Capítulo 3
Cyndi
O vento fresco da noite estrelada cortava meu rosto, ao mesmo tempo em que eu andava, meio correndo, em direção a minha casa. No meu rosto um sorriso faceiro de quem estava fazendo algo que não devia, era exibido por meus lábios e a minha respiração estava desritmada.
Se alguém me visse naquele bar e contasse para a minha avó? Ela me mataria.
Meu coração estava acelerado e eu me sentia muito viva.
Ele é tão lindo! E que voz...
Eu revivia repetidas vezes na minha memória o momento em que me virei e dei de cara com aqueles lindos olhos castanhos, com cílios bem marcados e os lábios chamativos que se tornavam ainda mais por serem realçados por sua barba por fazer. A barba seguia seu cabelo cortado em um modelo baixo na nuca e mais alto na parte de cima, no entanto ele usava penteado de lado, o deixando com cara de bom moço, mas um bom moço com um olhar safado.
Meus olhos brilhavam.
Ele parecia um príncipe, surgindo do nada para me salvar da maldita fechadura que não me dava trégua e se ele era interessante de boca fechada, quando me ajudou e foi tão solícito, gentil e até mesmo engraçado, só confirmou a sua realeza.
Era alto, tinha um corpo forte, mas não marombado, era o tipo... Gostoso. Usava uma calça preta e uma camisa branca de gola V que era um tanto apertada no seu músculo do braço, assim como a calça que no pequeno momento em que virou de costas, pude ver um pouco da sua bunda abraçada por ela.
Eu era apaixonada pelo corpo masculino e apesar de só ter visto um e poucas vezes, a experiência não foi das melhores, mas eu desejava ver outros.
Naquele dia, outra vez Ana Constância disse que sairia mais cedo e que se eu contasse para dona Fátima ela inventaria uma mentira para a vó, eu fiquei com tanta raiva que quis entregá-la, mas naquele momento, depois do que eu tinha vivido tão surpreendente com um lindo desconhecido, eu só sabia agradecer por ter uma tia tão preguiçosa e maldosa, já que se ela estivesse teria estragado tudo.
Eu havia ficado até mais tarde na loja, terminando de guardar as peças novas que havia chegado naquela tarde, já que se deixasse para outro dia, dona Fadinha notaria que apenas uma estava trabalhando ali e por ter ficado envolta no trabalho, nem me lembrei da raiva que passaria com a porta quando fosse embora.
Todos os finais de semana o bar em frente à loja lotava e eu morria de vontade de ir até lá, fui apenas uma vez com Arabela, mas minha vó descobriu e me deu um sermão que só não foi maior porque minha amiga estava junto. Depois não fui mais, simplesmente pela preguiça de passar pelo sermão da minha avó de novo, caso ela me visse ali novamente.
No momento em que coloquei meus olhos no desconhecido lindo, tive a impressão que o conhecia, no entanto, há um tempo que não tinha contato com ninguém que não fosse minhas tias, avó e dona Fátima, muito menos alguém do sexo oposto, para ser mais precisa, não tinha contato desde a faculdade quando tive o rolo com um colega de classe, perdi minha virgindade e descobri que ele além de ruim de cama era um merda, logo após me fechei para o sexo masculino... até aquele dia.
Olhos tão expressivos e sedutores, um sorriso sexy em meio à voz rouca e grossa que com certeza eu só seria mais uma a ficar encantada por seu sorriso, olhos, jeitos e trejeitos.
Passei pelo portão que rangeu com o movimento para me dar passagem e praticamente entrei saltitante em casa. Para a minha sorte não tinha ninguém na sala e nem na cozinha, sendo assim, corri para o meu quarto.
Provavelmente a minha avó estava na igreja, pois sexta, sábado e domingo ela não ficava em casa à noite e aí minhas tias fugiam também. Eu era a única que ficava presa, por medo da minha avó me ver em algum lugar e assim me fazer passar vergonha. Ah, e também por não ter companhia.
Antes eu até ia para a casa da minha amiga Arabela, mas agora que ela tinha ido para longe, só me restava ficar em casa.
Assim que abri meu quarto, fui recebida por meus cachorros com alegria e eu os cumprimentei igual.
— Meus doguinhos lindos. Sentiram saudade da mamãe?
Pulei na minha cama e rindo me lembrei do que havia vivido há pouco, mais uma vez revivi o sorriso lindo em meio à barba por fazer e a visão do seu cabelo penteado de lado como um astro da música... E a voz.
A voz dele fez meus pelos se arrepiarem.
Relembrei o modo como ele cantou me olhando e reprimi um frenesi no meu corpo, mas um suspiro tomou minha respiração. Eu estava parecendo uma adolescente emocionada.
Rapidamente levantei-me, fui até a minha bolsa e peguei o celular, nele pesquisei por banda Prince e de imediato pipocou diversos vídeos em que aquele homem lindo, salvador de donzelas que não sabem fechar porta, cantava com o mesmo olhar safado que me olhou no bar.
Felipe... lindo Felipe.
"...Nunca te esqueci, sempre te vivi e para sempre te senti..."
Falava a letra de uma das músicas que contava com a bateria e a guitarra presentes em uma melodia como um rock romântico.
Os vídeos tinham muitas visualizações e os shows exibidos neles eram lotados de fãs. Saí dos vídeos e li algumas matérias que falavam sobre o sucesso meteórico e repentino da banda nascida na internet. Senti um orgulho como se os conhecesse.
Lembre-me da voz do Felipe falando perto do meu ouvido, me apresentando um por um e agora eu os reconhecia no vídeo: Caio era branco, usava óculos, cabelo curtinho e era o guitarrista gato, o Cleber era branco quase ruivo, tinha sardas, o corpo marombado e era o baterista simpático, já o Christian era mais moreno, cabelos castanho-claros como os de Caio, mas compridos e amarrados em um rabo de cavalo, ele era o baixista sexy. Felipe me falou que os três eram irmãos, mas não os achei parecidos.
No momento em que Lipe se aproximou de mim para apresentar os amigos e falar por sobre a música que tocava, senti um arrepio e tentei disfarçar a minha carência prestando atenção no que me contava, mas apesar de ser um desconhecido, ele era lindo e não podia negar que sua beleza mexeu comigo.
Tirei os olhos do vídeo da Prince que eu via no celular, olhei para o lado e sentadinhos, avistei três carinhas me olhando do chão, Jaques, Jack e Jane me encaravam como se esperassem atenção.
— Pulem aqui e venham ver isso comigo. — Dei três tapinhas na cama, os convidei para subirem e assim eles fizeram. — Vocês estão tão cheirosinhos.
Todas as sextas-feiras eu os levava comigo para o trabalho, o pet shop os pegava lá e me devolvia limpinhos, com lacinhos e gravatinhas na hora do almoço, aí eu corria até em casa e os deixava lá, depois voltava correndo para a loja. Era corrido, mas foi o jeito que encontrei de cuidar deles sem precisar pedir ajuda para ninguém. Eu podia fazer isso na minha folga, no entanto, na sexta-feira era o dia da promoção no pet e como não podia esbanjar, eu me desdobrava para economizar.
— Você está muito gordinho, Jaques.
Apertei um por um e os três se aconchegaram em mim ao mesmo tempo em que seus rabinhos balançavam de um lado para o outro, mostrando que estavam felizes.
Abraçada aos meus cachorros, fiquei horas vendo vídeos da banda Prince na internet até que adormeci e acordei horas depois, suada após um sonho erótico com o Felipe em que ele beijava todo meu corpo, começando pelos pés.
Eu devo estar muito a perigo mesmo, para sonhar que estava transando com alguém que acabei de conhecer... e o pior: que nem sei se verei de novo.
Frustrada olhei no relógio e era quase meia-noite e com muita cede olhei em volta à procura da minha garrafinha de água, que encontrei vazia ao lado da cama. Droga!
Mesmo com preguiça, tive que ir até a cozinha buscar água ou não conseguiria dormir com a boca seca por causa do sexo imaginário que tive, então levantei-me e fui sentido a casa.
Quando estava me aproximando da porta, vi a sombra de duas pessoas na janela, cobertas pela cortina e apesar de não conseguir ver ao certo quem era, pela silhueta desconfiei que só podia ser Ana Constância e Lisbela.
Aproximei-me devagar e me abaixei, ficando encostada à parede e bem perto da janela, com isso, apesar de estarem falando baixo, consegui confirmar serem minhas tias e ouvi a conversa das duas.
— A gente pode inventar que vai trabalhar até tarde — sugeriu Lisbela que trabalhava em um escritório próximo da loja da dona Fátima.
— E o que eu faço com a sonsa da Cyndi?
Revirei os olhos ao ouvir meu nome.
— Ana, você sempre sai mais cedo e deixa o trabalho para ela. Um dia a mais ela nem vai reclamar.
Fechei o cenho me sentindo um burro de carga.
— E a mamãe?
— Já está na hora dela nos deixar em paz, somos duas mulheres.
— Mas sabe como ela é. Bom, vamos dizer que vamos a um grupo de oração de outra igreja... que fomos convidadas por uma amiga.
— E que vai ser uma vigília. Assim não temos hora para voltar.
— Adorei! — Dava para sentir a empolgação das duas.
— Combinado, então. Vamos a esse show e vamos revê-lo.
— Agora vamos dormir antes que a mãe acorde e nos pegue acordadas.
— Precisamos pensar em uma fantasia...
Ouvi se afastarem e com isso parei de ouvi-las. Senti-me triste, porque provavelmente elas estavam falando sobre o show do dia seguinte, o tributo a Cyndi Lauper, só podia ser, era o único que aconteceria na cidade e, sendo assim, se havia alguma expectativa de eu conseguir ir ao show, acabou naquele momento.
Eu não podia correr o risco de sair à noite, encontrar as duas e aí quando voltasse para a casa, aguentar o inferno que seria a minha avó dizendo que não queria uma sem-vergonha em sua casa e que se eu quisesse levar uma vida mundana que fosse embora.
Era capaz até de dizer que eu estava corrompendo suas filhas, como já disse uma vez, e talvez nem adiantaria dizer que Lisbela e Ana Constância também estavam lá, já que minha avó quase nunca acreditava em mim e muito menos dizer que, de verdade, a casa era minha, eu era maior de idade e podia entrar e sair quando quisesse. Não queria perder o pouco de família que eu tinha e nem humilhá-las dessa maneira, então decidi abortar de vez a vontade de ir ao show.
Peguei minha água e voltei para o meu quarto na intenção de tentar dormir e me preparar para trabalhar no dia seguinte, que era a única coisa que eu fazia que me tirava de casa.
Acordei super cedo, tomei banho e a ideia era seguir para o trabalho antes do horário para não ter que lidar com minhas tias e avó, no entanto, quando eu estava quase saindo pela porta da frente, minha avó apareceu sonolenta e me avisou:
— Cyndi, a hora que você chegar eu não estarei aqui, vou em um grupo de oração que será do meio-dia à meia-noite.
— Tudo isso, vó?
— Rezar nunca é demais e só não te levo, porque você trabalha. — Reprimi uma careta e só assenti.
Perdão, Deus!
— E quanto a Ana Constância e a Lisbela, por que não as leva?
— São ótimas meninas, não são envolvidas nem atraídas por coisas do mundo como você. Com elas não tenho que me preocupar. — Me senti a pior pessoa do mundo e contive um revirar dos olhos. Minha avó não notava as demônias que minhas tias eram.
— Tenho certeza que elas gostariam de ir, inclusive esses dias as ouvi comentando algo sobre isso — menti.
Perdão de novo, Deus.
— Olha só que anjos. — Os olhos da minha avó se iluminaram. — Vou chamá-las para ir.
— Só não fala que contei, porque elas devem querer que o interesse parta delas, né?
— Ah, claro.
— Agora vou indo, pois quero chegar cedo ao trabalho. — Não esperei resposta e saí depressa porta afora.
Na hora do almoço, comprei um lanche e fui comer no estoque da loja, para não ter que interagir com a Ana Constância na cozinha. Era capaz de eu ter uma congestão.
Após comer me acomodei no pequeno sofá que ficava em meio às caixas e prateleiras cheias de mercadorias e fiquei zapeando pela internet até que passasse o meu tempo de descanso, foi então que como se fosse o universo conspirando, apareceu para mim novamente o cartaz da festa que aconteceria na cidade. Um post na rede social me indicava o festival que homenagearia a Cyndi Lauper e para a minha surpresa, a banda em destaque era a Prince.
Sentei-me imediatamente e daquela vez li com atenção o cartaz, focando no horário da festa e no endereço. Os olhos intensos do Felipe invadiram a minha mente e a vontade de revê-lo também.
Eu tinha vinte e sete anos e não era nem uma menina de idade, mas era completamente inocente e inexperiente quando o assunto era homem e por mais que pudesse parecer algo repentino e impulsivo, eu tinha ficado atraída pelo cara gentil da noite anterior.
Voltei a ler sobre o evento e o local não era muito longe dali, também li que não era tarde, começava às sete horas da noite e talvez desse para eu ir.
A vontade de sair escondida da minha avó ou até mesmo desobedecê-la e ir ao bendito baile me atingiu com força, depois senti vontade de me rebelar e sair deixando com que minha avó soubesse exatamente onde eu estaria, porém, no segundo seguinte, pensei em todo drama que ela faria e imediatamente tirei essa ideia da cabeça. Era capaz até de passar mal e jogar a culpa em mim.
Eu queria ir, queria reencontrar com o Felipe, me apresentar a ele, dizer meu nome, contar que eu sei cantar também, pedir desculpas por ter saído do bar sem me despedir como se fosse uma criança boba e quem sabe pudéssemos ser amigos... ou algo mais.
— Faltam dez minutos para acabar o horário de almoço. — Ana Constância entrou no estoque, falando alto para me acelerar e até me assustei.
— Sim, tem razão, mas como disse, ainda faltam dez. Tenho relógio aqui. — Balancei o celular para ela.
— Vou sair mais cedo hoje.
— Novidade — retruquei baixo.
— Se dona Fátima aparecer no final do expediente diga que passei mal.
— Já falei isso sábado passado.
— Fala de novo, ninguém fica mal apenas um dia.
Encarei-a com desprezo.
— Vai sair?
Abriu um sorriso largo e convencido.
— Vou, mas não é da sua conta.
Nunca entendi o motivo das minhas tias me tratarem com tamanhas grosserias sem que eu as fizesse nada, mas depois de tanto ser tratada daquela maneira, por fim acreditei que era algo delas e eu não podia me culpar pelo modo como eram.
— A vó sabe?
— Não e nem vai. E você fica de bico calado.
— Vocês vão no tributo a Cyndi?
— Vocês quem?
— Você e Lisbela — respondi logo, quase me entregando.
— Sim. Como sabe? — Ergueu a sobrancelha desconfiada.
— Vocês sempre estão juntas.
— E como sabe do tributo?
— Todo mundo sabe. — Me encarou com atenção, depois desviou o olhar e a perguntei: — Será que posso ir com vocês? Eu não conto para a vó, só quero ver o show.
Ana Constância abriu um largo sorriso e depois uma sonora gargalhada que fez com que me sentisse uma idiota, até que, enfim, respondeu:
— Claro que não, né, Cyndelerda — chamou-me pelo apelido que sempre usava para me irritar, desde quando éramos mais novas e derrubei e quebrei vários copos durante uma faxina, com isso, a vó disse que eu andava um pouco lerda, aí foi o que precisou para Ana Constância e Lisbela juntar meu nome ao xingamento e me tornar Cyndelerda. No início eu até chorava, mas depois de adulta até me conformei e pensava que um dia eu encontraria mesmo um príncipe e seria feliz como a Cinderela do conto de fadas. — Está doida? Olha para você e para nós. Você destoa, Cyndi. Não dá.
Me humilhou, saiu do estoque e foi assumir a frente da loja, me deixando com o pensamento de que eu devia realmente ser um nada perto delas.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro