quaisquer ser vivo que fosse (Tirando Ty e Frank, que serviam como apoio emocional), já que ele ainda estava se recuperando de todo o sangue perdido em sua quase morte, e por mais que não quisesse admitir isso, da morte estranha de Aldebaran.
A primeira conversa foi esquisita, e por algum motivo, meio longa. Depois de falarem sobre Charlie, eles acabaram emendando em outros assuntos: Como caralhos Ulukie ainda estava vivo? A capivara mágica iria voltar? Frank e Ulukie eram namorados? Cheryl ainda estava triste por conta de seu casamento fracassado? Como ela em sã consciência pôde ter sequer pensado em se casar com um humano chamado Miguel quando ela é uma vampira de quase um século de vida muito foda? Ulukie deveria fazer terapia? Milho verde é uma constante em todo o multiverso? E por aí em diante.
E assim ocorreu o milagre da amizade que futuramente renderia para Ulukie um emprego numa agência de telemarketing e pães assados por um demônio para comer no café.
- Parece daora. Parabéns, caras. Corta teu dedo aí que eu preciso de sangue pra fazer o desenho e o de demônio não serve. - Demian disse, se levantando da cadeira em seu entusiasmo habitual. O príncipe renegado de outra dimensão se levantou também, soltando a mão de Frank, e quebrou o copo de vidro em que havia bebido no chão, pegando um caco e cortando o dedo. Os dois se acocoraram no chão e o demônio desenhou o portal, que logo começou a brilhar. Ulukie pulou para dentro do círculo e puxou Frank para fazer o mesmo, e os dois sumiram dali.
Ao que parece, as coisas iriam dar certo dessa vez.
***
Cheryl recebeu uma mensagem junto com um endereço. Na mensagem estava escrito "Abri uma padaria vem ver traz dinheiro por favor passa no vazio e pega tiffany pra mim", tendo anexado um endereço no Maps. Ela sabia muito bem quem havia enviado aquela mensagem, já que infelizmente tinha o contato do infame salvo em seu celular, e isso a fez entrar em profunda reflexão de se valia a pena ir até lá.
Como, ao contrário do que gostava de afirmar para os outros para parecer alguém chique, ela não tinha nada melhor para fazer, resolveu ir.
Sim, era verdade que ela tinha prometido a si mesma que nunca mais se daria o trabalho e gastaria energia tentando lidar com aquela criatura, mas era algo quase impossível. Os dois podiam ser que nem água e óleo, mas não se podia negar de que tinham uma história longa juntos e que mesmo que se afastem uma hora, sempre acabariam se encontrando de novo. Em um momento de sua trajetória até o local indicado a vampira chegou a se questionar: "Será falta de amor próprio eu estar me submetendo novamente a trocar palavras com um animal que tem a inteligência emocional de uma porta?", mas acabou deixando o pensamento de lado, já que apesar dos pesares, ela ainda tinha fé de que Charlie conseguiria evoluir espiritualmente ao menos o mínimo para ser considerado um ser humano decente, mesmo que ele não fosse um ser humano.
Era sete horas da noite quando Cheryl chegou no bairro bem perto da praia, carregando uma sacolinha de plástico com o cacto. Sim, ela era trouxa e desocupada, por isso fazia favores aos outros. Era um lugar era até mais movimentado do que ela um dia pensou que Charlie seria capaz de ficar, já que ele era um bicho do mato, e isso a surpreendeu um pouco. Andou pelas ruas calçadas com paralelepípedos, tentando ignorar os humanos que transitavam por ali, já que estava com fome. Não que ela ainda estivesse sem comer por ter pena deles, mas estava tentando ter o pudor de não sair por aí matando qualquer um em um beco para ter um lanchinho, já que foi assim que nasceram os rumores sobre o Chupa-Cabra. E ela nunca matou uma cabra sequer.
A padaria em questão era um estabelecimento estreito e pequeno mas incrivelmente muito mais bem apessoado do que era de se esperar devido ao seu dono. Cheryl parou na entrada, e olhou para dentro, onde pôde ver Charlie em sua forma humana, com uma camisa do flamengo, uma bermuda caqui e chinelos, atrás do balcão onde ficava os pães, jogando em seu gameboy. Em uma prateleira atrás dele havia itens diversos: Caixas de leite, pacotes de bolacha e de papel higiênico.
Cheryl mal conseguiu acreditar no que estava vendo.
- Eu não sei se o que mais me surpreende é você ter montado uma padaria ou ter trocado de camisa. - A vampira falou, fazendo o demônio tomar um susto e tirar os olhos da tela. Seu cérebro pensou "Droga, perdi no Tetris", mas ele tentou não fazer grande caso sobre isso.
Charlie colocou o gameboy em cima do balcão de vidro, com uma expressão neutra no rosto, quase dando graças a Deus ao ver Tiffany na mão da mulher.
- Entra aí.
Cheryl entrou, limpando os pés na calçada antes. Colocou as mãos da cintura e deu uma bela olhada no lugar, sentindo um pouco de orgulho da primeira conquista individual que aquela criatura teve em toda a vida.
- Tenho que admitir, quando nos conhecemos e você me disse, em pleno século XV, que seu sonho era fazer pão e que só assim seria realizado na vida, eu pensei ser uma piada e nunca mais toquei no assunto. Mas aqui estamos, não é mesmo?
Charlie deu um sorriso minúsculo, que era o mais próximo de uma risada verdadeira que ele conseguia emitir. Pegou um banco de plástico igual ao que ele antes estava sentado e o colocou na frente dela. Cheryl sentou e ele voltou a fazer o mesmo, pegando uma carteira de cigarros no bolso e acendendo um com o isqueiro. Ele deu uma tragada e cuspiu fumaça para o lado oposto de onde ficava os pães.
- Ulukie veio me procurar, um tempo atrás, pra saber se eu sabia onde você havia se metido. - A vampira falou, ao perceber que o outro não ia começar uma conversa tão cedo.
Charlie arregalou os olhos, surpreso.
- Então ele viveu?
- É, viveu, só que ninguém sabe como. - Cheryl pegou uma caixa de leite em uma das prateleiras atrás de si e começou a ler o valor nutricional impresso na embalagem.
O demônio deu de ombros. Isso queria dizer que ele havia matado o cara certo e consequentemente salvado a vida de Ulukie, o que era um grande acontecimento, tendo em vista de que essa foi a primeira boa ação que fez, mesmo que envolva o assassinato de alguém, mas não iria se vangloriar por isso. Fumou mais um pouco.
- O pai dele morreu, né? - Perguntou, como quem não quer nada, enquanto uma moto muito barulhenta passou correndo e buzinando pela rua, quase tornando o que ele disse inaudível. Mas Cheryl ouviu muito bem.
- É, morreu. - Disse, dando uma pausa curta - Pra você estar aqui quer dizer que matou alguém, não é? Para cumprir o contrato com Klaus. Foi o pai dele? - A vampira questionou, erguendo uma sobrancelha, agora lendo a quantidade de carboidratos que um leite de caixinha possui.
Não havia motivo algum para esconder aquilo dela, por isso Charlie respondeu prontamente:
- Foi.
Alguns vizinhos começaram a brigar no meio da rua. A moto barulhenta desceu a ladeira de novo. Os dois trocaram um olhar meio cúmplice, alheios ao pandemônio externo. Um olhar de quem se conhece faz tempo demais para achar previsível as ações um do outro, mas que agora, estava genuinamente surpreso.
- Algum motivo especial ou só por que pareceu conveniente na hora?
- Ambos. - Disse, e apagou o cigarro no chão, com o próprio pé, dando o assunto como encerrado.
Cheryl tirou os olhos da tabela nutricional do leite e o encarou. Ela não ia deixar ele dar o assunto como encerrado tão cedo.
- Desenvolva isso. Vampiros não leem mentes, somos mais sem graça do que fazem parecer nos filmes. - Disse, quase ameaçadora, mesmo sabendo que não requere muito esforço para fazer o outro desembuchar.
Charlie decidiu acender um outro cigarro, pois não podia falar daquela novela mexicana sem fumar.
- Seguinte. - Iniciou, gesticulando com a mão que estava vazia - Meio que eu possuí uma mulher aleatória, pois ela tinha umas armas boas e eu tava nesse lugar bom para matar alguém, só que apareceu esse cara, e saiu me puxando para dar um rolê, pois aparentemente, essa mulher que eu possuí sabia muito sobre coisas sombrias e tal. Acabou que o cara era o pai do moleque e no meio da situação eu liguei os pontos e percebi que esse cara que tinha botado a maldição nele. - Engasgou com fumaça e tossiu um pouco, se recuperando alguns segundos depois. - E aí eu meio que o enganei e fiz ele morrer, pois me era conveniente e também por que iria acabar impedindo que o cara lá morresse. Mas foi mais por conveniência do que por algum relapso de bondade, então não precisa se assustar com isso.
Cheryl ergueu as sobrancelhas, por parte meio desacreditada.
- Foi por isso que deu chá de sumiço e não avisou pra ninguém pra onde iria? - Ela perguntou.
Charlie não entendeu.
- ...Não. Eu dei chá de sumiço pois me deu na telha e por que eu tava livre e podia fazer o que eu quisesse sem dar satisfação para ninguém.
Ela riu, como se soubesse todos os segredos profundos da alma dele. Como se fosse claro que ele estava mentindo pra si mesmo.
- Ah, se fosse por isso você teria passado no Vazio para pegar o cacto. - Ela falou, sorrindo e entregando para ele a sacolinha com a planta - Não diga que sumiu desse jeito por motivos de ser um rebelde sem causa, por que eu conheço muito bem a sua linha de pensamento pra saber que quando se sente culpado por algo, a primeira coisa que faz é se isolar, rosnar para todo mundo que tenta te ajudar ou simplesmente sumir e virar um torcedor do Flamengo.
Charlie tirou Tiffany da sacola e a colocou em cima da prateleira de papel higiênico. Ele deu uma risada irônica, segurando o cigarro com os dentes.
- Tá dizendo que eu fiquei culpado por ter matado um filho da puta? Não sei se tu esqueceu quem eu sou, Cheryl, mas eu nunca fui um bom samaritano. - Voltou a se sentar.
- Nunca disse que era. E sim, eu acho que ficou se sentindo culpado por ter matado um filho da puta, mas a coisa é mais complexa do que você finge parecer. Sim, você matou um filho da puta por motivos egoístas e conveniência, mas esse filho da puta era pai de um cara que é próximo de outro cara que literalmente levou mais de quarenta tiros para que você não se machucasse. E esses dois caras também se machucaram muito e se ferraram horrores para tentar te salvar de um sequestro que eu tenho certeza de que você pensou que ninguém se importaria e ninguém iria dar a mínima para levantar um dedo do pé e ir te salvar, mas eles salvaram mesmo assim. - Cheryl deu um sorriso um pouco pretensioso, mostrando as presas e cruzando as pernas, guardando a caixa de leite em seu devido lugar. - E com essa situação em vista, de ter matado o filho da puta e ter descoberto tudo sobre a maldição de um desses caras, você inconscientemente resolveu que era melhor desaparecer do mapa para não destruir mais a vida do coitado contando que o próprio pai dele planejou matá-lo e que você mesmo cortou o mal pela raiz.
Charlie ouviu tudo atenciosamente. Se vampiros não liam mentes, Cheryl provavelmente era uma exceção.
- Vai comprar pão ou não? Já acabou tudo, só tem esses três no balcão. - O demônio disse, mudando de assunto e se levantando, ligeiramente bravo, mas com a cara de peixe morto de sempre.
Cheryl estava com um sorriso no rosto. Ela não iria negar de que havia se divertido dissecando a linha de ação de Charlie baseada em seu emocional complicado.
- Sabe que eu não como comida humana, não é?
- Dê para os pombos. É o que as velhas fazem.
A vampira encarou Charlie, com um olhar divertido que escondia muitas coisas. Sim, ela se estressava muito e odiava a forma que ele ficava defensivo sempre que tinha a verdade jogada na cara. Mas sei lá. Ela estava feliz com o desenvolvimento precário que ele teve para que chegasse no fim do livro como um flamenguista padeiro e esperava que ele encontrasse algum consolo para o vazio rastejante que sentia, em algum momento durante sua trajetória como flamenguista padeiro. Esse pensamento a fez dar um sorriso, mesmo que carregado de deboche.
- Então me dê isso logo e cale a boca. - Disse, tirando a carteira da bolsa. - Adotei dois pombos para viverem comigo por um tempo e acho que eles precisam de comida de vez em quando.
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