A maior confissão do século
- Você quer que eu faça O QUÊ?- Perguntou Cheryl, depois que Ulukie lhe pediu para que desse um jeito de Klaus comparecer no Interrogatório.
Ele respirou fundo, se apoiando na parede, contendo um bocejo. Ulukie precisava de café. E de paciência. E de que um raio o partisse ao meio, também. Lidar com pessoas era desgastante, e tudo a partir daquele momento dependeria disso.
- Eu não vou me arriscar desse jeito. - Continuou Cheryl, com sua voz persuasiva impregnada de cansaço e embargada por conta do vinho - Klaus é maluco. Conversar com ele é ter que pisar em ovos constantemente, e eu não posso simplesmente olhar pra a cara dele e falar: "Querido, por favor apareça lá no bar do Charlie, que é no fim do mundo do vazio aonde só quem é desocupado resolve ir, porquê um cara aleatório está querendo lhe interrogar para ter certeza de que você não é um criminoso interdimensional." - Ela concluiu, com deboche. Cheryl estava chateada demais com a vida para se comover com as necessidades alheias. Ela já tinha se comovido demais; Fazer curativos e cirurgias clandestinas era o ápice de sua bom vontade. Agora o que ela precisava mesmo era de uma hidromassagem e dinheiro na conta, não de atos caridosos.
Ulukie respirou fundo. Era exatamente isso que ele queria que ela falasse. Ele iria interrogar toda pessoa que provavelmente possa ter tido mais de uma fala durante a narrativa, e iria tentar descobrir quem diabo era o narrador assim. Sim, Ulukie tinha plena noção de que era um plano terrível, como todos os outros que ele já teve, mas era o que ele tinha. E ele já havia conseguido reunir mais uma pessoa ali, além dos que já estavam: Eloá, uma fantasma que segundo o relatório de Frank havia aparecido durante as primeiras horas de sua convivência com Charlie. Dos outros personagens que se demonstraram importantes até aquele momento, só faltava Klaus. Mas todo mundo tinha medo de Klaus e ninguém o queria ali.
- Liga pra ele. Qualquer coisa. É importante. - Normalmente Ulukie gritaria e buscaria argumentos melhores, mas ele estava esgotado demais para fazer qualquer coisa além de se humilhar.
Cheryl respirou fundo. Maldita compaixão que lhe restava dos seus tempos de humana e à arrebatava em seus momentos mais importunos.
- Certo, que seja. Mas não espere que ele seja simpático, ou qualquer coisa perto de uma pessoa agradável, se por algum acaso do destino ele resolver aparecer. Ele só é tolerável quando quer, e muda de humor como troca de roupa. - A vampira pegou o celular e se virou de costas, andando até o final do corredor, ficando perto das escadas. Ela gostava de Klaus, mas como todo demônio, ele tinha uma personalidade complicada. Cheryl e Ulukie estavam no corredor atrás da porta do bar, ele encolhido em seu casaco, do lado da porta do banheiro. - Eu vou ligar, mas não tenha grandes expectativas.
Cheryl ligou para o número, logo colocando o celular na orelha. Ulukie resolveu sair dali para que ela fizesse a negociação mais difícil do século sem preocupações. Se eles estivessem tentando contactar a Beyoncé para fazer um show particular de graça e ainda por cima com ela vestida de papai noel, seria mais simples.
***
No bar, as coisas nunca estiveram tão animadas.
Nos trinta anos em que Charlie morou naquele maldito lugar, aquela porcaria de bar nunca esteve tão lotada e realmente parecendo um bar de verdade como naquele dia.
Mesmo que tivessem apenas três pessoas ali e uma estivesse morta, ainda assim era muita gente e um grande avanço.
Demian estava em uma das duas mesas que tinha ali, bebendo a última garrafa de cerveja que acharam nos confins das prateleiras empoeiradas daquele lugar amaldiçoado. Loydie estava sentado em sua frente, ainda enrolado em um cobertor. Os dois estavam jogando cartas. A menina fantasma estava olhando o jogo, enquanto o enrolado no lençol rosnava, mordia a caixa do baralho e xingava por não entender o objetivo de toda aquela coisa com as cartas. O negócio era que nenhum dos três eram bons em truco.
Charlie estava encolhido embaixo do balcão, jogando Tetris, com um cigarro pendurado na boca. Ele estava puto. Tinha muita gente na casa dele e tinham acabado com todo o estoque de bebida. Não que ele bebesse, mas era incomodo mesmo assim.
Frank estava encolhido ao seu lado, já que precisava tomar conta do demônio. Quem sabe quando Charlie seria sequestrado novamente? E ainda tinha aquela capivara passeando por ali, e Frank a considerava meio assustadora. Ela podia explodir ou algo do tipo.
Frank não tinha um grande conhecimento sobre a natureza das capivaras.
Logo, Ulukie abriu a porta e encarou a capivara também. E depois o estagiário.
- Frank, vem cá.
Frank foi, e Ulukie pediu pra que se abaixasse, e assim ele o fez. Ulukie sussurrou no ouvido de Frank, e naquele momento ele parecia uma criança falando mal da outra em segredo, só que falhando, pois crianças não conseguem falar baixo, assim como Ulukie.
- Eu não faço ideia do que fazer daqui pra frente. Eu preciso de uma lanterna pra colocar na cara deles, como nos filmes? Eu preciso gritar? ...Tortura pra fazer falar? COMO FUNCIONA UM INTERROGATÓRIO, FRANK? - Ele berrou, só que baixinho, em sussurro. Era muito ruim ser um detetive quando não se tem o mínimo de preparo pra isso.
Frank riu. O desespero do chefe era meio fofo.
- Vai ficar tudo bem. Eu lhe ajudo se precisar. Cheryl conseguiu chamar o tal do Klaus? - Ele perguntou, ainda agachado e ficando na altura do outro. Charlie olhava a situação com o canto do olho, mas ainda focado no jogo. Sempre era uma merda quando a pilha de blocos já estava muito alta e mal se tinha tempo para ajeitar a peça para que se encaixasse perfeitamente. Tetris era quase uma arte, e Charlie era tudo menos um artista.
Ulukie se recompôs o suficiente, ajeitando a postura.
- Não sei, ela tava no telefone com e-
Cheryl o interrompeu ao abrir a porta atrás deles como se fosse anunciar a terceira guerra mundial, e logo se encostar na parede, dizendo:
- Klaus não vai vir, e falou que se o acusasse de um crime ridículo como esse novamente, ele iria rasgar a sua alma em pedaços e alguma outra coisa que qualquer adolescente emo diria, mas eu esqueci. Ele também falou de como ficou triste por não poder ir para o meu casamento. E outras coisas. É isto. - Concluiu, cruzando os braços. Cheryl não via a hora de ir embora dali.
Ulukie bufou. Depois ele resolveria aquilo, se chegasse a ser necessário, pois ele podia encontrar quem procurava antes que precisasse fazé-lo.
A capivara sumiu e apareceu em cima do balcão de novo. É, a merda do interrogatório iria começar.
Não é como se Ulukie tivesse grandes expectativas sobre aquilo, por razões óbvias: O narrador estaria escrevendo o interrogatório e tinha cada partezinha dele premeditada. Era ridículo pensar que ele mesmo iria se entregar, sabendo que tinha toda uma organização multi-dimensional para cortar seu pescoço quando fosse descoberto. Ele teria que ser muito burro para fazer isso, não é? Uma tremenda anta mesmo, para dar a própria cabeça de bandeja assim.
Mas esse narrador não era burro.
A partir do momento em que Ulukie teve a ideia do Interrogatório ele soube que era uma puta cilada, pois obviamente aquele pensamento foi implantado pelo escritor daquela putaria toda. E se ele queria que Ulukie pensasse aquilo e fizesse o tal do Interrogatório com todos, ele tinha alguma carta na manga. E era bem provável que mesmo se resolvesse se revelar, ele não seria pego. O chefe de Frank sabia disso por um motivo bem simples: O controle sobre a narrativa daquele vagabundo não era o mesmo controle de narrativa que o filho da mãe do Rick tinha na história do menino Jackson. Não mesmo. Ele estava se integrando na história, como parte de um plot principal; Ele não era apenas o porta-voz, e sim um narrador personagem. E esse detalhe mudava tudo na dinâmica para pegá-lo.
A coisa dos narradores personagem é que eles costumam protagonizar as coisas. Eles narram o que veem, o seu ponto de vista, como em um diário. E eles podem distorcer as coisas. E como um narcisista megalomaníaco como aquele narrador iria se entregar apenas por se entregar? Sendo que ele tinha o poder de distorcer as coisas, parecia fácil demais. Ele devia ter algum plano. Ele devia ter poder, e queria deixá-lo a vista, mostrar do que era capaz. Um narrador tão singular não iria se conter em escrever uma história de distopia ou semideuses qualquer. Ele era maluco e estava se divertindo com aquilo.
E foi com todos esses pensamentos em mente que Ulukie colocou Demian dentro do banheiro para fazer o seu primeiro interrogatório. Ulukie o sentou no vaso sanitário com a tampa fechada, e começou a fazer perguntas para tentar ver algum motivo qualquer que pudesse fazer Demian ser suspeito. O demônio sempre acabava mudando a direção das respostas para revolução, anarquia ou comunismo. Sim, Demian tinha uma ideologia meio confusa, e não era lá a pessoa mais equilibrada. Ele gostava de gritar sobre derrubar governos e citar teoria política como um maluco, falar de bombas no planalto central de Brasília, e do próprio trabalho no Departamento de Conspirações do Inferno.
Ele parecia megalomaníaco o suficiente para poder ser um suspeito.
Depois foi Loydie.
Loydie rosnou e gritou.
Não era tão suspeito, só irritante.
E então, Cheryl.
Cheryl conseguia ser tão suspeita quanto Demian. Não por ser escandalosa, mas por ser inteligente. Ela sabia das coisas. Ela tinha um bom passado com Charlie, e gostava de ter tudo sob seu próprio controle. Ela podia estar atuando muito bem. Mas o problema era que Cheryl podia ter matado a Rainha da Inglaterra com a porra de uma colher e continuaria com aquela cara de que não sabia de nada, e isso era meio intimidante. Não dava pra saber se ela estava de fato escondendo algo, já que mantinha aquele olhar dissimulado e indecifrável o tempo todo.
Depois foi Eloá, a fantasma. Ela não estava entendendo porra nenhuma. Ela disse exatamente isso: "Eu não estou entendendo porra nenhuma", só que de forma descolada e jovem. Ulukie fez as perguntas e ela respondeu, meio brava. Depois da série de perguntas ela continuou sem entender nada, e apenas queria voltar a jogar truco com os outros.
Ela não parecia suspeita. Ela era só uma fantasma aleatória colocada na história com descaso e que nem teve alguma grande apresentação nem evolução em nada. Completamente inútil para tudo aquilo, obviamente. Ninguém tinha nenhuma dúvida de que ela não era suspeita, como se fosse uma verdade universal.
Mas do nada, a capivara apareceu ali, entre Eloá sentada sob a tampa do vaso e Ulukie.
Ulukie tomou um susto, Eloá não.
A capivara se teleportou novamente, agora aparecendo sob o colo de Eloá, que lhe fez carinho.
PERA AÍ. Isso não faz sentido. Eloá é uma fantasma, e fantasmas não podem tocar coisas, certo? Ulukie franziu o cenho, tentando lembrar dos arquivos que leu sobre as criaturas sobrenaturais daquela dimensão. É, aquilo não fazia o menor sentido.
Eloá riu.
Deus do céu, Eloá gargalhou.
- É muito engraçado quando se tem as conveniências narrativas na palma de sua mão, não é? Você pode quebrar as próprias regras do universo que está escrevendo sobre. - Ela disse.
Ulukie abriu a boca em um perfeito "o", tão surpreso por não estar entendendo mais nada que não conseguiu emitir nenhum som. Semicerrou os olhos. Não, não podia ser. Era um plot twist muito bosta pra ser.
Eloá se levantou, segurando a capivara no colo, e logo passou pela porta do banheiro como o fantasma que devia ser, junto com a capivara, o que não fazia sentido nenhum também. A capivara era tangível, não era?
Ulukie se sentiu a beira de um colapso mental.
Ficou algum tempo encarando a porta de plástico, tentando digerir aquilo, e quando finalmente resolveu tomar alguma providência, Cheryl gritou para ele do lado de fora:
- OW MENINO, O KLAUS MANDOU O SECRETÁRIO DELE PARA SUBSTITUIR ELE NO INTERROGATÓRIO!
Ulukie imediatamente abriu a porta, ignorando completamente o que a vampira disse sobre o tal do secretário. Ele estava procurando a fantasma com a capivara. Era só isso que ele tinha que achar. Ulukie pensou em gritar para Frank, que estava sentado do outro lado do bar, que ele tinha achado o narrador e que tinham que prendê-lo o mais rápido possível. Ele até abriu a boca para isso, mas quando chegou no salão do bar, deu de cara com uma criatura que ele não conhecia. Uma criatura segurando a maldita da capivara. A capivara que a desgraçada da fantasma estava segurando segundos atrás.
O mundo nunca tinha sido tão confuso.
Lucius era um demônio que Charlie havia visto umas horas atrás quando teve seu chá com Klaus. Foi ele que entregou a ficha de Charlie para o outro, pois era ele que cuidava desse tipo de papelada. O que usava camisa da Hatsune Miku parou de jogar Tetris por um segundo, se virando para a entrada do estabelecimento, aonde o tal secretário estava. Ele segurava a capivara como se fosse um chihuahua de madame, e usava um sobretudo vermelho sangue que o fazia parecer neon de tão chamativo. Tinha chifres esquisitos e em um tom caramelo, usava óculos escuros e brincos nas orelhas. Parecia um modelo super alternativo do São Paulo fashion week, julgando o mundo inteiro com aquele seu moicano esquisito nas cores branca e laranja.
Ulukie sentiu que já havia tido um colapso mental e agora estava vendo coisas. Se ele estivesse maluco, tudo bem, pois as ações dele a partir de agora seriam justificadas pela insanidade.
Ele seguiu até o outro lado do bar feito um raio, agarrou o braço de Lucius e o puxou da forma mais violenta que conseguiu. Todo mundo ficou olhando. Ulukie percebeu que Eloá não estava ali, também.
Mas aquele cara tinha a desgraça da capivara em mãos, então isso devia significar alguma coisa.
Lucius foi empurrado para dentro do banheiro como quem empurra um amontoado de roupas para dentro de um guarda-roupa bagunçado. Ulukie nem esperou que ele entrasse para que berrasse a plenos pulmões:
- PENSA MESMO QUE VAI FUGIR DE MIM COM ESSES TRUQUES DE CIRCO, SUA PUTIRANHA?
O demônio da capivara finalmente entrou no banheiro, a contragosto. Ulukie fechou a porta de novo, e ficou o segurando pelos punhos, mesmo que ele estivesse com um animal no colo. Era quase óbvio que Ulukie perderia em uma sessão de porradaria com aquele cara, mas mesmo assim ele o estava segurando como se fosse o Jackie Chan.
Lucius ergue as duas sobrancelhas, olhando o outro de cima, como se esperasse que ele desse sua deixa em uma peça teatral.
- ... - Ulukie estava respirando fundo, tentando organizar seus próprios pensamentos. Ele finalmente lembrou que tinha uma arma, e resolveu apontá-la para a testa do demônio - Quem diabo é você? Você é a fantasma esquisita com quem eu estava falando, né? COMO? DESDE QUANDO FANTASMAS SE METAMORFIZAM?
Lucius respirou fundo e colocou a mão no cano da arma, como se Ulukie estivesse apontando para ele uma arminha de atirar água e não uma pistola carregada. Ele empurrou a mão de Ulukie para baixo, ainda segurando a capivara com a outra, e calmamente se encostou na parede, ao lado do box. Banheiros não eram lá os melhores lugares para discursos épicos, mas era o que se tinha para hoje.
Ok. Agora que eu cheguei aqui, é meio difícil continuar com a terceira pessoa. Se narrar na terceira pessoa é estranho e meio incomodo, como se eu estivesse dissociando de minha própria indentidade. Eu olho para Ulukie, que continua com a expressão de confusão no rosto, e quase me compadeço com sua agonia. Respiro fundo. Talvez eu não devesse ter conduzido a história para esse ponto tão cedo.
- Oi. Eu meio que estive sendo alguns personagens terciários durante esse tempo todo. Talvez você saiba o porquê disso. Ou não. Sei lá. Agora que eu vejo é uma situação estranha demais para se ter uma opinião formada sobre.
Digo, e Ulukie parece mais perdido ainda. Ele passa a mão por seus cabelos curtos e castanhos, e eu percebo que eu deveria ter descrito melhor um cabelo bonito desses. Sinceramente eu estou nervoso. É a minha primeira vez na narrativa em primeira pessoa.
- É você então? - Ele pergunta, com a voz meio esganiçada. Ulukie estava achando aquilo estranho e fácil demais para ser verdade, mas não iria reclamar. Ele sabia que não tinha tanto controle sobre a situação quanto achava que teria, então acabou se encostando na parede também, de frente para mim.
- É. Sou eu. Eu estava no casamento também, como Jeniffer, mas você não estava lá, né? De toda forma é legal estar em uma história. Ainda mais insano é ter a liberdade de mexer nela ao bel prazer, podendo tomar decisões como essa. - Acaricio a capivara Roberta que está no meu colo, me sentindo meio melancólico. Ao menos na ficção se pode ter capivaras adestradas e com o nome de uma das personagens de Rebeldes.
- Você sabe que vou te prender, né? - Ulukie perguntou, em um tom receoso e perplexo. Ele se encolhia como se fosse um caracol e agora estivesse voltando para sua concha. Ele estava com medo, mesmo que armado, e eu sabia que era compreensível devido ao seu raso conhecimento sobre a minha origem. Temer o desconhecido sempre foi algo em comum entre todos os seres de todas as dimensões.
- Eu sei que você quer me prender, mas nós dois sabemos que você não vai. Tem muita coisa pela frente ainda, e você ainda não faz ideia de quem eu seja ou de o quê eu seja. Sabe que eu representei alguns personagens ao decorrer da narrativa, mas isso é estranho demais e você não sabe como prosseguir, pois nunca lhe foi ensinado isso quando estava se preparando para lidar com casos desse tipo. E também tem a coisa com seu pai, que acaba meio que destruindo sua autoconfiança, não é?
Ser o narrador faz com que eu tenha um bom conhecimento da vida pessoal de quem eu narro, e isso meio que assustou Ulukie mais ainda, o fazendo apontar a arma para mim de novo, trêmulo. Eu deveria ter me preparado melhor pra isso. Os outros não costumam se arriscar como eu, e eu sei muito bem de como eu estou sendo pretensioso de que isso possa ser a chave para a minha liberdade.
Suspiro, o encarando meio derrotado. Eu tenho princípios que me acorrentam e me fazem querer uma conversa pacífica. Eu me afeiçoei a todos eles depois de tanto tempo nessa história, e não sei como poderia tratá-los verdadeiramente mal.
- Me pergunte o que quiser. Eu não vou fazer nada, a não ser que venha a tentar machucar esse corpo. - Aponto para mim mesmo, tentando soar claro. Raramente tenho um corpo físico, então tendo a valorizar minhas oportunidades. Eu estou tendo compaixão em me apresentar, e espero que Ulukie leve isso em consideração em sua linha de pensamento subsequente, já que eu nem estou mexendo em suas ações mais. Tento manter o livre arbítrio alheio o máximo que posso, e apenas narro o fluxo dos acontecimentos, pois eu tenho decência e não sou o criminoso que me fazem passar por. Sim, eu estou mexendo com a vida das pessoas e isso desencadeia acontecimentos épicos, mas eu tenho meus próprios motivos e não mereço ser julgado como se eu fosse um delinquente qualquer.
Engulo em seco. Eu preciso parar de pensar demais sobre os julgamentos negativos que os outros terão sobre minha ações.
Ulukie me encara, pensativo e puto, ainda com a arma apontada para mim. Resisto ao impulso de tirá-la de sua mão.
- Eu quero que me explique com todas as palavras quem é você. Todos os detalhes. Se chegou até aqui em uma história que gira em torno de si mesmo, suponho que iria adorar fazer um monólogo contando sua trajetória de vida e coisa e tal, de maneira tão brega quanto esse seu sobretudo aí. - Ele diz, ainda com o dedo no gatilho. HAH, ver Ulukie falando de casacos bregas é imensamente hilário e satisfatório, e ver que ele não me prendeu com algemas é ainda mais. Ele tem o próprio protocolo a seguir.
Dou um sorriso pequeno a perceber que ele está tendo paciência comigo, pois ele ter paciência é algo raro. Acaricio Roberta, que continua quietinha observando toda a situação. Vai ficar tudo bem Roberta, não se preocupe.
- Como você bem sabe, existem números proibidos no teclado do seu elevador, não é? - Começo, mais animado do que me orgulho, e ele concorda com a cabeça - Vocês, mercenários, inspetores e estagiários, não tem permissão para usá-los, pois eles lhes levam para dimensões "proibidas", em que não se pode visitar por três principais motivos: 1, a civilização nessas dimensões é perigosa demais para se poder ter noção do conceito sobre a viagem interdimensional sem que cause problemas futuros; 2, é uma dimensão com muitas realidades paralelas e qualquer erro faria com que todas elas se chocassem, então é melhor não se arriscar em mexer nelas; ou 3, e a minha favorita pessoal: As criaturas ou entidades em tal dimensão tem sim, o maldito do conhecimento sobre a viagem interdimensional, mas tem poder tão tamanho e destrutivo que são presas em sua realidade desprezível para que não possam se proliferar pelo universo. - Coloco Roberta no chão, fazendo movimentos bruscos demais para o gosto do baixinho que ainda tinha uma arma engatilhada apontada para a minha direção - Bem, leve isso como um prólogo. AGORA que começa a parte divertida da coisa. Observe, a dimensão de onde eu venho está classificada como a opção 3. Eu sei, um puta problemão não é? AGORA VOCÊ SE PERGUNTA, OH CÉUS, se ele veio de uma dimensão proibida de entidades super poderosas que eram mantidas enclausuradas por conta do bem maior, como diabos esse animal está aqui agora, na porcaria desse banheiro e tornando a minha vida já miserável um inferno? Pois eu digo, meu amigo, que eu tenho um ótimo dom que me foi concebido pelo universo para que eu pudesse chegar aqui, nesse exato momento.
Eu rio. Estou muito tempo sem falar com alguém sendo eu mesmo, então estou tão feliz que não consigo não expressar isso em meu corpo. Ulukie parece ficar cada vez mais tenso com a minha ladainha, o que eu não entendo, já que estou sendo simpático.
- Minha dimensão, a 19298B - Noto que Ulukie arregala os olhos ao ouvir o nome de onde eu vim. Ele reconhece e tudo faz um pouco mais de sentido para ele agora, o que me faz achar isso tudo mais divertido ainda - HAH, VOCÊ SABE DO QUE EU TÔ FALANDO, NÃO É? Pois bem, todas as entidades que contam a história do universo em si estão presas lá. E eu não digo esses narradores mixurucas que escrevem romances juvenis os quais vocês prendem. Não. Eu digo quem inventou e escreveu as piores guerras, catástrofes e tragédias irrecuperáveis não-ficcionais que já foram vistas em todo esse universo. Nós temos o poder de narrar os fatos reais, e mudá-los, além de acrescentar coisas. Eu posso ter mudado o seu passado para minha história ser mais interessante, quem sabe? Mas nós fomos presos lá já que como temos como único objetivo de vida a narração, eram muitas tragédias para o seu pessoal lidar. Mesmo assim continuamos escrevendo histórias Ulukie, só que elas nunca seriam vistas. Até que um dia eu tive a ideia que ninguém teve: Eu escrevi que eu havia conseguido sair daquela dimensão e agora era livre. E como tudo que é narrado por nós acontece, cá estou eu, e eu nunca fui tão feliz. Os outros escrevem histórias sobre as tragédias alheias, mas eu, eu escrevo sobre a minha própria ascensão, e por isso eu consegui ser livre. Mas como sou modesto, eu não escreveria algo que daria problemas para muita gente, não é? Eu irei fazer minha narração Ulukie, e quando eu terminá-la, deixarei que me peguem. Eu gosto de minha liberdade, mas tenho noção de que eu sou um perigo e de que gente imortal e onipotente não tem consciência do mal que causam. É isto. Fiz esse esforço de me revelar pois não quero que se preocupe muito comigo quando tem apenas 21 dias de vida. Está vendo como eu sou empático? Eu não mereço ir parar em um tribunal, mereço? Eu sou apenas um garotinho querendo brincar com os meus poderes e ser notado como tenho direito.
Roberta está passeando livremente pelo banheiro enquanto Ulukie me encara por tempo o suficiente para eu ponderar que ele talvez possa ver através da minha alma. Ele se aproxima, ainda segurando a arma com uma mão e me vira de costas para a parede com uma força que eu não sei de onde ele tirou, e me algema. Ele está seguindo o protocolo, mesmo que saiba ser inútil em nossa situação. Respiro fundo.
- Bem, é isso. Eu não tenho nome, mas eu gosto de Lucius. Pode me chamar de Lucius quando se referir a mim? - Eu pergunto, e acho que vejo ele concordar com a cabeça.
Mas como eu disse, eu vou terminar a minha narração antes de me deixar ser pego, portando volto para o meu corpo de fantasma e me solto das algemas. Depois, Roberta aparece nos meus braços, e eu sumo como ela costuma fazer, mas dessa vez eu desapareço de vez da vista de Ulukie, como se nunca tivesse estado ali.
Ele vai ter que se contentar por ter conseguido A maior confissão do século e nada mais do que isso.
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