3 Livros E Amor
Vou para cozinha, o cheiro do café me recebe enquanto minha mãe joga água fervendo sobre o pó, o líquido negro fumegando é colocado na caneca e entregue a mim.
Prefiro tomar com leite, porém aceito sem reclamar, o seu rosto cansado exibindo um riso sem graça me desanima, junto com os olhos inchados, que evitam me encarar.
Meu pai entra na cozinha enche seu copo e senta calado, os dois mal se olham, a tensão sufocante paira no ar nos forçando a um silêncio inquieto, desconfortável.
Nervosa mordo minha bochecha concentrada em passar manteiga no pão disfarçando não saber o que aconteceu, os fones de ouvidos não me impediram de ouvir seu choro de madrugada, na sua vigia esperando ele voltar para casa novamente bêbado da rua. Outra noite longa cheia de discussões.
- Que merda é essa ?! Esse café está horrível! - Meu pai soca a mesa irritado. - Você é uma inútil não sabe fazer nada.
- Quer que eu passe outro? - Oferece com a voz assustada.
- Não precisa, vou comer na padaria. -Sai batendo a porta - Não me espere para o almoço.
As lágrimas escorrem pelo seu rosto, minha mãe levanta-se indo até a pia, com rapidez seca os olhos com as costas da mão, e se põe a lavar louça.
Jéssica e eu continuamos na mesa fingindo não notar sua dor, fomos ensinadas desde de pequena a não ver e não falar das brigas em casa.
-Estão surdas!? O ônibus chegou! -Irritada minha mãe grita.
Nós duas saímos depressa, hoje confesso ser um alívio vir à escola.
Ainda faltam alguns minutos para o sinal tocar anunciando o início das aulas, entre as estantes caminho lentamente olhando as lombadas, estou em um momento de desespero: preciso de um livro que seja a porta para fugir dessa vida, uma passagem para o mundo da imaginação.
Quero um escape dessa realidade que me consome, algo que possa me envolver ao ponto de me esquecer.
Ler é empolgante, é por isso que amo, com a leitura posso ter outras vidas, conhecer outros mundos, descobrir novas realidades, viver aventuras, desafios. Imaginar ser o símbolo de uma revolução, lutar numa guerra, derrubar governos cruéis, salvar o mundo.
Ser uma mulher de sucesso, milionária, poderosa, tendo um romance ardente com meu rival , ou ainda ser a rainha do baile, linda, popular, encontrar o verdadeiro amor e ser feliz para sempre.
Já vivi mil vidas, porque eu li.
O diário da Mariposa, esse título me chama a atenção, pego-o encantada com a capa, leio a sinopse e tenho certeza que é esse o escolhido.
No fundo da biblioteca sento-me no chão encostada na parede, a pouca luz que bate onde estou não me incomoda, na verdade traz um clima de aconchego, o silêncio ao redor me preenche e me sinto confortável na minha solidão absorta na história de Rachel Klein.
- Ah... - Alguém tropeça em mim.
- Desculpe - Peço indo ajudar a pessoa que caiu, me assusto vendo que é Matheus, quando sua mão toca a minha meu corpo estremece.
- Não te vi... foi mal - Fala me olhando nos olhos.
- Como ia ver? Encolhida no chão, como um rato de biblioteca - A Sabrina é venenosa.
- Se você lesse mais talvez tivesse notas melhores - Isa rebate - A gente está aqui para achar alguma coisa para te fazer passar em história.
- Ler é chato, dá sono. - Sabrina choraminga.
- Bom dia crianças - Dona Terezinha aproxima-se, é uma senhora alta sempre com um sorriso em seu rosto gentil.- Posso ajudar?
- A gente precisa de um livro sobre A Guerra Fria para estudar - Isa toma frente e somem entre as estantes.
Sozinha fico pensando na mão quente e macia de Matheus segurando a minha, em seus olhos castanhos derretidos como o mais puro mel. Como seria bom nós dois andarmos de mãos dadas, uma sensação gostosa de bem-estar esquenta meu ser com esse pensamento.
- Você viu o jeito que ele me olhou?- Tati passa a mão pelos longos cabelos jogando-os para trás com charme.
- Vi - Bia ri cúmplice
- O que aconteceu? - Fico curiosa e me junto a conversa colocando uma cadeira na frente da carteira de Tati
- Um gatinho do 3° ano me olhou de um jeito...ai ai deu até calor - Tati Abana-se num suspiro.
- Com certeza está a fim de ficar com você, foi mesmo um olhar muito seduzente. Haha. -Bia zomba num cochicho para evitar que nos ouçam, e senta no meu colo.
- Vou descobrir quem é -Tati está determinada.
Na sala o falatório e o barulho do arrastar de carteiras e cadeiras dos alunos tomando seus lugares abafa nossas vozes, contudo ainda sussurramos pois o burburinho pode cessar de repente e expor o nosso assunto.
- Ele é mais velho... pode querer outras coisas - Alerto
- Querer não é poder, para mim ficar é para dar uns beijos sem compromisso, se ele quiser outra coisa digo não e vou embora - Tati diz confiante - Não é um monstro de sete cabeças.
- Parece tão simples falando... Mas cadê a intimidade, o carinho? Como ficar calma com um desconhecido num beco qualquer? - Revelo minhas dúvidas.
Atrás da escola tem uma rua pouco movimentada, mas conhecida, chamada de rua do amor, é o lugar que os estudantes marcam de ficar depois da aula, escondidos pela grande árvore que tem ali.
- Relaxa, os garotos também ficam nervosos, por isso antes de qualquer coisa acontecer você pode tentar conversar, se o papo for bom, a vontade surgir, o beijo rola naturalmente, agora se não ficar a fim, é só inventar uma desculpa e bye bye. - Tati explica.
- E se for um beijo gostoso, tiver uma... sei lá, química entre vocês, é só pegar o número da pessoa e continuar conversando, marcar de se encontrarem de novo e ver o que acontece. - Bia se ajeita no meu colo.
- Na maioria das vezes não vira um namoro, mas é bom ter em quem dá uns beijos de vez em quando, é só se permitir curtir. - Tati aconselha - O importante é deixar claro o que você quer, é sua decisão o que vai acontecer e se o cara não concordar, dê tchau e vai atrás de quem tá a fim da mesma coisa.
- Esse é o mundo real Ma. Não é preciso lutar contra dragões, fazer serenata ou pedir em namoro para beijar. Quanto mais cedo perceber a verdade, menos vai se decepcionar. -Bia avisa
- E sem essa de me beijou e agora temos que namorar e viver feliz para sempre. A vida é simples, não complica. -Tati declara.
- Bom-dia turma - A professora Janaína chega na sala, seu olhar cai nas amigas e eu - Todos vão para os seus lugares em silêncio, hoje é o dia da prova.
Prova ??
Preciso de uma luz, um milagre, ser atendida pelos céus ou aguentar as consequências dos meus erros, das minhas atitudes e omissões em silêncio.
Não é porque estou sempre com um livro que só tiro dez, na verdade deixei de estudar para ler, agora não estou preparada, olho para a folha da prova de matemática à minha frente, uma angústia enorme se apodera de mim. Não vejo solução, é iminente meu fim.
O que faço comigo? Não posso acusar ninguém de carrasco, não posso me fazer vítima, sou a grande culpada e sei que vou tirar nota baixa, já passei por essa situação antes, apesar disso não mudo, persisto no erro e tenho que sofrer com as consequências.
Sou minha maior inimiga, eu me condeno e me torturo. Porque simplesmente não faço o certo.
- Aleluia, o intervalo - Felipe Comemora. - E aí, como acham que foram na prova? Pelo menos num sete me garanto.
- Vou zerar em matemática! Mesmo respondendo todas as questões, sei que a maioria estão erradas, foram tentativas em vão. - Admito minha derrota.
- Hoje é o pior dia para vir a escola, duas aulas seguidas de matemática e ainda é prova... - Bia pensa como eu
- Vocês reclamam muito, estava fácil. Tenho certeza que tirei nota boa. - Tati é confiante.
- Não sei como consegue, mal presta atenção na aula. - Fico chateada. Ela é daquele tipo sortuda que tira nota boa mesmo sem esforço, é incrível.
- Sou naturalmente linda e inteligente - Sorri cheia de si.
- E modesta - Zomba Felipe
- Olha aqui - Bia mostra o celular.
Nos juntamos na frente do aparelho, na tela vejo a foto na rede social, onde Isa está de biquíni na cachoeira, ela exibe um sorriso doce sentada em uma pedra, atrás está a queda d' água, ficou linda, tem muitas visualizações e curtidas.
- Querem ir lá para casa? A gente almoça e passa o resto do dia falando mal do pessoal da nossa sala. - Tati propõe mudando de assunto.
- Que incrível, eu vou. - Aceito o convite.
- Pode contar comigo, a tia Estela é uma excelente cozinheira. - Bia fica animada.
- Não dá para mim, hoje tenho aula de violão. - Felipe recusa, no que é do seu interesse se mostra bem responsável.
- Você quem perde -Tati dá de ombros
- Perco nada, vou comer mais desse macarrão que está mó bom - cheio de apetite como é, meu amigo super corajoso resolve enfrentar a gigantesca fila para repetir a merenda.
- Vou mandar mensagem para minha mãe avisando que vão comer em casa, e vê se tem como ela comprar açaí para gente - Tati anuncia mexendo no celular.
- Olha lá, aqueles dois não param de encarar a gente - Bia sem a menor descrição mostra os garotos.
- O de camisa preta é lindo né? - Tati sorri em sua direção e os dois trocam olhares cúmplices.
- O amigo dele não para de te observar Má, acho que está a fim de você - Bia me empurra de leve com o ombro.
- Ele é bonitinho, quer que eu te ajeite? - Tati sugere.
- Isso, combina dos dois se encontrarem para Ma finalmente perder o B.V - Bia incentiva.
- O quê? - Fico espantada
- Não vai perder nada, vai ganhar experiência de beijo - Tati fica empolgada - Você vai adorar, beijar é tão bom.
- Ei, parem vocês duas. Eu estou aqui, alguém perguntou se eu quero? -Protesto
- É claro que quer. Tudo o que você faz é ler sobre beijo, sobre sexo. Está louca para experimentar os dois. - Tati afirma.
- Mas não é desse jeito, é só um gênero de livro - Fico envergonhada e tento me explicar : - Eu também leio distopia e nem por isso desejo sofrimento para nós com um presidente facista governando o país.
- Que seja, você é livre para ficar com os seus hot e romance água com açúcar, mas porque você prefere ler a vida dos outros do que viver? - Tati insiste.
- Uma hora você vai beijar porque não agora? - Pergunta Bia
- Mas, é que... Não é assim que eu imaginei. - Não escondo minha tristeza.
- Você quer dar seu primeiro beijo no Matheus sob a chuva com um arco íris no céu. - Bia zomba de mim . - Ah por favor Marcela, isso não vai acontecer
Suas palavras me atingem em cheio, doem mais que um tapa na cara, o desdém no seu olhar, a ironia agressiva da sua voz, me machucam profundamente, não reconheço Bia.
- Ei, do estão falando? - Felipe volta com seu prato.
- Nada - resmungo, decepcionada.
Desde dessa conversa até a hora de ir embora fico chateada com Bia e Tati, magoada permaneço no meu canto perdida nos meus pensamentos tentando saber se as duas estão certas ou não.
Será que estou sendo boba?
As últimas aulas são rápidas, graças a Deus, a esperança de ir embora faz o tempo passar depressa, logo o sinal da saída toca, apressada jogo todo o meu material de qualquer forma na mochila.
Qualquer oportunidade para ficar longe de casa estou dentro, ainda mais se tem comida, já passei várias tardes na biblioteca pública sem comer nada.
Desde de pequena, já me escondia na biblioteca para evitar os comentários maldosos, que os adultos insistiam em dizer que era só brincadeira, aprendi que ler é magia que desperta sonhos, traz esperança, deixa o mundo mais colorido e fácil de viver.
Agora tendo a amizade de Tati e Bia, não me sinto mais tão perdida, sem rumo, apesar da gente não concorde em muita coisa, sei que só querem meu bem.
E com elas, agora tenho um lugar para ficar, nós podemos conversar, ouvir música ou ver filmes.
Mesmo que não conte o caos que vivo, fica mais suportável passar pela tempestade tendo o carinho das duas.
- Mãe, minhas amigas estão aqui - Tati grita anunciando nossa chegada.
- Oi meninas, que bom que vieram - Sentada no sofá da sala dona Estela sorri .
- Boa tarde. - Bia e eu somos educadas.
- Estamos morrendo de fome - Tati beija o rosto da mãe.
- Falta pouco para ficar pronto. Podem ficar a vontade - Estela é gentil.
- Vamos lá para o meu quarto. - Tati anuncia.
A música toca alta tomando conta de todo o espaço, rindo nós tentamos acompanhar Tati que insiste em ensinar nós duas a dançar.
Alegre com minhas amigas esqueço a discussão que tivemos e me solto deixando o som conduzir meu corpo, livre e leve me movo sem me importar com o ritmo, quero apenas curtir.
Estela chega no quarto, vendo nossa diversão, coloca a bandeja com suco sobre a cômoda e dança animada junto com a gente, com certeza Tati puxou a alegria e molejo da mãe.
É incrível como se tratam com carinho e gentileza, tão diferente de onde moro, é bom estar aqui, essa casa exala paz.
Oii
Obrigada por ler mais esse capítulo.
Vocês também lêm pra fugir da realidade?
Deixe seu comentário e estrelinha
Até mais 😘
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