Até os gênios da lâmpada tem desejos
Diferente dos vampiros, que se mantinham vivos com a força do ódio, os demônios continuavam vivos pois nem a morte queria conta com eles.
Charlie finalmente acordou, e seu rosto não estava mais machucado por chicotadas e chutes. O sangue já estava seco em sua cara, e agora tinha uma nova cicatriz gigantesca, que ia de uma bochecha até a outra. Porém, ele não se importou muito com a questão estética da coisa, já que tinha preocupações maiores que um arranhãozinho mixuruca: Era mais um dia perdendo a novela. E pior ainda - hoje era dia de atualizar a fanfic e ele não ia poder publicar o capítulo novo. A vida de Charlie nunca tinha dado tão errado, e ele quase cometeu a heresia de clamar por Ele, na esperança de que um raio caísse em terra e o demônio fosse mandado novamente para seu exílio, pois lá ao menos tinha televisão.
E ainda por cima Charlie não podia nem fumar a porcaria de um cigarro.
Encostou as costas contra a parede e viu que tinha um pouco de neve entrando da janela minúscula e com grades acima de sua cabeça. Todo o ambiente estava frio, absurdamente frio, e Charlie ainda conseguia ouvir o barulho das ondas do lado de fora, agora ainda mais violentas. As correntes estavam frias como se fossem feitas de gelo e ele se arrepiou um pouco, dando um suspiro, logo começando a admirar o teto de pedra laranja o qual estava acima de sua cabeça, já que não podia fazer nada a respeito sobre o seu cárcere além de esperar alguma intervenção divina, o que era claramente algo fora de questão. Infelizmente, Charlie não controlava o clima e não tinha mais seus poderes em plenitude, portanto iria congelar ali até a eternidade.
Pensou em seu sonho com o baixinho antipático que era amigo de Frank. Ele disse que ele devia possuir a outra mulher, por algum motivo que Charlie não entendeu bem, mas parecia fazer sentido. Seria mais fácil de fugir. Mas Aretha não havia voltado, então ele teria que esperar um pouco, então começou a assobiar baixinho a abertura de dragon ball. Era a única coisa que ele sabia assobiar, ele estava entediado, então tinha o direito.
A porta de ferro foi empurrada, e um rastro de luz amarelada entrou na sala, se expandindo na escuridão azulada a qual Charlie estava. O movimento de abertura da porta fazia um barulho horroroso, mas ele não demonstrou nenhuma grande emoção para com o som, já que a única coisa que tinha em mente era que iria começar mais uma sessão de interrogatório seguido por chicotadas.
Alguém entrou na sala que parecia uma sex dungeon, e Charlie parou de assobiar. Era alguém que não segurava um chicote. Charlie encarou aqueles olhos vermelhos com um pouco de desprezo e cansaço, apesar de surpreso. Não queria outra cicatriz na cara, e mesmo que aquela pessoa não fosse Aretha, ela parecia ser bastante capaz de o rasgar inteiro com os próprios dentes. Não que ela aparentasse raiva ou alguma fúria insana para que o fizesse. Itzel quase nunca aparentava raiva, não da maneira crua e simples a qual se é vista o sentimento. Ela só aparentava algo que Charlie não entendia, e ele já havia convivido tempo o suficiente com humanos para entender um de seus costumes: ter medo do que não se entende. Mas mesmo essa compreensão não lhe fez calar a boca.
- Vai me liberar logo? Eu não tenho nada a ver com o Frank. - O demônio disparou-se a falar pois apesar de não ter muito ânimo para debater nada com ninguém naquele momento, levar chicotadas ainda doía pra caralho. - Foda-se o Frank. Ele é só meu vigia sobre uma maldição ou sei lá o quê, e eu não sei nada sobre as merdas que ele se mete com vocês ou porra nenhuma. Então me deixa ir embora logo que eu não sou saco de pancadas. - Ele concluiu, enquanto Itzel se encostava na parede, o escutando de maneira atenta, prestando atenção em cada sílaba das palavras, mesmo que encarando o chão com um olhar quase que sonolento. Isso fez Charlie estranhar um pouco ela, apesar de ela estar em uma posição boa suficiente contra Charlie, para que estivesse tão calma. Não era algo de outro mundo.
Ficaram em silêncio por alguns segundos, pois depois de ouvir o demônio, Itzel se perdeu encarando uma esfera negra que segurava em mãos.
- Não. Você ainda vai me ser útil. - Foi a única coisa que ela disse, logo se sentando no chão, alguns metros longe de Charlie. Não o olhava. Na verdade, não devia ter o olhado uma vez sequer desde que entrou ali.
Charlie piscou, a encarando com desgosto e confusão.
- Posso fumar?
- Pode.
- Então me solta. Não dá pra fumar acorrentado.
- Você vai fugir. - Ela disse enquanto brincava com a esfera, a girando no chão. O objeto fazia um barulho engraçado quando contra a pedra.
- Então pega o cigarro no meu bolso e acende.
- Não vou tocar em você. Você pode ser perigoso.
- Então eu posso fumar, mas não posso ao mesmo tempo? - Charlie rosnou, a encarando com um olhar meio morto.
- Você pode. Apenas não consegue. Não há sentido em proibir algo besta. - Ela disse como se fosse algo bem claro, e realmente era, de certa forma.
Charlie respirou fundo.
- EU NÃO TENHO NADA A VER COM O QUE DIABO FRANK FEZ, ENTÃO ME SOLTA PORRA. - Ele gritou, ainda tentando se soltar e falhando. Enquanto isso, Itzel encarava as próprias unhas, como se elas fossem muito interessantes.
- Eu acho... Que fiz algo errado. - Ela falou, depois de alguns minutos de gritaria da parte do outro. Falou aquilo como se pensasse alto, um pensamento que era tão insistente e que não tinha nenhuma intenção de sumir, de uma maneira que se fazia necessário o falar. Charlie parou de gritar, franzindo o cenho. Aquela criatura parecia estar em um mundo a parte, e era muito estranho, portanto ele decidiu ficar quieto. A neve prosseguia entrando na sala, formando um montinho no chão. Continuava frio.
- Você já fez algo errado? Eu não sei se isso que eu fiz é. Me pareceu certo. Na hora, pareceu certo. - Por um momento, ela pareceu uma criança falando, enquanto brincava com a bola no chão. Charlie se sentiu minimamente melancólico, mas continuou calado, encarando a figura meio horrorizado. Talvez Charlie ainda sentisse algo parecido com medo. - Pareceu certo. Mas as coisas às vezes parecem algo que não são, não é? Tipo as lagartas. Elas viram borboletas. Ninguém imagina isso de uma lagarta. - Mais alguns segundos em silêncio. Ela deu um suspiro. Charlie viu uma sombra passar pelo seu rosto, como se ela estivesse com um tipo de ódio incontrolável. A sombra foi embora tão rapidamente quanto quando chegou, e Itzel voltou a falar, como se fizesse uma promessa ao universo. - Eu espero que ele volte. Então eu conserto as coisas de antes, as de agora, e depois me conserto. Vai ficar tudo bem.
De início, Charlie pensou que ela estava falando com ele, já que era a única pessoa na sala. No final, ele já não tinha tanta certeza.
***
Frank estava onde rezou que nunca mais voltaria, independente das circunstâncias, pois ele tinha a noção de que não era seguro para ninguém a sua presença. Ele tinha a noção de que sim, talvez ele fosse uma arma extremamente destrutiva, quase como uma bomba nuclear ou pior, e por isso ele não devia estar ali ou em lugar nenhum, principalmente em um lugar em que sua mestre estivesse. Mas apesar dessa noção, lá estava ele.
Felizmente, ao contrário das bombas nucleares, ele tinha pernas, e pernas serviam para fugir, e foi isso que ele pensou em fazer. Se levantou meio desesperado, preparado para correr e se esconder em qualquer lugar que encontrasse, mas antes que pudesse fazer qualquer coisa, alguém segurou o seu pulso.
- É só uma memória em forma de sonho. Sim, cá estamos nós na sua cabeça de novo. - Ulukie disse, o encarando. Frank pareceu ficar menos tenso e voltou a se sentar, apesar de ainda meio desconfiado, e Ulukie fez o mesmo, ainda segurando seu pulso.
- Desculpa. - O chefe continuou a falar - Parece que toda vez que eu entro no sonho de alguém é um sonho meio deprimente sobre memórias deprimentes.
- Tudo bem.
Eles ficaram quietos por um tempo, observando o lugar. Era uma sala de pedra meio esquisita, que lembrava alguma prisão. Estava escuro e a única luz que sobrevivia fracamente naquele breu era a da lua, que entrava por uma janelinha com barras de ferro, que ficava no alto da parede em que eles estavam encostados. A brisa do mar deixava o clima esquisito e meio fresco. Frank tinha medo, então focava a atenção na mão de Ulukie que apertava seu pulso, pois aquilo o fazia perceber que aquilo tudo não estava acontecendo novamente.
Ulukie não sabia muito o que dizer depois de ter chorado desesperadamente no ombro de Frank, então demorou um pouco para falar algo.
- Quero que me conte o porquê de estarem atrás de você.
Frank o encarou um pouco, meio surpreso pelo pedido. Ulukie parecia menos triste do que quando estavam acordados, então ele pensou em se permitir falar alguma coisa sobre si mesmo, já que o chefe fazia soar importante.
- Por que essa pergunta agora?
- Porque antes não dava pra perguntar. Eu estava chorando que nem um desgraçado e você estava com dor. Aqui a gente não tem desculpa pra não falar das coisas que precisam ser faladas.
- Oh. Faz um pouco de sentido. - Ele disse, meio nervoso. Apesar de ser um sonho, ele ainda tinha medo de que alguém aparecesse e tudo fugisse de seu controle, como foi no casamento, então continuava olhando para a porta que estava do lado oposto.
Ulukie foi até a frente de Frank e ficou sentadinho ali, cobrindo um pouco a visão da porta, logo abraçando as próprias pernas e apoiando o queixo nos joelhos, o fazendo parecer uma bolinha de pelos com aquele casaco de estimação que não tirava nem em sonho. Ele o encarou firmemente, tentando parecer sério, apesar de aparentar um menino de dez anos fazendo cosplay do Trevor Belmont.
Frank percebeu que os olhos de Ulukie não pareciam tão exaustos quando ele estava em sonho. Isso o deixou um pouco feliz, pois não gostava de o ver tão cansado o tempo todo.
- Me conta. - Ulukie falou, em um tom meio baixo.
Frank olhou ao redor novamente. Respirou fundo.
- A minha mestre me quer de volta para que eu abra um portal.
Ulukie franziu o cenho.
- Mas ela já abriu um portal, não? Foi assim que chegaram no casamento da mulher lá.
- Sim, ela abriu. Mas ela quer abrir um portal diferente, e ela não consegue abrir ele sem minha ajuda.
Ulukie respirou fundo.
- Diferente como?
- Um portal pra uma dimensão semelhante a da qual eu vim. Semelhante a dimensão dela.
Ulukie franziu mais o cenho, arregalando um pouco os olhos.
- Ela quer abrir um portal pra uma realidade paralela?
- É.
- Isso ia fuder com tudo. Se o portalzinho mixuruca que ela abriu pra a dimensão do demônio lá já foi um problema horroroso, um portal pra uma realidade paralela ia ser como atirar no próprio pé. Atirar no próprio pé com uma bala de canhão. A realidade ia implodir ou alguma merda pior. Tu sabe quanta reclamação eu tive que aturar com essa primeira merda dela? Um bocado. E ainda por cima tem a merda do narrador do demônio que até agora eu não sei por onde começar a procurar.
- É, eu sabia que ia ser ruim. Por isso eu disse pra ela que não iria fazer isso. - Frank continuava meio nervoso, tentando ver a porta. Ulukie apertou um pouquinho o pulso dele, para que esquecesse aquilo, pois afinal, era só um sonho. Era um sonho, e por pior que ele fosse, Frank podia controlá-lo.
Se ouviu um barulho horrível. Alguém estava abrindo a porta.
Frank se encolheu. Era óbvio que ele estava desesperado, pois estava praticamente abrindo um buraco na parede com as próprias mãos, mesmo que nem tivesse visto a pessoa que tinha entrado ali. Ulukie deu um suspiro, e agarrou os ombros do estagiário com força, o fazendo olhar para si.
- Esse é um sonho seu. Se alguma coisa ruim aconteceu, não vai acontecer de novo, porquê você tem controle sobre isso agora.
Frank encarou Ulukie. Ulukie encarou Frank de volta. Era a primeira vez que Ulukie parecia ter certeza de algo, e essa certeza fez o outro ficar calmo.
A porta se fechou. Se alguém iria entrar ali, desistiu.
Frank respirou fundo, e Ulukie continuou segurando seus ombros com uma determinação que ele não demonstrava nunca, ao menos não normalmente. Ele estava bem próximo, próximo de uma forma que Frank não poderia prestar atenção em nenhuma porta ou qualquer outra coisa nem mesmo se quisesse. A única coisa que Frank via era Ulukie, e isso o acalmou.
- Por que ela quer abrir esse portal e qual o motivo pra você a chamar de mestre?
Frank demorou um pouco para falar.
- Pessoas importantes para ela morreram. Ela quer as pegar de volta com esse portal. - Não iria explicar o porquê dela ser sua mestre, mas Ulukie o encarava insatisfeito com a resposta, de uma forma que o fez desembuchar logo. - Ela me invocou. Sou um servo.
Ulukie franziu um pouco o cenho, e não parecia que ia sair de cima de Frank tão cedo, ainda segurando seus ombros.
- Te invocou? Por quê?
- Eu sou um espírito servente e realizo desejos. E ela tinha muitos desejos.
- Você é tipo o gênio da lâmpada só que ilimitado? - Ulukie perguntou. Ele sabia que Frank era poderoso, apenas pela ficha dele quando foi contratado como estagiário já tinha ficado óbvio de seu poder. Mas Ulukie nunca tinha ido a fundo para saber exatamente o que ele fazia, portanto agora tudo lhe fazia mais sentido, e ele entendia o motivo de Frank ser taxado como uma ameaça ao multiverso.
Frank não sabia o que era um gênio da lâmpada, mas concordou com a cabeça.
- Então... É por isso que você não morre? Porque você é uma criatura mística poderosa?
Frank se encolheu um pouquinho novamente, mas focou a atenção em Ulukie. Ele podia falar agora, e aquela sala era um sonho.
- Não. Eu era mortal, mas ela desejou a imortalidade, portanto eu também a tenho.
Ulukie se odiou por um segundo por sentir inveja. Ele sentia inveja da mestre de Frank, que podia pedir por imortalidade, e sentia inveja do Frank em si, que podia ser imortal. Mas ele sabia que a imortalidade não era boa, e que ele estava sendo idiota.
Se odiou um pouco mais por perceber que mesmo sabendo disso tudo, ainda queria poder ser imortal.
- ...Entendi. Você fugiu quando soube que ela queria algo que você não queria fazer. Por isso você fugiu quando eu apareci aqui. O povo acima de mim já sabiam desse problema e por isso me mandaram. É, faz sentido.
O que Ulukie disse não era mentira, mas Frank não havia fugido apenas por isso. Ele queria que fosse, então fez que sim com a cabeça, esperando que as perguntas tivessem acabado, pois não queria mais falar sobre aquilo. Afinal, até os gênios da lâmpada tem desejos.
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