Sem atuação
João
Os braços dela me apertando e o seu rosto contra as minhas costas, era uma sensação difícil de explicar. Nunca, em todos esses anos, desde que ela sumiu terminando tudo por telefone, eu imaginei que nosso reencontro a sós, seria assim tão calmo. Imaginei-me brigando com ela e falando tudo que eu senti desde quando ela me abandonou.
Mariana me arruinou! Me arruinou para outras mulheres e me arruinou para o amor. Depois dela eu nunca mais consegui me envolver, nunca mais consegui ser eu mesmo e nunca mais fui feliz por completo. E essa calmaria toda entre nós estava mais parecendo um teatro. Estávamos atuando e fingindo estar tudo bem.
Estacionei a moto em frente à Angels, ela desceu e eu também desci. Mariana tirou o capacete e colocou sobre o banco da moto. Era segunda feira e a balada não abria, então estava tudo calmo e vazio por ali, a não ser pelo segurança que estava de plantão, tomando conta de tudo. Segui em silêncio até a entrada e Mariana me acompanhou também em silêncio.
— Tudo bom, Emerson? Vim pegar um capacete e já estou de saída. — falei quando encontrei com o segurança, ele me cumprimentou, assentiu nos deixando a sós e entramos na Angels.
— Você conhece o dono? — Mariana me perguntou.
Ri.
— Eu sou o dono.
Ela me olhou admirada.
— Você é dono de uma casa noturna?
— De duas. Essa é a filial. A Matriz fica em outra cidade. Somos em quatro donos. Eu e mais três amigos.
Eu estava me sentindo estranho e com raiva. O toque dela em mim, no pequeno percurso que fizemos próximos um do outro, me deixou irritado. Não queria sentir o que eu estava sentindo, eu queria sentir raiva. Era raiva que eu imaginei sentir todos esses anos em que eu pensava nela. E essa calmaria estava me irritando.
— Nunca imaginei que você seria empresário.
Ri mais uma vez, só que em deboche.
— Imaginou que por eu ser preto e classe média eu fosse ser o quê?
— Não é isso... é que...
— Sim, sou empresário e tenho diploma de Direito. — Falei mais ríspido do que deveria e me arrependi em seguida, quando olhei para ela e vi seus olhos arregalados.
— Desculpa. — ela pareceu chateada, mas me olhou com um olhar transmitindo ira e continuou: — é que na verdade, achei que talvez você seria dono de uma loja de lingerie. — tinha ironia na sua voz e eu não entendi o que ela quis dizer.
— Ham? Do que você está falando?
— Nada. — respondeu nitidamente irritada.
Fiquei olhando para ela a espera de uma explicação para o comentário, mas ela não o fez e também nem me olhava.
— Vou pegar o capacete.
Virei-me para sair, mas ela falou:
— Não precisa, só me empresta o telefone que eu peço ajuda para alguém.
Fitei-a irritado. Será que ela me achava tão insignificante assim, que não conseguia ficar por muito tempo perto de mim?
— Fique a vontade. — apontei para o telefone que ficava atrás do balcão — Vai ligar para pedir ajuda ao seu noivo rico? Talvez ele mande um helicóptero te buscar. — Perguntei irônico.
Ela me olhou e apenas ergueu uma sobrancelha. Eu a conhecia, sabia que aquele gesto era de muita raiva, a minha pergunta a havia deixado brava.
— Sim, vou pedir ajuda, quem sabe assim não sobre mais tempo para você correr atrás da melhor amiga de alguém?
Mais uma vez não entendi o que ela quis dizer e a olhei como se fosse louca.
— Do que você está falando?
— Para de fingir que não sabe do que eu estou falando.
— Eu não estou fingindo!
— Eu sei de tudo.
— Tudo o quê?
— Tudo. — ela gritou. — O quanto eu fui feita de idiota por você e pela minha melhor amiga.
Eu não estava entendendo o porquê ela estava tão alterada e por que parecia tão brava.
— Eu realmente não sei do que você está falando. Eu fui a vítima na nossa história.
— Vítima? Você?
Ela riu, mas começou a chorar, abriu a bolsa, a carteira e tirou uma foto.
— Como você vai negar isso?
Peguei a foto da mão dela e quando olhei, a imagem ali em minhas mãos, me mostrava duas pessoas se beijando e as duas pessoas eram... Como pode?
Era eu beijando a Isabela?
Ela de lado e eu também, meu rosto cobria o dela. Mas isso é impossível! Eu nunca beijaria a Isa. Éramos como irmãos.
Olhando a foto com mais atenção acho que estávamos nos abraçando ou era montagem, mas definitivamente eu não estava beijando a Isa. Sorri.
— Isso é montagem, Mariana!
— Não tem nada de montagem nisso.
— Tem sim! — Eu não estava entendendo.
— Para de se fazer de inocente! — ela gritou — Por favor... Para de fingir! — Mariana estava chorando como se sentisse dor. — João, enquanto eu estava lá no hospital, sofrendo por perder nosso filho e você não ter ido me visitar nem um único dia, você e a Isabela estavam me traindo. Desde quando? Desde quando vocês me faziam de idiota?
Ela chorava tanto, que eu estava ficando desesperado e então fiz o que eu podia para tentar acalmá-la, eu a abracei. Ela relutou, me empurrou, mas eu não desisti e abracei mesmo contra a sua vontade. Até que ela se deu por vencida e deixou que eu a abraçasse enquanto soluçava no meu peito por minutos.
Eu estava tão assustado de vê-la assim e ainda não estava entendendo tudo que tinha acontecido. Aquilo era uma montagem, não tinha outra explicação. Foi então percebi que ela estava parando de chorar, falei baixo:
— Eu nunca te traí. Fui te visitar todos os dias, mas sua mãe não me deixava entrar no hospital, nem falar com o Miguel e nem te ver de maneira nenhuma. Fiquei esperando você melhorar, me ligar e isso nunca aconteceu. Tentei invadir o hospital, mas no dia que decidi isso, você já não estava mais lá. Fui até a sua casa, mas você já tinha ido embora. Eu sofri muito, muito mesmo e você pode me acusar de qualquer coisa, menos de traição. Eu nunca te traí.
Ela se afastou de mim, como se eu tivesse uma doença contagiosa.
— Você não sofreu nada.
O quê?
— Eu não sofri? Além de perder a mulher que eu amo eu perdi um filho, Mariana! — Falei no presente, mas ela nem sequer notou.
— Minha vida foi por muito tempo só tristeza, João. Enfrentei tudo sozinha!
— E como você acha que foi a minha? Eu não consegui amar mais ninguém depois de você. Era só eu começar a gostar um pouco mais de uma mulher, que aí eu ferrava com tudo e a afastava de mim, por medo de sentir toda a dor de novo, a dor de quando você me deixou, sem explicação. — Agora era eu quem estava gritando. — Eu nunca mais consegui viver direito e nem ao menos cheguei perto de me casar com alguém e construir família, como você está fazendo. Vendo pelo meu ponto de vista, me parece que para você que foi fácil.
— Fácil? — ela gritou e enxugou as lágrimas — Não me recrimine por isso, você não sabe pelo que eu passei.
— Nem você sabe pelo o que eu passei! — Eu gritei mais alto.
Ficamos nos encarando, ambos respirando com dificuldade, exalando anos de sentimentos reprimidos e anos de palavras não ditas. E esse sim era o reencontro sem atuação.
— Preciso ir embora. — ela passou por mim em direção à saída e eu a segurei pelo braço.
— Eu não te traí. — falei somente e engoli em seco. Eu estava com os olhos marejados. Sentia raiva e tinha certeza de que aquilo tinha sido armação da mãe dela.
— Eu não sei.
— Eu sei, a Isa sabe, todos que ficaram aqui e viram o que me tornei, sabem. Eu não te traí. — Ela me encarou. — E o Miguel? Não é possível que ele tenha compactuado com isso.
— Não. Seu nome e tudo relacionado a você foi proibido. Eu proibi, minha mãe proibiu. Ele não sabe de nada do que aconteceu. Minha mãe não quis que ele tomasse partido ao seu favor, ele sempre foi muito seu amigo. Então ele só sabe que fomos embora e eu não pude mais te ver.
— Sua mãe... — Saí de perto dela. — Ela nunca gostaria que um negro, classe média, ficasse com a filha dela. Ela armou tudo isso. — Soltei o ar e balancei a cabeça em negativa. — ela me avisou que era para ficar longe de você.
— João, eu não posso acreditar que ela tenha feito isso comigo, ela é minha mãe!
— Então acredita que eu tenha feito, não é?
Ela me olhou intensamente, mas vi em seus olhos uma fagulha de dúvida e a certeza que antes ela tinha, já não existia mais.
— Eu te amei, tanto. — Falei no passado, mas no presente era como que eu queria dizer.
O que eu estava pensando? Ela ia se casar!
Um silêncio pairou entre nós e eu continuei:
— Eu nunca te trairia, Mariana. Principalmente com a Isa, ela é como uma irmã.
Ela pensou, me olhou por um instante, parecia completamente confusa e disse:
— Preciso realmente ir embora. Pode, por favor, me emprestar um telefone? — Seus olhos estavam inchados de chorar e o verde estava ainda mais intenso.
— Eu vou te levar. — Fui até o escritório, sem esperar uma resposta, peguei o capacete e voltei ainda sentindo o impacto de toda essa discussão e revelação, em mim. — Vamos? — ofereci o capacete a ela, que assentiu e ainda bem, aceitou.
Saímos da Angels, sem dizer mais nada, Mariana subiu na minha garupa e falou séria:
— Vai devagar!
Eu quase sorri para o seu tom bravo, se não fosse todo o peso da discussão e tudo que eu estava sentindo, eu teria rido e feito alguma piada, mas só acelerei de propósito e senti novamente os braços dela me apertando com força. Fomos até a cidade, compramos o combustível, tudo sem trocarmos nem uma palavra.
Ela quis pagar, mas comprei o galão, paguei e recusei veementemente o seu dinheiro. Retornamos até onde estava o carro, Mariana desceu da moto e ainda continuávamos sem falar um com o outro. Coloquei o combustível no tanque, disse para ela ligar o carro e depois que ela deu umas três partidas na chave, o carro voltou à vida e em resposta ao resultado positivo, eu sorri, um sorrido apagado.
Um clima de despedida pairou entre nós e ambos não sabíamos o que falar, então eu quebrei o silêncio:
— Procura a Isa, conversa com ela, com a tia Carla e com a minha mãe. Elas vão te dizer o quanto foi difícil para mim, ficar longe de você. — engoli em seco e olhei para a boca dela que continuava tão linda.
— Não sei se é uma boa ideia.
— Você não pode viver acreditando em uma mentira, você precisa saber da verdade, do que realmente aconteceu.
Ela só assentiu.
— Isa ficou tão triste por você ter voltado e não tê-la procurado. — Mariana me olhou como se não acreditasse. — Vocês sempre foram melhores amigas e ela sofreu muito também, sem você.
Ela engoliu em seco, olhou para as mãos e disse:
— Preciso ir.
— Você está bem para dirigir?
— Sim, só um pouco confusa.
— Se está confusa, sinal que vai pensar em tudo que falei.
— Não tem como não pensar.
Ficamos em silêncio e ela falou meio sem graça após o silêncio:
— Muito obrigada por me ajudar e desculpa por te tirar do seu caminho.
— Não por isso. — Falei somente e a encarei.
Mari olhou para a minha boca, eu olhei para a dela e senti ali o clima entre nós mudar. Um calor subiu pelo meu corpo, a vontade de agarrá-la e beijá-la, tomava conta de mim. Até que ela quebrou o encanto, tirou seus olhos dos meus e disse:
— Até mais.
Fechou a porta do carro, olhou para mim mais uma vez com aqueles olhos lindos e partiu. Me deixando ali naquele acostamento, sem reação e sentindo meu mundo dar um giro inesperado de trezentos e sessenta graus. A raiva de anos extravasada em gritos, choro e revelação de uma mentira. Anos de sofrimentos tudo por conta de uma armação... E por incrível que pareça, me sinto muito mais leve. Eu deveria estar bravo por conta de toda a armação, mas me sinto mais leve e até mais em paz. Pois agora sei que a Mari foi para longe de mim, porque foi enganada e não por que não me queria mais.
Abri um sorriso.
Talvez ainda possamos...
Não! Pensei que "nós" era passado e ela iria se casar.
Fechei o rosto, subi na moto e parti para mais uma noitada.
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