Olhos Dourados | Capítulo Vinte e Sete
— Uma cachoeira? Você jura? — Lucas parecia furioso e Kenan o seguia pelo corredor, acelerando os passos para acompanhá-lo. Os cachos curtos balançavam no ar, ele nem ao menos olhava para trás para ver se Kenan estava o acompanhando. — Eu literalmente me arrisquei pelos querubins, nem mesmo concluí o treinamento e enfrentei os querubins invocados de Lynn, fechei um portal demoníaco praticamente sozinho e ajudei a lidar com a marca de Elisa. Não preciso disso, não preciso ficar passando por todos os malditos testes para provar que sou capaz e, ainda assim, não sou um querubim — completou, as palavras firmes destacando toda a fúria e irritação que sentia. Lucas passava tão rápido que as velas tremeluziam, as sombras dançavam nas paredes e também em seu rosto tenso, bem delineado.
— Lucas, só... pare de... — pediu Kenan, mas Lucas o interrompeu antes que pudesse concluir, quando finalmente estavam chegando ao corredor que levava às escadas do salão de mármore principal, onde já podia sentir o cheio de vegetação e ver o reflexo do lago artificial entre as folhas verdes.
— Eu dei duro para chegar até aqui, para deixar o passado para trás e não preciso ficar provando isso — retrucou, ainda mais irritado. Tudo estava silencioso enquanto desciam os degraus, podia ouvir a voz dele ecoando no vazio e se perdendo nos corredores, o teto transbordando luminosidade e se abrindo para uma imensidão vazia que se expandia sobre toda a estrutura de vidro que delineava a abóbada. — Aquela cachoeira foi literalmente meu último lapso de paciência, estou fora! Se ainda não sou um querubim, então talvez eu simplesmente deva seguir meu caminho, mas não vou continuar a brincadeira de provas e testes como se eu fosse algum tipo de experimento! É ridículo, desnecessário e estou exausto! Passei por tudo o que tinha de passar, não vou ficar me destruindo em nome da Conclave! — Continuava andando enquanto falavam, Kenan estava de braços cruzados e acelerou o passo para se colocar na frente dele, impedindo sua passagem quando finalmente saíram das escadas. Pararam em frente ao lago artificial, a vegetação roçando na pele dos dois e enrolando-se pelas escadarias, subindo enroscada pelo corrimão que servia de grade de proteção.
— Não, não vai, Lucas. Foi o suficiente — disse ele, com seriedade. Lucas pressionou a mandíbula, levantando uma sobrancelha com desdém, mas sem esconder a irritação. Parecia outra pessoa, todo aquele estado de calmaria e otimismo que ele geralmente mostrava havia desaparecido sobre toda a frustração.
— Agora está do meu lado? Decido desistir e você me apoia? — questionou, com uma risada amarga e apoiou a mão sobre o corrimão úmido, amassando algumas folhas verdes e deixando que outras roçassem em seu braço em um toque suave que parecia de consolação.
— Concordo plenamente, você provou que é capaz, passou pelo que tinha de passar — repetiu ele, no mesmo tom calmo que Lucas odiava. Kenan sempre reagia assim a qualquer reclamação sua e odiava que ele simplesmente permanecesse calmo. Queria que ele gritasse também, que rebatesse, que fizesse qualquer coisa que lhe permitisse extravasar os sentimentos acumulados.
— E ainda não me fez querubim — murmurou, as mãos fechadas em punhos. Não estava entendendo Kenan, aonde ele queria chegar com aquela calma e concordando com cada palavra. Podia ver os olhos dourados dele brilhando com certa ironia, os lábios rosados curvados com um sorriso enigmático. — Você realmente está admitindo que o processo é inútil? Que cheguei até aqui por nada e... — começou, mas ele não lhe deu tempo de responder, deu um passo a frente com as sobrancelhas arqueadas. Diferente das outras vezes, as sobrancelhas arqueadas não exibiam desafio, mas uma incredulidade nítida, como se Lucas tivesse falado alguma loucura ou alguma bobagem.
— Meu Deus, você pode calar a boca por um segundo? — indagou, de forma impaciente, mas estava rindo e isso o fez franzir as sobrancelhas, confuso. Estaria irritado se não estivesse simplesmente tão confuso. Do que ele estava rindo, afinal? Estava irritado e estressado, ele não podia simplesmente rir disso.
Mas a risada dele lhe distraiu por um momento, os lábios rosados e curvados chamaram sua atenção. Levantou os olhos, esperando que ele não tivesse percebido que estava encarando seus lábios e calado por tempo demais em um silêncio que, por algum motivo, não foi constrangedor.
A irritação parecia ter escorrido como areia em suas mãos, deixando-o com um sentimento de gatinho amedrontado.
— Não, eu... — A proximidade com Kenan lhe tiraria o fôlego se precisasse respirar e fez com que a voz morresse na garganta do mesmo jeito. Todo aquele sentimento de nervosismo e espanto também morreu quando Kenan riu baixo e Lucas revirou os olhos, mas também sorria. Eles estavam próximos e gostava disso.
Quando se inclinou, Kenan não recuou e foi preciso se aproximar alguns poucos centímetros para que seus lábios tocassem os dele, alguns segundos para ele lhe puxasse mais para frente e Lucas o envolvesse com os braços, trazendo-o para si e se apoiando no corrimão enquanto o beijava. Era como se o espaço não existisse entre os dois, moviam-se lentamente, mas com tanta voracidade que podia sentir as energias se misturando, pulsando juntas em um encaixe quase perfeito.
Para alguém que não precisava respirar, aquilo sim era um beijo de tirar o fôlego.
Sentia-se atordoado quando se separaram, como se ainda tivesse muito dele dentro de si, a energia pairando sobre sua pele como perfume. Desviou o olhar, sentindo tudo voltar ao normal, a energia dele se dissipando quando encarou a água fria ondular no lago artificial.
Quando se voltou para Kenan, ele tirava a adaga do cinto e a lâmina dourada cintilava como raios de sol. Franziu as sobrancelhas, confuso e Kenan lhe ofereceu a adaga, Lucas viu sua imagem distorcida refletida na lâmina límpida e afiada, hesitando em pegá-la.
— Olhe. — E lhe entregou a lâmina, erguendo-a até que Lucas pudesse seu próprio rosto, fixando-a na altura dos olhos e finalmente entendeu: queria que o metal dourado servisse como espelho. Os olhos. Eles brilhavam em dourado, tão dourado que quase se mesclava e sumia na lâmina, se destacando contra a pele negra como dois pontos de ouro puro brilhando como o sol.
Se apoiou novamente no corrimão, quase deixando a adaga cair.
— Consegui — murmurou, sem conseguir distinguir se seu tom soara chocado ou vazio. Levantou a adaga novamente, encarando os olhos brilhantes que sempre vira em Kenan, Elisa e em todos os outros. Era estranho e ao mesmo tempo empolgante.
— Conseguiu. Saiu daquela cachoeira intacto, não é? Agiu com eficácia, pensou com clareza em uma situação emocional e intensa... Agiu como um querubim, provou que consegue lutar sob todas as circunstâncias — disse Kenan, sorrindo e Lucas riu baixo, com leveza e certo humor. Não o respondeu, o puxou para si novamente. A adaga caiu no chão quando se beijaram, nem mesmo o ruído fez com que se afastassem e Lucas continuava pressionado contra o corrimão, envolvido nos braços de Kenan e sentindo a pressão de seus lábios, a nuvem inebriante de sua energia.
Poderia ficar ali por horas e horas e estava quase sugerindo que fossem para outro lugar, mas foram interrompidos antes. O ar ondulou de maneira estranha, uma luminosidade excessiva fez com que Lucas e Kenan se separassem, confusos, e olhassem para o salão.
Havia dois focos de luz, como duas formas se firmando e girando no ar, duas estrelas perdidas e fora do lugar. Pareciam dois círculos, duas elipses ofuscantes dançando e flutuando no meio do salão, brilhando cada vez mais forte.
Kenan e Lucas trocaram olhares, mas não se moveram. Não parecia energia demoníaca, não pela luz e pela pureza com a qual os portais pulsavam, emanando a luz como dois sóis. Quando finalmente a luz cessou e se dissolveu, misturando-se ao ar e à luz do ambiente em um degradê suave, viram duas silhuetas no chão de mármore.
— Lisa? — Kenan foi o primeiro a correr, e Lucas, que estava focando no outro portal, correu na direção contrária quando viu Clarissa encolhida, deitada no chão como uma boneca de pano jogada de qualquer forma. Caiu de joelhos ao lado da loira inconsciente e percebeu que ela estava encharcada, encolhida em um vestido preto e curto que não se parecia com ela.
Mordeu o lábio inferior, pegando seu pulso e deixando sua energia fluir, o calor a envolvendo. Sentia muito mais o fluxo agora, podia sentir o calor correndo nas veias e a aura de poder se formando ao redor da loira. Foi por isso que não se surpreendeu quando abriu os olhos e percebeu que ela estava completamente seca e com uma aparência melhor e menos fragilizada, já que sua energia a curava lentamente.
Se voltou para Kenan, do outro lado do salão e Elisa também estava encharcada, os cabelos ruivos grudados em mechas grossas contra as bochechas, as roupas coladas no corpo. Quando Kenan tentou se aproximar, ela recuou, assustada e o encarando como se fosse um completo estranho tentando lhe segurar.
Quando ela ergueu os olhos grandes e arregalados, Lucas sentiu tudo parar por um segundo, os músculos se tensionarem. Estavam castanhos, tão humanos quanto os de Clarissa ou quanto os seus eram antes de se tornar querubim. Toda aquela aura dourada havia se dissolvido, desaparecido. Ela parecia somente humana. Humana, assustada e totalmente perdida.
— Elisa, que você fez? — Kenan suspirou, tenso. A ruiva apenas gaguejou.
« ♡ »
Era tudo familiar quando abriu os olhos. Viu a estante organizada, a escrivaninha cheia de cadernos e papéis espalhados, como se houvesse acabado de sair dali, e a mesinha de cabeceira com uma pilha de livros que ainda não havia acabado de ler.
Era familiar e confortável, as almofadas de veludo preto sob as quais estava afundada também ofereciam calma e proteção. Lentamente, tentou se levantar e viu tudo girar, duas mãos a deitaram novamente contra o colchão e lhe ajudaram a se ajeitar entre as almofadas, fazendo-lhe se sentir melhor.
Piscou duas vezes e se virou, procurando a pessoa que lhe ajudara. Arregalou os olhos quando viu Lena sorrindo, os cabelos castanhos bagunçados como sempre e a mesma energia no sorriso acolhedor.
— Como você se sente? — indagou e Clarissa se sentia perplexa demais para responder, em um misto de confusão e surpresa.
— Eu... — começou a murmurar, mas não completou e Lena revirou os olhos, sentando-se ao seu lado na cama. Os lençóis estavam bagunçados, Clarissa estava coberta por um deles e vestia roupas desconfortáveis, algo colado no corpo e justo demais, apertando-lhe.
— Te explico melhor depois, estou bem — riu Lena, e a loira riu baixo também, finalmente se sentindo aliviada e feliz por tê-la ali. Era bom ouvir sua voz e vê-la sorrindo novamente, sentira falta disso e toda a confusão fora espantada pela sensação boa de sua presença.
Percebeu, com um momento de espanto, que os olhos dela estavam castanhos e estava prestes a perguntar, mas a porta se abriu antes disso. Quase suspirou novamente de alívio quando viu Lucas, e Clarissa precisou tranquilizar os dois dizendo que estava bem.
Lentamente, se lembrou de Lynn, do portal e então... Havia um espaço embaçado em suas lembranças que forçou para conseguir encontrar alguma coisa nítida, mas só lembrava-se de borrões, cheiro de álcool e de cigarro que pareciam impregnados em sua pele.
O que havia acontecido nesse tempo? Tudo estava tão... borrado e confuso, como uma pintura manchada antes mesmo de secar, com as cores misturadas e contornos apagados.
— Não me lembro de muita coisa e... — começou, mas se interrompeu no meio ao perceber que havia algo diferente em Lucas, parecia irradiar uma luz diferente e pulsar mais forte, como um... — Ai, meu Deus! Você é um querubim! — Pulou tão rápido da cama que se arrependeu, mas havia o abraçado e se jogado nos braços dele antes que pudesse sentir a onda de tontura que a atingiu depois. Ele riu quando a abraçou, os dois praticamente giraram no ar. — Isso é incrível! — praticamente gritou, quando se afastaram um pouco sob os olhos arregalados da loira. Lucas precisou a interromper quando Clarissa começou a disparar um monte de perguntas, claramente elétrica demais e ele colocou as mãos sobre seus ombros, sentando-a na cama.
— Cass, calma, temos coisas mais importante para resolver — disse e Clarissa tensionou os lábios, assentindo. Ele tinha razão e logo o sentimento de felicidade foi substituído por preocupação. Só agora havia parado para notar a ausência de Elisa e nem ao menos sabia onde Kenan estava. Se os dois não estavam ali, provavelmente estavam cuidando de algum problema. — Você está bem? Lembra-se do que aconteceu quando estava lá? — questionou, o que a fez estremecer. Sentia as cenas confusas se formando em sua mente, memórias enevoadas e estranhas. Música alta, cheiro de álcool e cigarro, mãos a tocando... Tudo isso em uma cacofonia misturada, como se estivesse bêbada demais para se lembrar os acontecimentos em ordem cronológica.
Aquilo fez com que se encolhesse, fechando os olhos por alguns segundos. Não havia conseguido se lembrar com tanta eficácia até agora e queria parar, queria afastar aquele sentimento. Só conseguia se lembrar da música e dos cheiros de substâncias quando acordou, mas agora as coisas pareciam se desenrolar e Clarissa sentia um nó na garganta.
— Eu... É como se fosse um sonho, me sentia drogada ou algo assim. Me lembro de alguns lapsos, algumas cenas que não parecem reais... — começou, mas não conseguiu continuar. Estava falando a verdade, apesar de não querer descrever as cenas borradas que giravam em sua mente confusa. Lena e Lucas troaram olhares preocupados, mas não disseram nada. — Acho que me lembrarei com mais clareza com o tempo. Onde está Lisa? Ela está bem? — perguntou, colocando-se de pé e, desta vez, nenhuma onda de tontura a atrapalhou. Definitivamente sentia-se melhor. Viu o próprio reflexo no espelho fixado na porta do guarda-roupas e percebeu que usava um vestido preto e curto, delineando seu corpo e com bojos grandes demais para seus seios pequenos. Parecia estranho, nunca usaria uma roupa tão pequena e justa, achava extremamente desconfortável. — Meu Deus, eu até pareço hétero — reclamou, esperando que a brincadeira amenizasse sua reação horrorizada. Sentia-se exposta demais, o vestido exibia muito de sua pele e estava estranho em seu corpo, como se fosse uma criança usando um vestido muito sexualizado para sua idade.
— Você definitivamente continua mesma — riu Lucas, quando ela abriu a porta para pegar alguma roupa mais confortável e menos... expositiva. — E Lisa está na biblioteca com Kenan. Ela está... bem. Podemos vê-la agora, mas você precisa saber de algo antes. — Clarissa se voltou para ele, as sobrancelhas franzidas. Não havia gostado nada da hesitação dele ao dizer que Elisa estava bem, foi assim que percebeu que algo estava definitivamente errado, muito errado.
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