Seguir Em Frente | Capítulo Trinta e Dois
Kenan recusara completamente quando Clarissa sugeriu falar com Lynn, assim que começaram a treinar com a planta. Ele alegara que, se Lynn conseguia manipular a história a ponto de deixar o Concílio em dúvida, podia manipulá-los do mesmo modo.
Não valia o risco, Kenan argumentara. Continuariam buscando maneiras seguras de descobrir sobre seus poderes e como trazer as memórias de Elisa de volta e, enquanto isso, conversar com Lynn estava fora de questão.
Mas alguma coisa dentro de Clarissa ainda se apertava, ansiosa. Depois de sair do salão, sentia-se perdida e incomodada, ainda conseguia ouvir as palavras de Elisa e sentir seus lábios nos dela, colados com um gosto de saudade, e ao mesmo tempo a decepção de saber que aquilo fora um erro.
Talvez tenha sido por toda a mistura de sentimentos conflitantes que foi parar naquele corredor cinzento, estremecendo com as memórias que tinha dali. Desta vez, encarava Lynn por trás das barras roxas e, por algum motivo, ela não pareceu surpresa ao lhe ver ali.
Lynn lhe encarou com olhos vorazes e Clarissa manteve a postura, tentando não recuar.
— Eu tenho todos os motivos do mundo para te odiar, mas... — disse, fazendo uma pausa. Clarissa tensionou os lábios e sentou-se no chão, sem se importar se Lynn estava mais alta, sentada na cama. — Realmente acho que você me ajudou nas escadarias, não sei aonde estaria se não fosse por aquilo. E também acredito que você se importa com Elisa, que sempre foi sincera, mas isso mudou por alguma razão — completou, mantendo o tom calmo e o olhar fixo nela, observando a face fina e bem delineada de Lynn fragmentada pelas barras arroxeadas. Tentava lembrar-se da garota doce das escadarias, de Elisa falando que Lynn sempre estivera ao seu lado, que eram próximas, que sempre confiou nela.
Tentou se lembrar de que Elisa se importava com Lynn. Tentou acreditar, pelo menos por alguns segundos, que ela também era a vítima ali.
— Acredita em contos de fadas também? Acha que vai encontrar o coelhinho da páscoa? — indagou ela, com uma risada baixa. Era impressão sua, ou Lynn parecia cansada?
Clarissa achou que fosse impressão, mas, por um segundo, a risada que era para ser irônica e debochada se transformou em uma risada cansada e quase derrotada. Aquilo lhe fez hesitar, uma pontada de incerteza crescendo dentro de si.
— Eu descobri que anjos são reais, estou em uma dimensão que os humanos nem sonham que existe, então, por que não? — perguntou, sem se exaltar. Estava disposta a ignorar as provocações dela e engolir sua raiva e mágoa em troca de descobrir mais sobre o que estava acontecendo com seus poderes. — Se tem alguém que pode ajudar a mim e Elisa, essa pessoa é você — disse, ficando surpresa com quão sinceras suas palavras saíram. Estava pensando em Elisa, percebeu. Em sua Elisa. Ela era tudo o que importava, muito mais do que as provocações de Lynn e do que as vozes em sua mente dizendo que aquilo era insano.
— E você acha que vou ajudar? — perguntou a querubim, levantando uma sobrancelha. Tudo nela parecia afiado e desafiador, prestes a cortar.
— Eu acho que tem uma pequena parte de você que ainda luta pelo que é justo e quer o bem de Elisa — insistiu, apoiando as costas na parede cinzenta e a encarando. Clarissa suspirou, baixando o olhar. De qualquer forma, estava cansada demais para retribuir o deboche e a ironia dela. Seria sincera, se conseguisse alguma coisa, ótimo e, caso não, seguiria o conselho de Kenan. — É nisso que estou confiando. Posso estar enganada, mas, pelo menos, saberei que tentei — concluiu. Lynn riu, uma gargalhada fria que fez Clarissa se sentir instantaneamente estúpida por estar ali. Realmente achava que ela lhe responderia?
Ficou um tempo em silêncio, lembrando-se de que o verdadeiro motivo para estar ali era Elisa. Precisava pelo menos tentar, tirar aquele peso de sua consciência.
— Você sabe sobre meus poderes, não sabe? Sabe o que há de errado com eles? — indagou, inclinando-se para frente e com seriedade na voz. Lynn lhe encarou e os olhos dourados cintilaram como se pudessem queimar, Clarissa quase recuou.
— Errado? Por que você acha que está errado? Por que Kenan te disse? — desafiou ela, em um tom quase rebelde. Clarissa franziu as sobrancelhas, pensando nas palavras de Kenan quando disse que aquele não era um poder dos querubins. — Você é poderosa, Clarissa, mas acha que não. Continua podando suas capacidades ao molde dos querubins e tentando se adequar às regras deles, que não cabem a você — disse, fazendo a loira estremecer. Tentou repetir as palavras dela em sua mente, não perder nenhuma informação.
— O que está dizendo? — Clarissa hesitou em perguntar, Lynn balançava as pernas no ar como uma criança travessa.
— Imagine fogo. Imagine o calor irradiando das velas nos candelabros e esquentando até um ponto insuportável — disse, também usando um tom mais sério. Havia parado de balançar as pernas, o sorriso cheio de provocação havia desaparecido em seus lábios.
Clarissa hesitou e olhou em volta, imaginando se aquilo seria algum truque. Os candelabros esculpidos em pedra eram mera decoração e aquelas grades eram protegidas, nada demais poderia acontecer.
Já havia treinado isso com Kenan certa vez e não era grande coisa.
A loira respirou fundo e fechou os olhos, deixando que a imagem dos luxuosos candelabros brilhassem no interior de suas pálpebras. Imaginou a chama se expandindo, o calor florescendo e lançando suas ondas ao redor dos pedestais.
Permaneceu parada e concentrada, orgulhosa de seu próprio foco. Kenan tivera trabalho para lhe ensinar.
Só abriu os olhos e saiu daquele transe quando o barulho de algo se quebrando lhe despertou. Clarissa olhou ao redor com uma expressão alarmada e percebeu que os pedestais, de alguma forma, haviam explodido em pedacinhos de pedra preta.
Aqueles candelabros pareciam ser feitos de uma espécie de vidro, que agora estava despedaçado no chão em cacos brilhantes. Sentiu uma pontada de pânico ao se lembrar que Lucas havia dito que era necessária muita energia angelical ou demoníaca para destruir algo ali, e também quando Kenan lhe disse que a energia dos querubins não era destrutiva.
— Como... — murmurou, enquanto Lynn voltava a rir de sua cara espantada. Clarissa sentia que podia vomitar a qualquer momento.
— Eu lhe disse. — Rindo, Lynn se levantou e se aproximou das barras. Clarissa decidiu que aquela era a hora de recuar, que já havia ouvido e feito demais. Esperava que ela não usasse e distorcesse esta visita ao seu favor. — Quer saber mais? — perguntou a garota, levantando uma sobrancelha. Lembrou-se de Kenan falando que ela era mestre em manipulação, que não havia como confirmar se o que ela falava era verdade. Ele também estava tentando lhe ajudar a entender seus poderes, não estava podando-os e, muito pelo contrário, queria que ela aprendesse a usá-los. Deveria confiar em Kenan, não em Lynn.
Com isso, virou-se sem dizer mais nada, afastando-se sem querer ouvir mais sobre aquilo. Conseguira com Lynn até mais do que esperava e agora sentia-se ainda mais perdida, sufocada e confusa sobre tudo. Os longos corredores cinzentos não lhe ajudavam a se sentir melhor.
— Você deveria seguir em frente, Clarissa — disse Lynn, quando a loira já estava se afastando. — Claramente, Elisa já seguiu — concluiu, em um tom tão debochado que fez toda a raiva contida em Clarissa se incendiar. Apertou as próprias mãos em punhos, as lamparinas explodiram ao seu redor com uma facilidade incrível e a fez saltar, assustada.
Aquilo fez sua garganta se apertar. Por que não podia ser normal? Por que as coisas não poderiam acontecer como deveriam? Tivera Elisa, certezas e a eternidade, mas tudo isso escorrera por suas mãos como areia.
Depois disso, Clarissa correu. Ouvia os candelabros se estilhaçando por onde passava, não sabia se sentia fúria ou medo, mas correu do mesmo jeito e subiu as escadarias sem nem perceber. Os corredores giravam e o salão de mármore lhe engoliu, como se fosse a cair sobre si.
Ofegou, sentindo-se zonza e sem ar. Os pensamentos pulsavam entre Elisa e seus pais, a vontade que tinha de se sentir em casa. Claramente, Elisa já seguiu. Lynn tinha razão, afinal, era a única empacada ali, ainda presa a algo que não poderia ter.
Quando subiu as escadarias, as folhas bateram-se entre si e chacoalharam, como se no meio de uma ventania. Ouviu alguém gritando seu nome, mas estava tão focada em tudo aquilo, em todo o vendaval de sentimentos e o pânico, que não parou.
Pânico de perder Elisa, de não entender o que estava acontecendo com seus poderes, de saber que tudo aquilo não tinha volta e de que estava morta.
Empurrou as portas duplas, quase caindo para dentro da sala de espelhos quando elas se abriram. Sua imagem girava em todos os lugares, o rosto pálido e os olhos assustados, o peito subindo e descendo como se nem todo o ar do mundo fosse capaz de preencher seus pulmões.
Quando caiu de joelhos, os vidros explodiram com um ruído agudo e voaram pelo ar, a sala virou uma tempestade de cacos refletindo luz com um prisma, feixes iluminados e coloridos girando ao seu redor quase em câmera lenta.
Clarissa se encolheu em um reflexo, lembrando-se tardiamente de que os cacos não podiam lhe cortar com facilidade. Ouvia o vidro caindo ao seu redor, enroscando-se nos cachos volumosos de seu cabelo e fechou os olhos, sufocada.
Só naquele momento que as lágrimas vieram, quando a tempestade de espelhos quebrados se acalmou e apenas alguns ruídos permaneciam, ruídos quebrados e pequenos como ela.
— Cass? — A voz foi suave, preocupada. Clarissa finalmente abriu os olhos, com o peito ainda subindo e descendo, a sensação de que estava sufocando, de que sua garganta estava inchada. Lena lhe encarou com aqueles olhos suaves, parecendo pequena e corajosa no meio da bagunça de cacos de vidro. Ela avançou e Clarissa permaneceu ajoelhada, cacos de vidro brilhavam em seus cabelos loiros.
Quando ela se ajoelhou em sua frente, aqueles olhos castanhos lhe acalmaram do mesmo modo que os olhos dourados de Elisa costumavam fazer. Lena parecia ter as respostas de todas as suas dúvidas, esbanjar estabilidade e segurança, o que só fez com que mais lágrimas escorressem e manchassem as bochechas da loira.
— Prenda a respiração — instruiu, com um tom gentil. Foi o que Clarissa fez, encarando-a nos olhos e observando sua expressão calma, focada. Aos poucos, percebeu que seus pulmões não estavam queimando, não de verdade, e que estava bem, não estava sufocando como achava que estava.
Era como sonhar que estava em queda livre e então acordar com um alívio súbito. Clarissa baixou o olhar, subitamente sentindo-se exausta e drenada.
Encarou os cacos de vidro, imaginando o que Lena ou Kenan diriam sobre isso. Conseguia explodir espelhos do tamanho de uma parede, mas não conseguia drenar uma simples planta, um procedimento teoricamente fácil. Qual era seu problema?
— O que houve? — Lena perguntou, a suavidade em sua voz acalmou as lágrimas de frustração de Clarissa. A loira hesitou, observando os espelhos estilhaçados, seu reflexo fragmentado nos pequenos pedaços que resistiam na parede branca.
Seu rosto estava manchado por trilhas de lágrimas, tremia de leve.
— Só estou com medo, eu acho — confessou, o que era a mais pura verdade. Estava apavorada. Apavorada de não poder voltar, de perder Elisa, de perder toda a estabilidade que tinha. Pensou em Lynn lhe dizendo que era poderosa, mas sentia-se o oposto disso. Estava quebrada, perdida e totalmente sem rumos.
— Ei — chamou Lena, colocando a mão em seu queixo e levantando seu rosto para encará-la. Clarissa sentiu um nó dentro de si. — Estou aqui, você está segura. Eu prometo — disse ela, em um tom baixo. Clarissa assentiu, encolhendo os braços ao redor do corpo.
Lena sorriu, um sorriso tão confiante e suave que fez com que a guerra dentro de si silenciasse. Ela levantou a mão, mexendo em seu cabelo e tirando com cuidado os cacos de vidro presos ali, tocando-a com delicadeza.
Clarissa lhe encarava enquanto isso, as duas em silêncio. Estava próxima o suficiente para ver as nuances de cor do cabelo dela, o castanho recheado de reflexos dourados e vermelhos, as mechas curtas contornando suas bochechas. Gostava do toque dela, de senti-la mexendo com tanto cuidado em seus cabelos. Exibia respeito e carinho, mostrava que ela se importava.
Quando Lena baixou a mão para limpar as lágrimas em suas bochechas, as duas se encararam, o silêncio pulsou sobre ambas com um peso maior. Não soube o que fez Lena parar, mas Clarissa ficou surpresa e perplexa por, talvez, ela ter percebido a mesma coisa.
Já estavam próximas e Clarissa quase recuou quando Lena se inclinou. Teve de se lembrar que era Lena, ela lhe respeitava, respeitava seu corpo e respeitaria se quisesse se afastar.
Como imaginou, Lena parou por um momento, olhando para Clarissa como se pedisse permissão e foi a loira quem foi um pouco mais para frente. Quando se beijaram, tudo pareceu se silenciar e a garota sentiu o peso escorrer como água, cada sentimento que lhe arrastava para baixo se transformando em areia carregada pelo vento.
Foi suave e sincero, as mãos de Lena dançavam carinhosamente em suas costas. Quando se separaram, Lena tinha uma expressão preocupada e seus olhos brilhavam tanto quanto os cacos de espelho espalhados ao seu redor, refletindo luz.
— Me desculpe, é só... você parecia... — murmurou, balançando a cabeça negativamente, como se estivesse perdida. Clarissa suspirou, desviando o olhar e tentando entender o que sentia. Tentava fugir da bagunça sentimental, mas sempre acabava se enfiando em um novo drama.
Mas Lena... ela parecia sincera. Ela queria ajudar. Ela estava ao seu lado de um modo bom. Ela lhe fazia bem.
— Tudo bem — sussurrou Clarissa, com um sorriso pequeno. — Isso não foi um erro — completou, mas desviou o olhar. Também não estava preparada para aquilo. Não estava em condições de lidar com algo tão incerto quanto o começo de um relacionamento.
Quase riu de seu próprio desespero. Não era como se estivessem em um relacionamento, afinal, mas tinha medo de que aquilo bagunçasse a relação de amizade das duas.
Clarissa sentiu-se aliviada e trêmula quando Lena lhe abraçou, e soluçou baixo, as lágrimas voltando a escorrer quando enterrou a face nos cabelos castanhos dela. Sentiu que tinha alguma estabilidade, que não estava tão sozinha e perdida quanto imaginava.
Era tudo o que precisava sentir naquele momento.
« ♡ »
— Eu tomei uma decisão — anunciou Elisa, ficando na ponta dos pés para pegar um livro na prateleira. Asmodeus riu, mas não parecia interessado. — Quero ter de volta meus poderes de querubim. Quero lutar e ser independente — completou, ao pegar o livro que buscava e se virar para ele.
De uma hora para outra, ser a comandante de um exército parecia extremamente atraente, além de ser uma guerreira respeitada. Queria reconquistar e refazer as façanhas que uma vez já fizera, mas se esquecera. Estava certa de que poderia fazer de novo, caso se esforçasse.
— E...? — indagou Asmodeus, levantando as sobrancelhas. A fumaça parecia criar uma auréola ao redor do cabelo loiro, o cheio de cigarro chegava até Elisa e queimava em seu nariz.
— Também quero fazer as pazes com Clarissa, ela estava certa quando disse... O que ela disse mesmo? — Fez uma pausa, franzindo as sobrancelhas como se estivesse tentando se lembrar das palavras da menina. — Ah, é! Que você era nojento e asqueroso, além de um grande babaca — disse, com os olhos brilhantes e determinados focados sobre Asmodeus. Estava apoiado contra uma das estantes, uma figura estranha naquela biblioteca angelical.
— Não pareceu achar isso quando me beijou — respondeu o demônio, dando de ombros. Ele sorriu, dando um passo para frente e se aproximando dela. Elisa segurou os livros contra o peito, como se fossem escudos.
Levando em conta que ele não poderia tocar nos livros sem que os outros querubins soubessem, por causa da energia demoníaca e a proibição de bisbilhotar o conteúdo da biblioteca, os livros eram de fato um modo de mantê-lo afastado.
— Estou focando nessas características para te manter longe — retrucou ela, com uma sobrancelha erguida e os cabelos se incendiando ao seu redor. Parecia uma provocação, um chamado, mas sabia que Elisa estava mais irritada com ele do que qualquer outra coisa.
— Eu avisei que você se arrependeria — comentou ele, dando de ombros. Era ela quem estava apoiada contra a estante agora, perigosamente próxima dele enquanto Asmodeus lhe pressionava com aqueles olhos escuros e profundos.
Quando ele ficava mais próximo, parecia quase jovem demais para estar usando um terno, como um menino querendo se passar por alguém mais adulto, esperando ganhar respeito. Asmodeus certamente não precisava daquele terno quando certamente tinha a aura antiga e sombria lhe rodeando.
— Você sabia, não sabia? Sabia que ela sentiria sua energia em mim — indagou, levantando o rosto para encará-lo. Os lábios dele se curvaram em um sorriso irônico e contido, provocando a ruiva.
— Havia uma possibilidade, percebi que os poderes de Clarissa pareciam estranhos — respondeu, dando de ombros. Elisa franziu as sobrancelhas, desviando o olhar. Se pudesse respirar e ouvir seu coração, certamente estaria sem ar no meio das batidas aceleradas.
Mas agora ele era como um ímã, lhe atraindo para sua órbita e lhe enlouquecendo com a vontade de tocá-lo.
— Meu Deus, você é pior do que eu pensava — suspirou, levantando novamente a face e encontrando os olhos dele. Pensou em se virar, em sair dali, mas essa parte era abafada pela proximidade dele, por seus lábios rosados e bem delineados.
— Não era isso que gostava em mim? — perguntou, ainda naquele tom petulante e cheio de desafios. Elisa ficou na ponta dos pés, inclinando-se para frente e sentindo o cheiro de cigarro que Asmodeus irradiava, a energia calma dele lhe envolvendo como um manto de calor.
— Gosto do seu beijo, não de você — disse, antes de tocar os lábios dele com os seus, sentindo uma pontada de frio e empolgação, os movimentos perfeitos dele a fazendo desejar mais. As mãos dele dançaram por sua nuca, Elisa bateu com mais força contra a estante e se deixou levar.
« ♡ »
Demorou um pouco para se orientar quando acordou, sem encontrar as usuais estantes cheias de livros e sua escrivaninha. Estava na cama de Lena, os lençóis cheiravam a incenso e via o brilho de cristais brilhando por onde olhava.
Lena estava afundada em uma poltrona, tão concentrada em um livro que não percebeu que Clarissa estava acordada.
Ela não queria lhe deixar sozinha, nem Clarissa queria ficar a sós, então Lena lhe levou para seu quarto, para que pudesse descansar. Estava exausta depois de usar tanta energia, de explodir os espelhos e as lamparinas, e também não descansava desde que chegara da dimensão infernal, sempre acordada e no meio de situações estressantes.
Apagara quase automaticamente ao deixar-se cair sobre a cama de Lena, com ela mexendo levemente em seu cabelo e sentada ao seu lado. O quarto dela tinha uma aura revigorante e curativa, mais intensa do que no resto dos lugares que costumava frequentar.
— É ótimo que não precisamos respirar, ou você teria sérios problemas pulmonares com este tanto de incenso — brincou Clarissa, se sentando. Lena mostrou a língua em resposta, mas estava rindo quando deixou o livro de lado e se voltou para Clarissa atenciosamente.
— Se sente melhor? — perguntou, de novo a analisando com aqueles grandes olhos castanhos cheios de preocupação. A loira deu de ombros, percebendo que sentia-se vazia, quase como se houvesse esvaziado os sentimentos quando quebrou as lamparinas e espelhos.
Não tinha muito a dizer.
— Me desculpe por ter jogado tudo em cima de você daquele modo — pediu, lembrando-se de como desabara nos braços dela, de como havia entrado em pânico e deixado Lena lidar com tudo. Não era justo com ela. — Acho que só sinto falta de casa e Elisa era a única pessoa familiar que ainda restava — desabafou, sentindo-se exausta, mesmo tendo acabado de acordar. Lena sorriu e se levantou da poltrona para se aproximar, passando entre os fios de incenso e os esfumaçando.
Logo estava sentada na cama ao seu lado, afastando os cachos loiros da face de Clarissa com certo carinho.
— Não se desculpe pelos seus sentimentos. Reprimir é pior e estou aqui se precisar chorar, gritar ou tentar socar alguém — ofereceu, ainda com um sorriso encorajador. A loira ajeitou-se nas almofadas, encarando os olhos amendoados da menina.
— Só tentar, eu nunca conseguiria ser rápida o suficiente para te acertar — comentou, abrindo um sorriso fraco. Lena assentiu com a cabeça, colocando os cabelos castanhos atrás da orelha e levantando uma sobrancelha.
— Exatamente — concordou, e Clarissa riu. Nunca se sentira desconfortável perto de Lena, mas o silêncio que se seguiu depois a fez se sentir pressionada e ansiosa, sem saber se deveria falar alguma coisa.
— Lena, aquilo que aconteceu na sala de espelhos... — começou, sem coragem para encará-la. Pensava em como Lena parecia a pessoa certa, como ela parecia se importar e lhe amar sinceramente de um modo tão bonito. Clarissa ainda sentia uma bagunça de sentimentos dentro de si, mas tinha certeza de que se importava e a amava da mesma forma. Lena não era Elisa, e estava tudo bem. — Não sei para você, mas para mim não foi só um desvio, algo que aconteceu no calor do momento — confessou, finalmente levantando o rosto. Pela primeira vez, sentiu-se grata por não sentir seu coração saltando e sufocando no peito, como tinha certeza de que estaria sentindo se ele batesse naquele momento.
— Ah, certo, aquilo — suspirou Lena, também com visível hesitação e desconforto. Apesar dos segundos em silêncio, estava sorrindo quando se voltou para Clarissa, e a loira sentiu-se mais calma com sua expressão iluminada. — Foi especial para mim também, mas você ama Elisa e entendo isso. Por isso, preciso que se resolva com ela antes de pensar em mim, certo? — Aquilo foi como um soco no estômago de Clarissa.
Ela estava acendendo um sinal vermelho e sabia os motivos. Estava evitando que Clarissa se magoasse, caso Elisa recuperasse as memórias ou até mesmo dessem um jeito de fazer a pazes e os sentimentos aflorassem. Também evitaria que Lena se magoasse, ficando no meio das duas enquanto Clarissa tentava decifrar seus sentimentos por cada uma.
Parecia muito sensato da parte dela considerar tudo aquilo. Era impossível se decidir sobre Lena enquanto ela e Elisa estavam naquele momento tão tenso e indefinido.
— Aquela não é a Elisa que eu amo — disse, mais uma vez afundando nas almofadas com desânimo. Lena acariciou seus cabelos, ainda com um sorriso compreensivo que acalmava Clarissa, como se pudesse lhe dar todas as respostas.
— Você conheceu várias versões da Lisa e continuou apaixonada por todas elas. Precisa ser honesta com seus sentimentos, Cass — argumentou, enquanto deixava-se cair no colchão ao lado de Clarissa. Ser honesta. Era mais fácil dizer que não amava aquela Elisa do que admitir que ainda se importava e que cada ação dela lhe machucava como se ainda fosse a Elisa que conhecia.
Era mais fácil dizer a si mesma que não a amava do que ficar se magoando por alguém que nunca deixara de amar.
— Odeio quando você tem razão — reclamou, se virando para afundar o rosto contra o travesseiro como uma criança birrenta. Ouviu a risada de Lena, as mãos dela suavemente mexendo em seu cabelo, enrolando-se em seus cachinhos.
Ela tinha razão. Precisava se resolver quanto a Elisa e não era justo que Lena ficasse no meio dessa confusão.
Finalmente saiu do quarto dela decidida a tomar uma decisão, mesmo que se sentisse perdida quanto ao que planejava fazer. Talvez conversar com Elisa novamente, tentar ser aberta quanto aos próprios pensamentos e entender o que se passava entre as duas.
Subiu as escadarias, planejando ir para o cômodo mais familiar e reconfortante que tinha ali, em busca de aliviar um pouco de suas dúvidas internas. Podia chamar Lucas, talvez fosse bom pedir algum conselho para alguém que não estivesse envolvido amorosamente naquilo.
A biblioteca continuava silenciosa e organizada como sempre, só desejava se esconder no meio das imensas prateleiras de livros e se isentar de tudo aquilo, se transportar para um universo menos complicado.
Seus pés eram silenciosos sobre o mármore, parecia literalmente um fantasma flutuando entre os corredores de estantes enquanto tentava achar alguma seção familiar. Talvez seja por isso que os dois não lhe ouviram quando virou a estante e deu de cara com Elisa e Asmodeus, contra uma das estantes.
Ela estava nos braços dele enquanto se beijavam, ele mexia em seus cabelos ruivos como se estivesse brincando com fogo entre os dedos. Seu estômago revirou e a cena a atingiu como uma pancada, deixando-lhe desorientada e atônita por um segundo.
— Impressionante — resmungou, se virando no mesmo momento. Queria sair correndo dali, sumir no meio dos livros e nunca mais ser encontrada. É claro que, logo depois, ouviu o barulho das sandálias de salto que Elisa usava, em um ritmo apressado ao se aproximar.
— Cass... — chamou ela, puxando-lhe pelo pulso. Clarissa se virou e viu os olhos castanhos arregalados da ruiva, a expressão desconcertada e quase arrependida. A loira falou antes que Elisa tivesse chance de se explicar.
— Qual é o seu problema, Elisa? Planejava vir até mim e pedir mais uma chance, fingindo que realmente se importa comigo? Me deixando ainda mais confusa do que já estou? — As palavras pareceram atingir Elisa, fazendo-a recuar dois passos quando Clarissa puxou o próprio braço com força.
— Eu jamais mentiria para você — disse ela, com a voz falhada, os olhos brilhando com o que poderiam ser lágrimas. Ela parecia ser sincera quanto aquilo e Clarissa sentiu um aperto, uma vontade de abraçá-la e dizer que tudo ficaria bem.
— Quanto drama — reclamou Asmodeus, ainda apoiado em uma das estantes e com um novo cigarro nos lábios, soltando nuvens de fumaça que espiralavam e então se desfaziam perto dos livros. Clarissa tensionou as mãos em punhos, furiosa.
— Me desculpe se eu realmente me importo com as pessoas em vez de objetificá-las e usá-las como brinquedos sexuais — retrucou, cada palavra parecendo cuspida. Elisa não se lembrava de tê-la visto tão brava, nem no momento em que Asmodeus apareceu na biblioteca ou quando discutiram perto da piscina natural. — Você não se importa com Elisa, eu me importo. Você é só um imbecil que está se aproveitando dela em um momento confuso — acusou, os olhos se escurecendo de uma maneira sombria e a expressão ficando tão assustadora que fez Elisa teve vontade de recuar mais uma vez. Não soube quando aconteceu, mas sentiu uma brisa fria e uma onda entorpecente se movimentaram no ar. Em questão de segundos, Asmodeus estava na frente de Clarissa.
A loira recuou e bateu contra a estante, percebendo que ele estava ameaçadoramente perto. Clarissa se esforçou para não desviar os olhos dos dele quando as íris se tornaram completamente escuras e sentiu o poder dele lhe pressionar como plumas afiadas.
— Você se acha muito esperta, não é? Sua língua afiada não te deixará ir para muito longe — disse, e Clarissa sentiu uma pontada de dor, como algo adentrando seu peito e espalhando lâminas pelo resto do corpo.
Sentiu-se zonza, mas tentou não se mover no meio do ardor. Olhava fixamente para Asmodeus, tentando não se curvar com as súbitas fisgadas de dor e a escuridão estampada nos olhos dele, que mais pareciam buracos profundos e infinitos.
— Isso foi uma ameaça? Da última vez que o vi, estava querendo uma aliança com os querubins e duvido que a consiga se me atacar, então eu sugiro que baixe sua bola e faça o papel de moço bonzinho — retrucou, algumas palavras saindo pausadas por causa do frio e da dor. Não conseguiria se mover mesmo que quisesse, percebeu. Era como se ele estivesse lhe imobilizando ali, entre as pontadas de dor que surgiam e lhe dilaceravam de dentro para fora. — Aliás, vai fazer o quê? Me matar? Eu não tenho medo de você, Asmodeus. Você é a única pessoa que tem algo a perder aqui — completou, no mesmo tom cuspido e duro. Sentiu os músculos ainda mais pressionados e paralisados pelo peso da energia fria dele, mas não demonstrou a dor e nem o desconforto ao encará-lo, seus olhos cintilavam em fúria e raiva.
Elisa estava pálida e assustada com tudo, Clarissa olhava para Asmodeus, mortalmente parada, mas lhe encarando como se pudesse socá-lo a qualquer momento ou fazer coisa pior. Admirava toda a coragem ela, não havia nenhum resquício de medo ou arrependimento na face dela.
— Está brincando com fogo — advertiu ele, em um tom que fez a ruiva estremecer. Clarissa sentiu a pressão se desfazendo e quase falseou para frente, mas manteve-se firme naquela onda de tontura.
As pontadas de dor haviam sumido e ele finalmente havia recuado, mas ainda tinha os olhos escuros e assustadores.
— Ótimo — disse ela, enquanto se virava para se afastar e deixá-los sozinhos novamente —, pois te garanto que não sou eu quem vai se queimar aqui — completou, virando-se uma última vez antes de sumir entre as estantes e o silêncio recair sobre a biblioteca como um manto pesado e sufocante. Elisa sentia-se sem ar.
Quando ela se virou para encará-los, pouco antes de sumir, seus olhos estavam completamente escuros contra sua pele pálida, assim como os de Asmodeus.
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