
Paixão Por Livros | Capítulo Quatro
As palavras dos integrantes da Conclave ainda giravam em sua mente, martelando como um zumbido insistente quando saiu do salão com Elisa.
— Que significava tudo aquilo? É um tipo de discurso padrão para assustar novatos? — perguntou Clarissa, quando haviam se afastado o suficiente do salão e Elisa sorriu, balançando a cabeça de forma negativa e fazendo os cabelos ruivos reluzirem.
— Eles são como um oráculo, sabem da sua jornada e o que você enfrentará, então eu diria que aquele discurso foi personalizado para você — explicou ela, fazendo Clarissa se calar quando os pensamentos giraram rápido demais ao tentar interpretar aquelas palavras.
Amor e ódio podem te destruir na mesma intensidade.
A dor é um sentimento sublime.
O que diabos aquilo queria dizer? O que é que lhe revelava sobre seu futuro? Deixou que Elisa lhe guiasse pelo corredor e estava imersa nas perguntas que lhe rodeavam a mente. Tinha vontade de voltar para aquele grande salão e despejar todos os questionamentos em sua mente para que a Conclave lhe respondesse.
— Para onde estamos indo? — perguntou, quando percebeu que seguiram reto pelas escadarias de mármore e não desceram os degraus em direção ao quarto de Elisa.
— Seu quarto — disse a ruiva, fazendo Clarissa parar por um segundo, as sobrancelhas levantadas em surpresa.
— Eu tenho um quarto? — indagou, voltando a andar pelos luxuosos corredores de mármore e acelerando o passo para acompanhar Elisa. Seus passos ecoavam ao seguir em frente, o vestido branco ondulava ao seu redor e esvoaçava de forma fantasmagórica enquanto reparava nas portas fechadas em que passavam.
— Claro que tem — riu Elisa, quando adentraram um corredor decorado com vasos elaborados e plantas que subiam as paredes e davam um ar de vivacidade ao local. Clarissa gostou daquilo, gostou do ar puro e do contraste do verde com o mármore branco. — É como se essa dimensão tivesse vida própria, ela vai se expandindo e contraindo de acordo com as necessidades — explicou, quando parou em frente a uma porta e fez sinal para que Clarissa avançasse. Eram portas duplas, brancas e com detalhes prateados.
Clarissa pegou na maçaneta com cuidado, empurrando e deixando que a porta se abrisse. Ficou sem reação com o que viu depois.
Tudo ali tinha uma luz alaranjada ambiente, com detalhes em um roxo escuro. A colcha da cama tinha cor de ametista e as almofadas eram de pelúcia preta, uma grande estante lotada de livros ocupava uma das paredes e ao lado ficava uma escrivaninha com alguns cadernos empilhados e um suporte com várias canetas e lápis.
Havia duas poltronas de camurça da mesma cor da colcha, um arroxeado metálico com almofadas pretas para decorar. O armário tinha portas pretas e percebeu que as luminárias que se acendiam levemente nas paredes eram pintadas de um cinza escurecido, luminárias prateadas que lançavam uma luz alaranjada e suave.
— Uau — murmurou, quando adentrou o quarto e começou a reparar nas coisas. Tinha uma mesinha de cabeceira com uma pilha de livros e sorriu ao perceber que eram seus favoritos, justamente os que escolheria para colocar ao lado da ama.
— Eu sei. É como se fizessem do quarto uma extensão de você — comentou Elisa, ao ver o olhar admirado dela ao olhar em volta. Tudo aquilo parecia perfeito, como se tivesse projetado aquilo tudo de própria mente e escolhido cada textura, cor, livro e móvel ali.
Era simplesmente feito sobre medida, perfeito.
— Eu preciso ir, mas provavelmente alguém vem te guiar. — Elisa sorria enquanto Clarissa girava para ter uma visão inteira do quarto. Abraçou a ruiva rapidamente e sentiu algo desabando dentro de si quando Elisa lhe deixou sozinha e a porta se bateu com um leve ruído quando ela sumiu pelos corredores.
Clarissa deu uma volta pelo cômodo. Era tão grande quanto o quarto de Elisa e a escrivaninha tinha cadernos totalmente novos com canetas coloridas que fizeram seus dedos coçarem para que começasse a preencher as linhas em branco.
Quando voltou-se para a mesinha do lado da cama, reparou que havia um porta-retratos ao lado da pequena pilha de livros. Clarissa avançou lentamente e suas mãos tremiam quando pegou o quadro e fitou a foto, pequenas lágrimas caindo e cintilando no ar como gostas de cristal.
Era uma foto sua e estava sorrindo ao lado de sua mãe. Estavam em uma biblioteca, tinham cabelos praticamente iguais, loiros e encaracolados de uma forma volumosa com os mesmos sorrisos alegres.
Seu pai havia tirado aquela foto, há alguns anos quando estavam viajando. Ele viajava muito a trabalho, se mudava muito e Clarissa o acompanhava com a mãe, sentindo que as bibliotecas eram seus únicos lares quando se mudava para um lugar desconhecido e não tinha ao que se agarrar.
Talvez tivesse pego essa paixão por livros de sua mãe, era ela quem lhe levava para a biblioteca desde criança e lhe ensinava a amar o silêncio, a ter a companhia das letras para espantar qualquer solidão que sentisse quando precisava deixar as pessoas para trás e se mudar. Era como se fosse um templo, uma igreja.
Clarissa viu seu sorriso, os cabelos encaracolados e o olhar fraternal que ela lhe lançava enquanto tinha uma pequena pilha de livros nos braços.
A loira deixou-se cair sobre a cama, afundando no colchão e sentindo tudo dentro de si latejar, o corpo se contrair quando fechou os olhos e abraçou o porta-retratos no meio das lágrimas, encolhendo as pernas no meio das almofadas. Daria tudo para dizê-la que ficaria bem.
« ♡ »
Não soube por quanto tempo ficou ali, encolhida no meio das lágrimas e da sensação sufocante. Havia fechado os olhos, desejando com todas as forças voltar, desejando com todas as forças se materializar por cinco segundos ao lado de sua mãe, mas aquilo não aconteceu e abriu os olhos ainda no quarto, ainda com o bolo na garganta e as lágrimas escorrendo sem parar.
Aquela dimensão era tão mística e mágica que precisava tentar, sentindo o peso da decepção e da mágoa lhe esmagarem por dentro quando percebeu que não poderia voltar, pressionando cada pedaço de si.
Tudo estava silencioso ali, um silêncio pesado e denso que só foi quebrado quando escutou batidas leves na porta. Virou-se na cama, secando as lágrimas e esperando ver Elisa quando a porta se abriu lentamente.
Surpreendeu-se quando sentou-se na cama e uma menina de cabelos castanhos sorriu de forma simpática, os olhos dourados cintilando como chamas. Apressou-se em secar os resquícios de lágrimas nas bochechas e, se ela percebeu que estava chorando, não comentou e manteve o sorriso acolhedor.
— Eu sou Lena, sua guia — apresentou-se, ao ver a expressão confusa de Clarissa e o modo como havia se encolhido na cama. — Estou aqui para te mostrar um pouco da dimensão e sobre o que acontece por aqui. — Clarissa ficou aliviada por ser tirada daquele marasmo, sabia que enlouqueceria caso ficasse ali sem fazer nada. Seguiu Lena pelos corredores iluminados, deixando o quarto para trás e tentando se livrar da vontade de gritar e chorar, da onda sufocante que lhe derrubara antes.
— Percebi pelo seu quarto que você tem afinidade com livros, talvez devamos começar pela biblioteca — disse ela, os sapatos de saltos baixos ecoando pelo piso de mármore. Ela usava um vestido simples, mas com detalhes arroxeados que estampavam e se destacavam no branco com delicadeza. — Você já esteve lá? — indagou, fazendo Clarissa piscar e demorando um pouco para assimilar suas palavras. Estava distraída demais com seus devaneios e agora Lena lhe encarava, esperando uma resposta.
— Já sim, é impressionante — disse, lembrando-se das grandes pinturas no teto e os corredores de estantes. Lena sorriu, assentindo e ela falava de forma tão simpática enquanto avançavam pelos corredores que Clarissa sentia que já a conhecia há tempos, como Elisa.
Lena empurrou as portas da biblioteca, revelando os longos corredores lotados de livros e os tapetes detalhados, o teto em forma de abóboda fazendo com que se sentisse extremamente pequena ao olhar para cima e observar os anjos imponentes erguendo suas espadas.
— Querubins tem funções variadas — explicou Lena, guiando-a entre as estantes com os livros impecavelmente organizados. — Alguns possuem a função de traduzir os livros e decifrar sua energia, trabalhando basicamente em manejar os livros e lidar com os poderes deles. — Aquilo fez com que os olhos de Clarissa brilhassem ao encarar todas aquelas estantes cheias de livros, imaginando-se com eles em mãos, decifrando e decifrando suas palavras e o que elas transmitiam.
Claro que ela devia ter falado sobre o poder de forma bem literal e aquilo lhe assustava, mas...
— Parece perfeito para você — riu Lena, observando o olhar encantado dela. Certamente amaria aquilo, conseguia se imaginar perdida no meio daquelas estantes e fazendo milhares de anotações sobre o que aqueles livros guardavam.
— Você disse que os querubins tinham várias funções... — Clarissa disse, mordendo o lábio de leve ao se voltar para ela com olhos curiosos. — Qual a sua?
— Supervisiono o treino dos novatos e dos ascendentes. Sou responsável pela adaptação das novas pessoas, no geral — sorriu ela, os olhos dourados cintilando. Lena era definitivamente simpática o suficiente para isso. Hesitou por um instante, mas não conseguiu conter a curiosidade quando perguntou de uma vez.
— E a de Elisa?
— Ah, ela comanda o exército — disse e Clarissa não conseguiu conter a expressão embasbacada. Elisa, a garota dramática que conhecera no primeiro ano do ensino médio, Elisa, a garota delicada que amava cantar e tocar piano, cheia de sentimentos, paixões e com um ar adolescente que nunca lhe abandonava, Elisa... a comandante de um exército.
Era por isso que ela sumia por tanto tempo seguido, sempre parecendo ocupada com alguma coisa.
— Uau — ofegou, sem conseguir conter um ar impressionado que fez Lena rir, os cabelos castanhos balançando no ar e refletindo a luz. Aos poucos eram engolidas pelos corredores de livros que se erguiam sobre suas cabeças.
— Definitivamente é um cargo importante — comentou Lena, com um sorriso. Aquela ideia ainda girava na mente de Clarissa e lembrou-se do ar nobre de Elisa, um ar tão poderoso que lhe fazia querer se curvar, assim como fizera diante da Conclave. — Não pareça tão espantada, aquela garota é uma ótima estrategista e consegue se adiantar sobre os demônios de Lúcifer como ninguém. Os querubins não podem intervir diretamente com os anjos e nem falar diretamente com eles sobre as estratégias, afinal, se eles soubessem, os demônios também saberiam. Então Elisa e mais dois querubins comandam as tropas sobre os demônios e tentam conter boa parte, mas não na dimensão dos humanos, eles trabalham diretamente em Umbra. — Clarissa estremeceu com as palavras dela. Lúcifer, demônios, anjos... Elisa havia lhe falado sobre tudo isso quando contou a verdade sobre seu envolvimento com o sobrenatural. Também havia falado sobre Umbra, a dimensão infernal. No penúltimo do ensino médio, depois de uma partida de Ouija, ela e Sara descobriram toda uma dimensão de anjos e demônios e foram envolvidas em uma profecia, Elisa demorara até lhe contar sobre tudo isso.
Foi como acabou se tornando uma querubim, no final.
— Mas ainda há demônios na dimensão humana, certo? — perguntou, franzindo as sobrancelhas. Se lembrava de Elisa falando deles e de encarar os olhos escuros como noite.
— Os arcanjos estão trabalhando para fechar os portais que permitem sua passagem, mas enquanto isso os querubins trabalham em sigilo e tentam contê-los como conseguem — explicou, os saltos baixos ecoando enquanto seguiam em frente. Clarissa viu o corredor se abrir para um salão cheio de mesas, iluminado como todos os outros locais. — O impacto seria muito maior se todos conseguissem atravessar — completou e Clarissa apenas assentiu, ficando em silêncio e sentindo que sobrecarregaria sua mente com tantas informações caso continuasse a questionar.
Finalmente saíram dos corredores cheios de livros e Clarissa viu mesas arredondadas espalhadas por um salão cheio de luminárias, havia suportes com várias canetas e lápis nos centros das mesas de mármore e um lustre de cristal cintilava sobre elas.
Havia outras pessoas ali, todas tinham olhos dourados e pareciam concentradas nos livros, conversando em voz baixa ou fazendo anotações consistentes.
— Há livros de energia demoníaca, outros pertencem aos arcanjos, alguns possuem instruções para rituais destrutivos ou para a libertação de algum demônio, outros falam sobre o poder angelical e rituais capazes de purificar a energia — disse Lena, enquanto Clarissa observava a concentração dos querubins sobre os livros e reparava nas mesas bagunçadas com cadernos, livros e folhas avulsas rabiscadas. Aquilo sim era familiar e lhe fazia se sentir em casa. — Por isso, não é um trabalho tão fácil e exige muito cuidado. Todas as funções aqui tem quase o mesmo grau de importância, você vai perceber. — Aquilo fez com que Clarissa se sentisse tensa, imaginando toda a pressão. Uma tradução errada ou uma falta de cuidado, poderia liberar uma criatura demoníaca ao ser distraída com as palavras do livro.
Imaginou-se sentada ali, como querubim. A ideia de estudar aqueles livros poderosos lhe agradava e animava, apesar de lhe deixar apavorada ao mesmo tempo.
— Vem, vou te mostrar o salão de treinamento. — Lena apoiou a mão em seu braço e logo estavam atravessando a biblioteca novamente, deixou-se ser engolida pelas paredes de livros, pouco antes de voltarem para o corredor novamente.
Não precisaram andar muito, o salão ficava no final do corredor da biblioteca e também tinha portas duplas pintadas de branco com detalhes dourados. Lena as empurrou e Clarissa viu um grande salão iluminado se abrir, também com um teto abobadado e desta vez o chão era forrado com tatames azuis.
Era o salão mais cheio que vira desde que chegara ali e ouviu espadas retinindo, barulhos de golpes e luta. Havia diversas pessoas treinando ali, Clarissa percebeu que a maioria treinava com as criaturas assustadoras que vira quando Lucas lhe mostrou o salão das espadas.
Via as criaturas de fumaça escura desviarem dos golpes e revidar com velocidade e foi quando seu olhar recaiu sobre Lucas, manejando uma espada e arduamente lutando contra a criatura enquanto sua lâmina deslizava e cortava o ar.
Foi só quando errou o golpe e sua espada caiu de suas mãos que ele percebeu Clarissa, parada ao lado de Lena.
— Ela não precisava presenciar isso. — Lucas fez uma careta quando encarou Lena, apontando levemente para Clarissa. Lena sorriu e estava claro que eles se conheciam quando se cumprimentaram, de um modo informal demais para serem recém-conhecidos.
— Eu até que achei bem impressionante — comentou Clarissa, sem conseguir conter a risada ao baixar o olhar para a espada dele caída no chão. Lena levantou as sobrancelhas e caminhou até um suporte de madeira, onde outras espadas repousavam.
Ela e Lucas trocaram olhares, ele revirou os olhos quando abaixou-se para pegar a própria espada.
— Você está segurando do modo errado e se inclinando demais — disse Lena, ao se aproximar dele. Clarissa deu alguns passos para trás quando entendeu o que estava para acontecer e lhes deu espaço, quase no mesmo momento em que as lâminas retiniram no ar.
Viu a espada de Lucas cortar o ar e Lena foi mais rápida na defesa, as lâminas chocaram-se com força e retiniram alto. Ele continuou tentando atacá-la e foi tudo muito rápido, Lena começou avançar com rapidez e logo Lucas passou a apenas se defender.
Ela era impressionante lutando, seu pulso se movia com agilidade e tinha uma postura elegante que nunca se abalava, mesmo quando Lucas atacava. Clarissa ficou hipnotizada e com o olhar fixo em Lena, nos movimentos planejados e fatais que ela fazia.
Foram poucos golpes de Lena, mas todos eles foram incisivos e finalmente ela girou a espada no ar, fazendo com que a lâmina de Lucas caísse novamente no chão e ele levantasse as mãos em forma de rendição.
Clarissa não conseguiu conter a risada, ouvindo os barulhos de luta e sentindo a movimentação do salão por trás de suas costas.
— Tudo bem, eu admito. Isso — apontou para a espada na mão de Lena, que sorria de forma vitoriosa — é impressionante.
« ♡ »
Passou um bom tempo com Lena e Lucas, eles lhe mostraram um salão de reuniões impressionantemente grande e uma sala de armas. Ficou surpresa ao saber que existiam querubins com funções diplomáticas, lidando com anjos e demônios, também existiam querubins que se encarregavam de proteger pessoas na terra e ajudá-las.
Era uma sociedade toda organizada e ficava impressionada com todas as questões que eles lidavam ali. Anjos, demônios, dimensões alternativas, guerra...
Voltou ao seu quarto totalmente zonza, tentando processar as informações. Aprendera muito sobre aquela dimensão desde que chegara ali e se impressionava cada vez mais com a grandiosidade de tudo aquilo, de como essa sociedade secreta existia como uma barreira protetora e invisível que protegia a dimensão humana.
Estava sentada na cama, imersa na releitura de um dos livros que escolhera depois de revirar a estante, quando ouviu leves batidas na porta. Desta vez era realmente Elisa, sorrindo e com os cabelos ruivos presos e um vestido branco leve com sapatilha, o que surpreendeu Clarissa e a fez sorrir.
Nada de saltos altos ou longos vestidos elegantes, apenas um vestido simples que deixava boa parte de seu corpo à mostra e os cabelos presos em um coque que lhe dava um ar de elegância.
— Se sua mente não estiver explodindo depois de ouvir Lena falar um dia inteiro sobre os querubins, então você fez algo errado — disse a ruiva, com sobrancelhas levantadas. Clarissa não conseguiu conter a risada, assentindo enquanto Elisa adentrava o quarto.
— Na verdade, tenho várias perguntas. — Deixando o livro de lado, Clarissa voltou-se para a ruiva com um sorriso. O quarto estava iluminado, a colcha arroxeada estava bagunçada em cima da cama e a loira fez um sinal para que Elisa se juntasse a ela, logo as duas estavam sentadas lado a lado na cama.
— Estou aqui para isso — sorriu Elisa, os olhos flamejando.
— O que acontece quando nos cortamos? Ou machucamos? — perguntou, curiosa. Lembrava-se de Lucas e Lena lutando de espadas, mas não foram atingidos pela lâmina para ter uma ideia do que aconteceria em seguida.
Elisa pareceu pensativa por alguns segundos e então olhou em volta, procurando algo. Seus olhos pousaram sobre o porta-retratos na mesinha de cabeceira e ela o pegou com cuidado, desmontando o suporte de madeira e então pegando a proteção de vidro.
Clarissa não conseguiu evitar ficar tensa quando ela pressionou a ponta afiada e fina do vidro contra a palma da mão, arrastando-o para que abrisse um corte em sua pele. Esperou sangue, um corte aberto em sua pele pálida e apenas viu quando uma fenda pareceu abrir-se em sua pele, uma fenda luminosa, como se ela fosse feita de luz e ela vazasse sobre o corte na palma da mão.
A loira observou, embasbacada, a luz dourada que saía do corte iluminar o rosto de Elisa e então se fechar, como se realmente estivesse cicatrizando em segundos. Observou a mão dela, totalmente normal quando o brilho dourado se apagou e Clarissa continuava fitando sua pele, hipnotizada.
— Objetos comuns não nos ferem, precisa ter energia demoníaca ou angelical — explicou, sorrindo ao se virar para reencaixar o porta-retratos desmontado. Clarissa mordeu o lábio inferior enquanto pensava, e deixou a mente girar por tudo o que vira desde que chegara.
Corredores de mármore, salões luxuosos, biblioteca, a sala que flutuava no céu e nada de uma porta que oferecesse saída daquilo, nada que mostrasse a saída para uma cidade, ruas ou algo assim. Não vira janelas ali, apesar de ser tudo tão gigante, iluminado e ventilado que não se sentia claustrofóbica.
— Existe algo fora desses corredores de mármore e dos grandes salões?
— Não, eu diria que os corredores de mármore são infinitos, são eles que compõem Onyx — riu ela, ajeitando-se na cama. As duas estavam descalças, praticamente deitadas na cama de um modo que lhe deixava nostálgica. Lembrava-se de deitar-se na cama com Elisa para assistir algum filme ou apenas para comer pizza e conversar. — É como se a dimensão tivesse vida própria, como para criar seu quarto assim que você chegou. Mas existem salas como a que te mostrei ontem, dando vista para o céu, outras imitam jardins e bosques e são mais bonitas do que qualquer construção humana — completou e Clarissa não ousou duvidar, não depois de confirmar que tudo o que vira ali era mais esplendoroso do que qualquer arquitetura mundana.
Perguntou-se quando conheceria esses lugares e subitamente ficou com medo de se perder no meio de todos aqueles corredores.
— Quando acordei no hospital, eu não conseguia sentir nenhum cheiro ou textura, como se meus sentidos estivessem adormecidos. Por que consigo sentir aqui? — indagou, quando percebeu que conseguia sentir o lençol macio sob sua mão, a textura do papel do livro que lia e da pelúcia preta das almofadas.
— Porque aqui as coisas são feitas de uma energia mais refinada que é próxima da sua, diferente da energia mais densa da dimensão humana — respondeu, e Clarissa baixou o olhar para a própria pele. Ela tinha um leve brilho esbranquiçado contornando-a, tremeluzindo como uma televisão com transmissão falha. Energia. — Mas você está em uma forma humana, com os sentidos humanos e os sentimentos também. Conseguiria sentir as coisas por lá se aprimorasse seus dons de fantasma — disse a ruiva, e Clarissa tentou não focar na palavra fantasma e no quanto aquilo a lembrava de que as coisas haviam mudado. Era fácil se esquecer de que aquilo era permanente, de que não voltaria mais para sua família, seu lar. A ideia ainda não parecia fixa em sua mente, como se apenas estivesse de férias em outra dimensão.
— Mais uma coisa — Clarissa virou-se na cama para encará-la, seus lábios curvando-se um sorriso quando conteve uma risada. — Eu posso voar? — Isso fez Elisa rir e Clarissa não conseguiu conter o riso também. Era muito bom ouvir a risada dela, ver como seus olhos brilhavam e como ela parecia bem depois de tudo o que acontecera.
Lembrava-se de quando voltou para San Francisco e reataram o namoro, tempo depois dos pais dela terem morrido. Ela parecia outra pessoa, apagada, retraída e muito diferente da Elisa em chamas que via em sua frente.
— Não, não sem asas. Mesmo que você consiga modificar sua aparência para ter asas, o que usaria muita energia por não fazer parte da anatomia, elas não funcionariam em um corpo humano — explicou e Clarissa havia deixado o corpo cair sobre a cama, fitando-a enquanto falava. — Mas se você pulasse de um prédio de trinta andares, cairia em pé como se pulasse apenas alguns centímetros — disse, quando Clarissa fingiu um olhar decepcionado e nenhuma das duas conseguiu conter a risada. E então a loira se deu conta dos mitos sobre querubins, das várias asas e observou com mais atenção a aura dourada que lhe envolvia, como uma nuvem de poder que vibrava ao redor de sua pele.
— Você tem asas? — perguntou, os olhos meio que se arregalando. Elisa apenas sorriu e deixou que os olhos flamejassem em um brilho que parecia provocação. Tudo aconteceu em poucos segundos: As luzes do quarto foram ofuscadas por uma luz mais intensa que lhe fez piscar, foi só quando conseguiu focar a visão que arregalou os olhos.
Clarissa sentou-se imediatamente, empurrando-se com os pés para trás. Asas brancas e imponentes se erguiam das costas que Elisa, que agora lhe encarava com as sobrancelhas erguidas. Tinham plumas brancas afiadas, como se pudessem cortar o ar, ofuscavam tudo ao seu redor com seu brilho dourado.
Piscou duas vezes para ter certeza do que estava vendo e com os olhos arregalados fixos nas asas esculturais. Tão rápido quanto surgiram, elas pareceram gradualmente desaparecer ao mesclar-se no ar e o brilho se apagando lentamente quando as plumas sumiram e apenas Elisa permaneceu sentada na cama, sem asas.
A ruiva lhe fitou em busca de uma reação, mas Clarissa apenas ficou parada enquanto tentava se lembrar de cada detalhe. A imagem das asas exuberantes permaneciam brilhando em sua mente, como uma tatuagem e a loira tinha um olhar congelado em uma expressão de choque e surpresa.
Quando Clarissa piscou, apenas sorriu de leve ao sair daquele estado de torpor.
— Todos os querubins têm? — indagou, impressionada e Elisa assentiu com cabeça.
Clarissa inclinou-se um pouco e deixou que a mão roçasse o cabelo preso de Elisa, puxando com delicadeza a presilha que lhe prendia em um coque e deixando que as mechas ruivas caíssem sobre seus ombros. Por um segundo, ficaram próximas o bastante para que pudesse ver cada lapso de fogo nos olhos dela, para que pudesse ver as mechas caírem ao seu redor, reluzindo em um dourado magnífico e conseguir decorar o contorno de seus lábios rosados.
— Fica melhor assim — disse Clarissa, se afastando com um sorriso. A ruiva apenas riu e balançou os cabelos para que eles se ajeitassem, deixando as mechas ondularem em rios avermelhados que se moviam ao seu redor.
Clarissa deixou-se cair sobre a cama com um suspiro fraco e Elisa logo deitou-se ao seu lado, as mechas ruivas e os cachinhos curtos de Clarissa se misturando na fronha do travesseiro em uma tempestade de cores.
— Destino existe? — perguntou a loira, depois de alguns segundos de silêncio. Elisa ficou em silêncio por alguns segundos, o olhar tão distante quanto o seu enquanto parecia escolher as palavras para responder.
— Não sei te responder isso, mas, se existe, então não podemos interferir nele — disse Elisa, por fim. Clarissa se revirou dentre as almofadas para encará-la. — Eu tentei te curar, mas querubins não podem interferir em quem já possui destino certo. Do mesmo jeito, não conseguiria te tirar do coma e nem desfazer a fratura na coluna, era incerto se você acordaria. — Com isso, a loira deixou-se afundar novamente no colchão, abraçando uma das almofadas de pelúcia contra o peito. Mais uma onda de silêncio, que pareceu mais reconfortante do que estranha.
— Parece que eu precisava estar aqui, então — murmurou, deixando o olhar recair sobre Elisa e as longas mechas de cabelo ruivo, espalhando-se pela colcha roxa como rios de fogo. A ruiva sorriu, deslizando a mão até a de Clarissa e as duas entrelaçaram os dedos, como em um pacto ou promessa silenciosa.
— É bom te ter aqui. — Aquilo fez a loira sorrir, sentindo filetes de energia deslizarem para sua pele nos pontos onde sua mão encontrava a de Elisa. Estava certa desde o início em escolher ficar ao lado dela, afinal, sentia-se segura com a ruiva ali.
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