41 A Verdade
- Você é linda - a voz rouca sussurra suave no meu ouvido.
Viro para trás me deparando com o sorriso lindo de Danilo, seu olhar negro me envolve e ele me puxa pela cintura fazendo todo meu corpo queimar com seu abraço.
- Marcela - seus lábios se movem no meu pescoço chamando meu nome, contudo sua voz antes tão calma e sedutora vai se tornando um trovão exigente de grito.
-Marcela! - Jéssica rudemente puxa o cobertor me despertando.
- Cadê? - sonolenta procuro pelo o garoto que a instantes estava comigo despertando em meu corpo novas sensações.
- Levanta, a gente tem que ir na missa. - minha irmã fala impaciente.
Sua ordem me faz correr para o banheiro para tomar banho, não precisa explicar muito, o domingo é o dia sagrado para o meu pai e faltar na igreja é capaz de transformá-lo no próprio demônio.
Com rapidez me visto, e no espelho agradeço pela praticidade das tranças, não preciso de muito para em instantes meu cabelo estar lindo.
Abotoando minha sandália permito que meus pensamentos corram livres e logo o rosto bonito de Danilo toma conta da minha mente, depois da competição de skate, em que ficou em segundo lugar, chegou a falar comigo, porém foi tão breve, estava todo mundo em cima dele para tirar fotos e falar sobre a premiação.
Admito que fiquei triste de não ficarmos mais tempo juntos ontem, e só de pensar que quero que me beije de novo meu coração pula no peito cheio de expectativa.
Será que vai a missa hoje?
- Bom dia - o sorriso estampa o rosto cansado da minha mãe ao me ver chegar na cozinha.
Me sento para comer o desejum aspirando o delicioso cheiro de pão recém assado, me perguntando se minha mãe acordou mais cedo para cozinhar para nós ou passou a noite no fogão sem dormir.
Mastigando a massa macia, reparo no seu vestido longo de botões deixando Luísa séria e estranhamente mais envelhecida, ao servir o café na xícara do meu pai, vestido também de modo formal, até com gravata, os dois trocam um olhar perturbadoramente doce.
O ato de cuidado da minha mãe para ele me soa tão distante da relação conturbada dos dois, é como se eu tivesse assistindo outra família, o sentimento de insatisfação só piora quando Jéssica surge no cômodo, o cabelo num coque extremamente organizado, sem um fio sequer fora do lugar.
Observo minha irmã interrogando com os olhos, entretanto não parece perceber meu questionamento, terminamos de comer e vamos para o carro, como de praxe o meu pai liga o rádio mudando de estação até que o timbre inconfundível de Tim Maia preenche o veículo, contagiada pela música minha mãe cantarola baixinho.
– Gosto tanto da sua voz minha preta. – elogia pousando a mão por instante na perna da minha progenitora.
O gesto afetuso anima Luísa que solta a voz cantando livre, para minha surpresa Jéssica também começa a acompanhar, rapidamente uma onda repentina de alegria nos preenche, sem qualquer vergonha, movidos apenas pela fugaz harmonia, nós quatro desafinamos juntos ao som de Não quero dinheiro
'' A semana inteira fiquei esperando para te ver sorrindo, pra te ver cantando.
Quando a gente ama não pensas em dinheiro, só se quer amar''
No lugar de oração, cheio de imagens e cheiro de incenso no ar a voz do padre ecoa, contudo não presto atenção, ainda estou inibriada pelo momento musical de minutos atrás.
Será que foi um sonho?
Seja o que for me trouxe a avassaladora vontade de viver mais episódios assim de natural entusiasmo, no entanto como se o universo quisesse me tirar da realidade parela onde minha família e eu rimos e cantamos juntos, percebo um olhar julgador me analisando de cima a baixo.
A expressão severa da senhora a minha frente me faz remexer no banco como se mil formigas pinicassem minha pele, o gelo nas suas iris me faz encolher, seu rosto sério é conhecido, é Lurdes, a tia de Isa, a mesma com a fala cruel de mulheres irem para o inferno por usar maquiagem. Alguns minutos depois de me fitar com a insatisfação estampada em sua face, ela se vira cochichando com a outra idosa ao seu lado.
O que será que ela viu em mim para estar me observando assim, o que estão falando? De repente me pergunto se a mulher consegue ler pensamentos, o sonho que tive com Danilo surge vívido na minha mente e abaixo a cabeça constrangida.
Um calor sobe do fundo do meu ser queimando meu rosto, os olhos austeros da idosa estão me inflamando, preciso sumir antes que me reduzam a pó.
- Esta tudo bem? - Jéssica nota minha inquietação.
- Não, preciso sair - sussurro
- O que aconteceu? Está passando mal? - minha mãe questiona tocando levemente meu ombro.
- Sim, é o calor, muita gente, me deu dor de cabeça - me atrapalho na explicação.
- Vou com ela lá fora - Jéssica determina e me acompanha pelos corredores sob a expressão irritada de Fábio.
Sentadas debaixo da sombra de uma árvore minha irmã agradece meu mau estar, foi a sua chance de fugir da homilia.
- Aquelas beatas são mesmo insuportáveis, também notei o jeito maldoso que olharam para nós - Jéssica conta e percebo que não foi apenas imaginação minha.
- O que será que elas sabem? Pareciam prontas para gritar algo horrível sobre mim. –confesso perturbada.
- Não seja boba Ma, certeza que é algo sobre nossos pais...Não dá para fingir eternamente que somos uma família unida, as mascaras caem. – Jéssica afirma irritadiça, com impaciência puxa o lacinho do cabelo deixando os fios soltos
- O que quer dizer...
- Sei lá, talvez cansaram de acreditar que a mãe é sempre tão destrada, vive caindo de escadas, esbarrando em móveis, ou descobriram que o nosso pai tem muitas ''amigas'' - deixa escapar um suspiro frustrado, seu rosto contorcido em indignação me faz ficar calada.
Visivelmente aborrecida Jéssica para de falar e volta sua atenção para o celular, enquanto me concentro em respirar fundo buscando acalmar meu coração acelerado. O voto de silêncio foi quebrado, Jéssica falou abertamente o que a gente finge não saber.
Encaro céu esperando que algo terrível ocorra, talvez um raio atinja nós duas, ou a terra rache ao meio nos engolindo, contudo nada acontece e fico muda, paralisada por uma sensação que não sei descrever.
O tempo passa comigo sentindo o vazio que me consumia ir sendo preenchido por uma leveza tênue e incerta, assim como a frente da igreja é tomada por pessoas em conversas banais, numa confraternização alegre que sempre acontece nos domingos após a missa.
Para minha alegria ou não, o Danilo não veio, entre as pessoas bem vestidas e falantes avisto minha mãe, sorridente ela se aproxima de Cristina, aproveitando que as mulheres estão entretidas num bate papo meu amigo vem conversar comigo.
O milagre que fez Felipe vir a igreja é a tentativa de agradar o avô, seu Vicente ainda está chateado com a última visita nossa a sua casa, e Júlia está proibida de voltar. Não o culpo, sua falecida esposa é tudo para ele.
Meus olhos vagam entre as pessoas até achar o senhor ao lado de dona Maria, a conversa com minha vizinha parece animada, os dois sorriem enquanto trocam palavras que não consigo ouvir.
Nesse instante desejo ter meu celular, para capturar essa imagem tão adorável, a senhora usa um vestido rosa repleto de pequenas flores, e ele está de terno e boina, como se viessem de outra época.
Será que ela vai chamá-lo para tomar chá, ou quem sabe podem mais tarde jogar bingo?
- Ma, minha roupa está suja, será que sentei no chiclete? - meu amigo pergunta de repente me tirando dos pensamentos.
- Não tem nada errado, porque?
- Seu pai está me olhando feio - fala baixo constrangido, e só então noto Fábio nos observando.
- Ele é feio assim mesmo, não se preocupe - Jéssica zomba e nós rimos.
Confesso que fico aliviada, esse jeito grosseiro do meu pai sim é o que estou acostumada.
Sei que não é o homem cortez e carinhoso que está hoje, e por mais que aproveitamos esse seu atípico bom humor, sabemos que é questão de tempo até voltar a mostrar a verdadeira face.
- Estou preocupada, desde que levantei estou com uma sensação ruim... - confesso.
- E tem como ficar bem? - a reclamação de Jéssica sai num tom mais tristonho que grosseiro. - Vou lá com a Mãe
- O que deu nela? - Felipe questiona observando-a ir para longe de nós com passos pesados.
- Longa história - suspiro por fim.
- Você sabe que pode contar para mim, estou aqui para te ouvir. - a sua fala me surpreende, seu tom inesperado de compreensão quase me desmonta, é como se pudesse ver a bagunça dentro de mim.
Um silêncio cai sobre nós, não exigente de ser quebrado, mas acolhedor, me passando a segurança de falar o que quiser no meu momento, entretanto não cumpro a sua expectativa, prefiro trocar de assunto.
Felipe não fica satisfeito da minha fuga, todavia não reclama, talvez perceba que estou em uma corda sobre um imenso precipício e qualquer deslize pode ser meu fim. Com paciência me acompanha falando sobre como as senhoras da igreja são assustadoras, o modo de andar, olhar, falar, tudo tem uma postura acusadora e superior, sendo quase impossível não ficar intimidado.
Para piorar a estranheza do dia, na hora de nós despedirmos para em fim ir almoçar, Isa surge como um anjo no seu delicado vestido branco, na cabeça uma tiara enfeita a cascata negra de cachos que caem livres em suas costas.
É óbvio que meu pai não se opõe que em vez de entrar logo no carro vá conversar com a garota, sua tia é respeitada na igreja, e durante um tempo Isa chegou a cantar no coral.
– E então, conseguiu falar com a Julia? – o sorriso meigo que brilhava no seu rosto minutos atrás se desfaz numa careta de preocupação.
– Ainda não – confesso ouvindo seu longo suspiro de frustração. – Mas é você que precisa chegar nela, é preciso sua, atitude para achar um jeito de falar com a Julia de novo.
– Não estou entendendo, pensei que fosse me ajudar – reclama fazendo um biquinho, e me controlo para não cair no riso.
– Tipo cada pessoa é de um jeito, então precisa pensar em uma forma única para se aproximar, tem que ser algo especial para vocês. – para exemplificar conto sobre o presente que Jéssica ganhou, sem revelar que é minha irmã a pessoa sortuda.
– Aí Marcela, a Julia não é romântica e não vivemos mais no tempo de serenatas – a irritação transparece na sua voz.
– Calma, é só fazer um gesto de carinho algo pessoal que mostre que você se interessa por ela, que a vê.
– Não sei... Não tem um plano melhor – me observa tomada pela incerteza.
– Você pediu minha ajuda, é essa minha ideia, segue se quiser. Tenho que ir para casa – digo colocando um fim no desastroso diálogo.
Me afasto vendo a expressão dela oscilar entre tristeza e expectativa, lanço um sorriso tranquilizador antes de entrar no carro. Sentada no banco de trás sou bombardeada pela curiosidade do meu pai em saber sobre o que falávamos, minto que era só assunto de escola.
Jéssica não cai na minha desculpa e me lança um olhar significativo, que deduzo ser '' depois você me conta tudo '', o riso escapa entre meus lábios e disfarçamos.
Observando pela janela do carro a paisagem passar suspiro surpresa em como minha vida mudou.
Eu beijei o Danilo, sou procurada pela Isa para dar conselhos românticos e agora Jéssica e eu trocamos confidências.
Jamais imaginei isso.
Oii, essa foi mais um capítulo.
O que será que as senhoras estavam cochichando na igreja?
Obrigada por sua leitura, deixe seu comentário e estrelinha ⭐
Até mais 😘
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