37 Cupido
Lavando a louça do jantar a única coisa que consigo pensar é em como estar em casa é um pesadelo.
O silêncio tenso impregnado no ar faz com que da cozinha consiga ouvir as noticias perturbadoras do jornal sensacionalista que meu pai vê com toda concentração.
De soslaio observo minha mãe com o rosto franzido em uma expressão enigmática, calada segue passando as roupas, a tarefa feita de maneira lenta e metódica parece mais uma fuga do que realmente uma necessidade.
De repente a porta se abre dando passagem para Jessica, o sorriso morre em seu rosto assim que pisa dentro do cômodo, minha irmã passa pela sala na penumbra com passos leves, parecendo querer esconder sua maleta de esmaltes e outros itens que usa no trabalho.
Tão súbito quanto entrou logo a garota some para o quarto, seguindo seu exemplo término de limpar a pia e corro para minha cama sufocada com a quietitude ensurdecedora.
Se ele não estivesse em aqui, o rádio estaria ligado e minha mãe balançaria no ritmo da música enquanto cuida da casa, Jéssica certamente entraria falante reclamando de alguma coisa que houve no salão.
O silêncio não é paz, e sim o mau presságio que antecipa o caos, cada atitude nossa é calculada para não incitar uma guerra, vivemos num campo minado.
Encolhida sob o cobertor quase me arrependo de ter devolvido o moletom de Danilo, sem o conforto da sua blusa
abraço Fred desejando não ter que viver mais com medo, o gesto de envolver meu cachorrinho de pelúcia me faz lembrar de Felipe, a imagem do seu olhar ferido e vermelho de lágrimas não sai da minha mente.
Todos nós temos dores para enfrentar.
Jéssica sai do banheiro com a cara cheia de uma máscara esverdeada, se joga na cama mexendo no celular perdida no próprio universo, seu olhar em algum momento colide com o meu notando que a observo.
– Sinto falta de te ouvir gritando, quer dizer cantando pela casa – para minha surpresa confessa num suspiro.
Simplesmente fecho os olhos me rendendo ao sono, adormeço entregue a escuridão sem sonhos.
Logo o dia amanhece, como se tudo estivesse perfeito, na mesa do café nos sentamos feito uma família unida e feliz, mal consigo tomar o leite com o nó que se forma na minha garganta de tantos sentimentos amargos que não posso engolir.
Termino o mais rápido possível de comer e vou para o ponto esperar o ônibus conversando minha vizinha, ao menos tenho a simpática senhora para animar um pouco minha manhã.
– Marcela obrigada, você é uma menina tão boa – Dona Maria me elogia.
– De nada, depois da escola eu passo na sua casa.
A senhora agradece mais uma vez e cantarolando vai para os fundos cuidar da sua horta.
Como de costume dona Maria veio conversar comigo, dessa vez reclamando das dores no corpo devido a idade, se queixando de não conseguir dar conta da bagunça de onde mora, entretanto vi na sua fala uma oportunidade e depressa me ofereci para ajudar nas tarefas domésticas na intenção de ficar longe da minha casa.
– Vai mesmo fazer isso?! – Jéssica questiona incrédula.
– Ela é velhinha, precisa de ajuda – tento me justificar, embora meu interesse não seja tão nobre.
– Sei... Você é uma boba – revira os olhos.
– E você uma chata – retruco insatisfeita.
– Vamos logo, a Dara tem algo importante para me contar – ignorando meu xingamento entra no ônibus.
Sigo-a cumprimentando seu Mathias que sorri gentil, nós duas nos sentamos junto das garotas alegres e maquiadas logo de manhã, sem qualquer inibição puxo assunto com elas, que sabem falar sobre tudo, indo muito além de roupas e fofocas dos outros colegas.
Tal qual imaginei os amigos de Júlia de forma errônea, essas meninas são mais que um rosto bonito e se mostram realmente animadas quando Dara e eu falamos sobre a valorização da estética afro.
Rapidamente chegamos na escola e me despeço indo para minha turma, mais uma vez Felipe faltou, contudo agora sei o motivo e tento me convencer que logo ele vai ficar bem.
Diferente de mim que olho para Gabriel e Júlia juntos em desespero, irritada com a bagunça da sala a professora Janaína resolveu dar um teste surpresa e agora não tenho dupla e sequer sei a matéria, estou perdida.
– Posso fazer com você? – Danilo pergunta.
– Pode, porém já aviso que não sei nada – admito surpresa com sua presença.
– Eu também, mas tudo bem, a gente zera junto – sorri aproximando uma carteira da minha.
– Isso foi estranhamente reconfortante – confesso aliviada.
Diante de mim as questões da avaliação são um monte de enigmas no papel, até tento resolver os problemas, contudo parecem algum tipo de língua antiga inteligível que não faço a mínima ideia de como funciona.
E estar do lado de Danilo não ajuda em nada, de alguma forma sua aproximação causa uma agitação em mim embaralhando meus pensamentos e tirando meu foco.
Não sei exatamente o que tem de tão interessante nas pintinhas saindo de dentro da sua camisa e se envolvendo na corrente em seu pescoço, contudo me esforço para controlar a vontade de passar o dedo ligando as marquinhas para formar as constelações que salpicam sua pele escura como o céu noturno.
– E aí, entendeu? –fala de repente me trazendo para realidade
– Sim – afirmo rápida voltando a atenção para à prova.
– Relaxa, de boa não saber matemática, você é esperta em outras matérias, tipo duvido que alguém aqui escreva um poema tão genial quanto o que fez – me consola sem ter a mínima ideia que meu incômodo não são com os cálculos e sim sua presença.
– Obrigada, também acho que você é incrível jogando capoeira, e ninguém cai de um jeito tão lindo de Skate – as palavras escapam da minha boca empurradas pelo meu nervosismo.
– Não posso ser perfeito em tudo – ri sem se importar com a bobagem que soltei – Falando em skate vai ter uma competição nesse fim de semana, eu queria que fosse me vê.
– Pode contar comigo, vou gritar muito na plateia torcendo por você – aceito o convite tomada pela escuridão dos seus olhos que encontram os meus.
– Vou adorar isso – fala suave colocando sua mão sobre a minha, o contato repentino me faz estremecer num arrepio, num ato reflexo afasto minha mão assustada.
Ele não diz nada, apenas me observa atento como se estivesse diante do mais incrível dos seres, a noite dentro das suas orbes devora tudo ao redor e por instantes só tem nós dois, apesar do negror do seu olhar, me sinto queimar e arder como se estivesse sob mil sois, até passo a língua entre os lábios umedecendo minha boca seca, tal gesto acende algo que brilha nos seus olhos me surpreendendo com a intensidade que me fita.
– Vocês dois, acabou o tempo, hora de entregar a prova – exigente Tati para diante de nós estendendo a mão.
– Te vejo no sábado – Danilo pisca para mim se afastando após dar a folha para Tati sem perceber a irritação que a garota exala.
Me encolho silenciosa vendo seu rosto contorcido numa careta de insatisfação, não disfarça que quer me fuzilar, sem dizer mais nada simplesmente sai pisando duro deixando a avaliação na mesa da professora que a observa confusa.
E agora?
Sei que é louca pelo Danilo, e deixou bem óbvio o quanto ficou chateada com nossa proximidade, mas será que é capaz de fazer algo contra mim por raiva, ciúmes?
Minha mente é tomada por imagens da Tati se vingando, me empurrando escada abaixo na saída, me acertando uma bolada sem querer na aula de educação física, até botando fogo na minha casa.
O sinal da próxima aula toca e a professora Janaína vai embora com nossas provas sem fazer ideia do problema que me criou, nesse pequeno ínterim de troca de professores a algazarra impera na sala contagiando até Júlia e Gabriel que logo estão ao meu lado falando do que prefiro esquecer.
– O jeito que o Danilo te olhou devia ser proibido em público, achei que iam se agarrar aqui mesmo na carteira – Gabriel todo animado não tem noção do que diz.
– Para Biel – peço constrangida.
– Você está lendo muito hot garoto – Júlia zomba do amigo e em seguida se direge a mim sussurrando – mas ele está certo Ma, Danilo parecia estar vendo um sorvete no sol de 40 graus, e você ficou toda derretida.
– Até você Ju!? Que exagero, não tinha nada disso – murmuro incrédula querendo por um fim no assunto
– Não precisa ficar com vergonha, queria eu ter alguém para me olhar assim. – Gabriel suspira com pesar, sua vida amorosa parece ser só de rejeição e decepção.
– No fundo todos nós queremos – Júlia concorda me surpreendendo com sua sinceridade.
– Parece que alguém aqui está sofrendo de amor, depois eu sou o iludido – Gabriel provoca a amiga.
Julia simplesmente mostra o dedo do meio para o garoto e os dois começam uma discussão cheia de farpas, risos e ironia, onde é difícil saber se estão se xingando realmente ou só brincando.
Consigo intervir no meio da troca de carinho entre os dois chamando-os para participar do projeto Minha Beleza, e assim consigo mais gente para torná-lo real.
As horas passam rápidas, graças a Deus, até que após o sinal da última aula seguimos para a sala de reunião do grêmio.
Ao ver meu silêncio concentrado olhando o computador Júlia questiona o que tenho, mostro o texto do perfil do grêmio confesso que estou cogitando mandar o poema para o concurso de escrita da Miss Teen
— Manda sim, você escreve bem, suas palavras são necessárias, pensa em todas as garotas que não se encaixam e que precisam saber que não tem nada de errado com elas, que são lindas também. — a garota me incentiva.
Sob seu olhar encorajador digito hesitante, cada palavra de Minha Beleza reverberando em minha mente junto com a dor e a coragem que me tomou quanto o escrevi pela primeira vez, Júlia está certa, respiro fundo e aperto enviar com o coração palpitando, agora está feito.
Depois de finalmente enviado, sinto um alívio e volto minha atenção para divulgar o projeto, aos poucos minha ideia está criando vida.
– Ei, me passa a caneta vermelha – Dara pede para continuar escrevendo na cartolina.
– Estou ansiosa, finalmente vai acontecer a primeira reunião do nosso projeto – entrego-lhe sem esconder minha empolgação.
– Amanhã vou trazer um tapete e algumas almofadas para nossa roda de conversa – Júlia pensa na decoração.
– Tem que fazer um lanche também, o povo vem conversa, come, não tem erro. – Gabriel propõe.
– Agora é só espalhar os cartazes pela escola para quem se interessar vir participar – Jéssica determina distribuindo cola e fita adesiva.
Obedientes Júlia, Gabriel e eu saímos colando as cartolinas pela instituição escolar, enquanto Jéssica e Dara vão para o salão cumprindo a responsabilidade de mais uma tarde de trabalho.
Lembrando do meu próprio compromisso com minha vizinha dou tchau aos meus amigos indo embora, na praça do lado da escola vejo Isa conversando com Sabrina, as expressões irritadas carregadas de gestos exagerados me dão a impressão de que estão discutindo.
De repente a barbie falsificada fecha a cara e caminha batendo os pés deixando a garota falando sozinha, inquieta Isa meche nos cabelos olhando ao redor,
ao me notar atravessa a rua andando determinada até mim.
– Preciso falar com você – a firmeza na sua voz me faz sentir a urgência do pedido e acompanho-a receosa com o assunto.
Voltamos para praça, o lugar está cheio de adolescentes, porém ficamos distante da aglomeração, sentada num dos bancos encaro Isa com expectativa sem ter noção do motivo de ter me chamado.
– Você tem ficado bastante próxima da Júlia – em pé diante de mim começa a falar hesitante, apenas meneio a cabeça em concordância, diante do meu silêncio continua – Eu gosto dela...muito. E quero sua ajuda.
– Ajuda? – repito incerta.
– Júlia me bloqueou em tudo, não me recebe quando vou na casa dela... preciso que consiga convencê-la a conversar comigo. – sem jeito explica como posso auxiliá-la.
– Não entendo o que tenho haver com isso, mal sei que tipo de relação vocês tem ou tiveram, mas acredito que é melhor respeitar a decisão dela. – falo me levantando para ir embora, seja o que for que aconteceu júlia deve ter suas razões para se afastar.
– Marcela por favor... Estou desesperada, a Jú é muito especial para mim, não quero perdê-la. – me olha suplicante.
– Sinceramente não parece – digo notando o espanto na suas feições, me colocou no meio desse conflito então decido expor o que penso – Júlia é estilosa, divertida, inteligente e autêntica, uma pessoa incrível para se ter por perto, entretanto nunca vi vocês juntas, mal parecem que se conhecem, não sei como diz que gosta dela.
– Você não faz ideia do que está falando – protesta ofendida – Não me julgue, as coisas não são tão simples, nem sei por que te procurei, já exigem muito de mim não preciso ouvir mais críticas.
– Qual é o problema, medo de perder a popularidade? – questiono chateada com sua irritação.
– Para Marcela – aumenta o tom exasperada, percebendo sua explosão senta no banco calada.
Seu rosto reflexivo me faz lembrar das inúmeras vezes que vejo minha mãe assim contemplando o nada num silêncio gritante, contudo em vez de ir embora me sento do seu lado.
– Sei que sou popular, e é óbvio eu não quero ser xingada, rejeitada, porém isso vai muito além da escola – a raiva e obstinação sumiram de si, restando uma Isa contrita – Você entende o que é ser vista como errada, uma aberração que não deveria existir? Viver de mentira para evitar ser maltratada, a vergonha da família?
Seu olhar cheio de dor encontra o meu, nesse instante Isa é apenas uma garota assustada tentando sobreviver num mundo que não aceita quem ela é, por mais que não faça ideia da luta interna que enfrenta, eu sei o que é não se sentir boa o bastante para pertencer.
– Vou falar com a Júlia – declaro por fim rendida.
– Obrigada – suspira aliviada, seu semblante antes triste, reluz de pura alegria.
Por um momento penso que pode me abraçar de tanta empolgação, contudo apenas se despede com um sorriso esperançoso, observo a garota negra se afastar atraindo olhares com seu andar altivo, e me questiono o que vou fazer agora.
É fato que li inúmeros livros românticos, todavia a ficção está longe da realidade, juntar um casal não deve ser fácil, trancar as duas em uma sala e esperar que se resolvam é improvável de dar certo.
Talvez contar com um pouco de magia, se eu tivesse meu celular podia pesquisar alguma simpatia de unir pessoas.
Se bem que ficar repetindo afirmações positivas para mim no espelho se mostrou pouco eficaz, parece que para mudar a realidade é preciso muito mais que apenas desejo e pensamentos felizes, porque a vida é tão complicada?
No fim volto ao meu caminho refletindo se talvez dona Maria tenha algum bom conselho sobre o amor, sempre dizem que o certo é ouvir a voz da experiência.
Ser romântica me fez cair nessa armadilha de dar uma de cupido.
Oii, obrigada por sua leitura. ❣️
E a Tati, algum palpite de como ela vai reagir há essa proximidade de Danilo e Marcela?
Isa foi pedir ajuda da Marcela, será que ela consegue juntar a Isa e a Júlia?
Deixe seu comentário e estrelinha ⭐
Até mais 😘
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro