Capítulo 03
Jorge levantou, reuniu os cacos de vidro do chão e me encarou. Certeza que ia me dar pelo menos um tapa na cara. Ele respirou fundo, reuniu a paciência e me pegou pelo braço. Se estava assustado? Cagado de medo seria a definição.
– O que você viu?
– Tem um homem no meu quarto. – Disse, totalmente apavorada.
– Carne e osso ou só vento?
– Vento.
– Menos mal. Morto não faz filho.
– Jorge!
– Lembra do que a sua avó te disse? Você precisa ser autoritária, dizer para partir daqui que a casa já tem dono. Eu no seu lugar teria medo. Mas esse sou eu, e você é você.
– Não vou mais para lá. – Agarrei os ombros dele.
– Vamos lá. Se ele tiver lá, fala tudo e se ele não for voltamos, você dorme com a sua mãe e eu no chão. Combinado?
Eu,uma mulher de vinte e seis anos voltava para o meu quarto seguindo Jorge,meu padrasto. Entrei, e lá estava ele. Agora sentado na banqueta da minha penteadeira.
As pernas do sujeito eram longas e grossas. Deus do céu, ele era todo músculos. Como se deixa uma pessoa assim morrer?
Ele me deu um sorriso ladino, e eu senti minhas bochechas corando rapidamente.
Jorge foi até perto dele, com a barriguinha empinada e a careca brilhante.
– Não adianta correr de mim. – O espírito disse. – Sei que você pode me ajudar.
O maldito ainda levantou a mão e esfregou a careca do meu padrasto.
Eu era uma adulta, e tinha herdado a mediunidade da minha avó. E ele não era o primeiro espirito que vinha até mim. Tive um contato com minha professora do terceiro ano, mas ela queria passar um recado. Deu o maior trabalho para deixar um bilhete na sala dos professores informando as senhas das contas dela. E um pedido de desculpa para o ex marido. A coitada ainda o amava. E depois minha avó. Todas elas pessoas conhecidas, e o mais importante, do mesmo século que eu. De alguma forma ele me atraía. A forma como mexia os braços largos. Ele tinha uma aura de autoridade. E se não o ajudasse ele ficaria comigo ali até me deixar completamente louca.
– Estou bem Jorge. Acho que sonhei. – Disse por fim.
– Deixa a porta encostada. Qualquer coisa da um grito.
Que ele daria dois. Sempre quem vinha era minha mãe. Jorge vinha atrás armado de qualquer coisa que com certeza usaria para jogar no chão e correr.
Quando Jorge saiu me senti receosa,ressabiada. Busquei alguma coisa na face dele. Era só beleza mesmo, e uma cicatriz que cortava a sobrancelha e parte do rosto.
-– Olha. Aqui não é mais o seu lugar. – Disse calmamente, no estilo Bezerra de Menezes. – Limpe seu coração e vá para a luz.
O homem ficou em pé, era alto. Muito alto. Andou pelo quarto e foi parar no mesmo lugar que o vi na noite passada.
– Esse é o problema Giovana. Não tem para onde eu ir. – A voz grave e baixa dele me deu arrepios. E algo mais. Mais a baixo. Fogo, digamos.
– Como soube que eu ia te ajudar?
– Áurea me mandou vir até você. Antes dela ir... Para onde as almas vão.
– O que mais ela disse? – Ia perdendo o medo e me aproximando mais dele.
– Ela disse que você era uma mediadora, aquela coisa do além. Disse que me ajudaria a descobrir o que houve comigo. E que eu iria ter meu destino.
– Desde quando anda por aqui?
– Dia após dia venho parar nesse quarto. Acho que morri aqui. Não sei. Preciso encontrar ela .
– Pronto. A carreta furacão está quase formada. Tem mais alguém? – Pergunto irônica. – Porque uma Sara me deu um esporro mais cedo. Com direito a panelaço e tapa nas costas.
O homem me olhou friamente, e aquele olhar fez meus pelos da nuca se arrepiar. Minhas pernas me traíram e tive que buscar a cama e me sentar nela rapidamente.
— Sara é um perigo quando fica brava. Sempre foi assim. morreu por ser traiçoeira como uma onça.
— Sabe como ela morreu?
– Não me lembro muito bem. – Ele estava mentindo, pelo menos parecia que estava. – Não é assunto para agora.
– O que você quer de mim. – Ok, podem me sedar agora.
– Descobrir porque vim parar aqui, e onde está minha noiva.
– Não faço ideia de onde procurar. Talvez tenha algo na internet sobre seu passado.– Ele não estava entendendo nada. Isso seria assunto meu. – A propósito, como é o seu nome?
– Antônio.
Ri pelo nariz.
– Sério moço. Qual seu nome?
– Antônio Albuquerque. Barão do café de Vera Cruz.
Meu sorriso morreu. Ele era um barão. Barão do café ainda por cima. Então era quase certeza que Sara era escrava dele. E ele poderia muito bem ter matado a garota. Quanto mistério tinha escondido com ele?
– Vou te ajudar a encontrar sua noiva, você parte para a luz e leva a Sara com vocês. O que acha?
Ele havia sentado outra vez, e me encarava com uma expressão neutra, digamos.
– Certo. Se Áurea falou, vou confiar nela.
Antônio continuou me estudando como se eu fosse uma espécie rara. Fiquei sem graça, meu pijama era fino e eu tinha certeza que ele podia ver coisas da onde estava.
– Certo. Vou dormir então. – Deitei na cama e me cobri.
– Boa noite Giovana. – Ele continuava a me encarar. E eu estava ficando sem graça.
– Vai ficar aqui? Me olhando? – Perguntei.
– Se quiser posso trocar de lugar com a Sara.
– Não! – Sentei na cama. – Deixa ela dormir, ou sei lá o que ela faz para passar o tempo. Vai que acorda mais irritada ainda.
Ele riu, uma risada abafada fazendo os olhos de cafajeste das antigas se estreitar.
– Boa noite Antônio.
Dormir com um estranho no quarto nem era tão ruim assim. Fiquei mais tranquila quando ele me disse que havia conversado com minha avó. A velha Áurea não me colocaria em apuros. Espero. E se ele era Barão, Sara não se meteria com ele, por medo.
Quando abri os olhos já era manhã de novo. O quarto era o mesmo, estava mais iluminado. De novo era espectadora da vida de alguém.
Desci da cama, coloquei meu roupão de seda. Ajeitei o cabelo e saí do quarto.
– Sara.
– Sinhá! – Ela disse submissa.
Sara me seguiu até a cozinha. Minha consciência me dizia que não era mais época escravocrata no Brasil. Então porque Sara estava ali? Vestida como uma escrava?
Na mesa Sara me serviu cuidadosamente, com os braços finos. Tudo ficou turvo outra vez.
De repente não estava mais na mesa. Estava no campo aberto. Eu andava com pressa, os saltos estavam nas minhas mãos. Sentia um misto de medo e empolgação.
– Aí está você.
Meu coração deu uma acelerada. Olhei para as minhas mãos, o homem havia chegado por trás e me depositou uma flor nas mãos.
– Obrigada. – Respondi manhosa.
– Quando faremos, Katharinna? – A voz melodiosa dele soou nos meus ouvidos.
– Quando faremos? O quê? – Sentia um tremor percorrer meu corpo.
– Medrosa! – Ele gritou no meu ouvido.. – Medrosa! Medrosa! Medrosa!
Tapei meus ouvidos. O tempo fechou rapidamente e os trovões começavam a ribombar no céu. Me virei para pedir para parar com aquilo, e não encontrei ninguém.
– Medrosa! Medrosa!
Senti golpes nas costas. O pano do meu vestido rasgou e eu gritei.
– Isso é por ser medrosa!
– Aí!
Levantei de uma vez. Estava suada e com as costas ardendo. Dessa vez o sonho foi tão real que ainda doía.
Antônio não estava mais no quarto. Levantei tropeçando no cobertor e corri para o banheiro.
Minhas costas ardiam, e tinha vários machucados nela. As chibatadas que levei no sonho, foram de alguma forma parar no meu corpo físico.
Liguei o chuveiro e prendi a respiração. O ardor deixava minhas pernas fracas, mas eu tinha que me lavar. Deixei a água cair nos machucados enquanto chorava.
Sai do chuveiro, e ele estava lá.
– Bom dia Antônio.
Antônio veio até mim e deu a volta. Eu podia vê-lo ficando muito puto da vida.
– Precisa cuidar disso aí. - Ele tinha a cabeça rente a minha.
– Preciso saber o que me causou isso. Se bem que acho que sei quem foi.
– Não foi ela. – Antônio respondeu calmamente. – Ela tem pavor do chicote. Pegar em um seria um esforço grande. Sua sorte é que ficará somente arranhões fundos. Não sucos enormes.
– Será que...
-– Sim. Tem mais alguém aqui...
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