Capítulo 18
Cyndi
Sabia que Lipe não me procuraria porque teria um show com a banda e ficaria focado nisso durante todo o dia. O que era bom, precisava de um tempo de toda a intensidade para quem sabe esquecê-lo e seguir em frente.
Meu coração e psicológico estavam destruídos, tinha chegado em casa chorando copiosamente e dei graças a Deus por ser de madrugada e não encontrar ninguém. No entanto, no dia seguinte quando passava do meio dia eu precisava ir até a cozinha buscar água e comer alguma coisa.
Arrastei-me até lá já me preparando para as investidas das minhas tias que provavelmente me massacrariam, mas daquela vez me preparei para não me manter calada.
Assim que entrei na casa, para o meu tormento Ana Constância estava lá.
— Pelo jeito a noite não foi boa, né, querida sobrinha? — me provocou, provavelmente notando meus olhos inchados pelo choro.
Encarei-a com meus olhos faiscando e, ao contrário das outras vezes, eu não recuaria, estava na hora de atacar.
Dei alguns passos em sua direção e em um sussurro cheio de raiva soltei:
— Vocês quiseram o meu quarto e eu dei, quiseram minha casa e é de vocês e quer o Felipe? Ele é seu. Você quer tudo o que é meu, mas o mais importante você não terá... meu caráter, minha índole e minha luz. Nunca conseguirá ser eu, então desista. — Virei-me para a pia e a deixei com os olhos arregalados, mas lembrando de algo, virei-me novamente para ela e disse: — Ah, tem outra coisa que vocês querem há tempos só que nunca conseguirão: tirar a minha paz. — Pisquei um olho em deboche.
Segui até a geladeira, peguei uma garrafa com água e estava voltando para o quarto quando minha avó apareceu na cozinha com o rosto tomado de ira.
— Tem um homem chamando no portão.
Juntei as sobrancelhas e fui até a janela.
— A mim?
— Sim, só pode ser, minhas filhas não trazem homens aqui. Você puxou todinha a sua mãe.
Senti a raiva borbulhar por ouvi-la citar minha mãe de novo, cheguei até janela da sala e avistei Felipe parado no portão, mas para a minha surpresa ele bateu palma e gritou "Ana".
Minha raiva aumentou e era como se uma facada me atingisse, mas precisava superar.
— Graças a Deus que saí igual a minha mãe e não puxei o caráter de vocês. Suas filhas mentem, a senhora fala de Deus, mas não vive seus ensinamentos. — Virei-me para Ana. — Vai lá, o seu homem está te chamando e aproveite e diga para ele que não moro mais aqui.
Ana Constância abriu um enorme sorriso, virei-me e fui para o meu quarto sem esperar por nada. Chegando lá desativei a internet do meu celular para que não recebesse mensagens.
Felipe indo até atrás da Ana, só podia significar que era tudo verdade e ele a queria, sendo assim, não deixaria mais que os dois me fizessem de boba.
Decidi não chorar mais e virar uma nova mulher. Movida à raiva comecei a procurar cursos de música na cidade, brinquei com meus cachorros e tentei de todo jeito me distrair para não pensar no que me feria.
Lembrei-me da minha amiga e preocupada com sua desilusão pensei em conversar, ir até a casa dos pais dela vê-la de novo e assim chorarmos nossas decepções juntas, mas fui surpreendida quando Arabela me contou que no dia seguinte a minha ida a sua casa, ela reatou seu relacionamento e voltou para a mansão, disse também que casaria em breve e que me queria como madrinha.
— Como assim, sua louca?
— Sei que foi rápido.
— A jato! — Eu ri.
— Se vira! Não posso ficar sem a minha melhor amiga no melhor dia da minha vida. Resolvemos tudo e sou a mulher mais feliz do mundo.
Xinguei-a por não ter se despedido de mim, mas Arabela me consolou dizendo que o casamento seria em breve, que nem daria tempo de sentir saudade e eu tinha um mês para arrumar um final de semana de férias, roupa e que a viagem seria por conta dela.
Por fim ela me animou, conseguiu me fazer rir e até esquecer um pouco da minha tristeza. Falamos sobre meninices, sobre o seu futuro marido gostoso como o céu e conversamos muito sobre a novidade do casamento.
Acabei não contando sobre a minha vida sentimental bichada, para que a minha tristeza não estragasse a alegria da minha amiga e quando me perguntou o motivo da minha voz estar tão para baixo, eu a tranquilizei dizendo que era sono.
Na segunda-feira fui para a loja sem mais brigas com as minhas tias e avó, mas ainda esperava que a qualquer momento deixassem a minha casa e eu ficasse sozinha.
Mesmo com tantas brigas seria realmente dolorida a partida delas, mas era necessária e naquele momento eu torcia para que acontecesse logo.
Cheguei para abrir a loja e foi difícil não lembrar da vez que fugi do Felipe e ele apareceu logo de manhã, encostado à porta e lindo como um deus. No fundo do meu coração talvez esperasse que estivesse de novo ali, mas foi melhor que não aconteceu.
O dia começou calmo e sem graça, mas para me tirar da deprê e de pensamentos negativos, fiquei feliz quando conheci a Rosabel, minha nova colega de trabalho. Dona Fátima me apresentou a ela e me deixou responsável por ensiná-la, depois se foi dizendo que quem mandava ali era eu. Ri do jeito como demonstrava confiança e comecei a mostrar todo o trabalho para Rosabel.
Foi amizade à primeira vista, ela era um amor de pessoa, alegre, sorridente e desastrada, mas nada que atrapalhasse o seu trabalho. Aprendeu o serviço com rapidez, era inteligente e muito simpática com os clientes.
Quando o horário de almoço chegou, já éramos amigas de infância e ela já havia me contado como foi toda a sua vida no convento. Até parecia com saudade quando relembrava, contudo, quando perguntei se queria voltar de imediato respondeu um sonoro não.
No final da tarde, liberei Rosabel, disse que podia ir e que no dia seguinte chegasse mais tarde, para que eu a ensinasse como fechávamos a loja.
Notei que ao sair, um belo acompanhante foi buscá-la e ele parecia meio sem muita vontade de estar ali, no entanto, andou ao seu lado no caminho para casa, a ouvindo falar sem parar. Cogitei que talvez ele não achasse tão ruim assim ir buscá-la, já que sua casa não ficava muito longe da loja e ela podia ir sozinha.
Ri e sendo uma romântica, pensei que talvez houvesse o começo de um romance ali e fiz uma nota sobre perguntar para a Rosabel qual o relacionamento dela com aquele gato.
No momento em que fiquei sozinha na loja estava quase no horário de fechar, com isso, baixei a porta de ferro até a metade e fui ao estoque organizar umas peças.
Já lá no fundo aproveitei o silêncio para pensar na minha vida louca e ri pensando que os roteiros das novelas mexicanas perdiam feio para o da minha vida.
Lembrei-me como a minha história com o Felipe tinha recomeçado: um trinco que não fechou, uma ida ao show e ele indo até mim novamente usando a Cyndi misteriosa como pretexto.
Como sempre, quando ficava sozinha, naquele momento sem que percebesse comecei a soltar a voz e cantei , a música do show, que fez com que eu tivesse uma das melhores noites e sensações da minha vida.
Fechei meus olhos e dediquei à música toda a frustração de meu relacionamento com o Lipe nunca ter dado certo. Relembrei tudo, inclusive a minha omissão de ser a cantora, e me senti culpada por nunca tê-lo contado a verdade.
Cantei alto revivendo a noite em meus pensamentos e soltei a voz como se estivesse no palco. As lágrimas começaram a rolar pelo meu rosto, pensando que poderia ter dado certo se fosse de verdade.
... We have no past, we won't reach back
Keep with me forward all through the night
And once we start the meter clicks
And it goes running all through the night
Until it ends, there is no end.
Cantei com o coração o final da música que a tradução que dizia:
...Não temos passado, não queremos voltar no tempo
Vamos juntos ficar animados a noite inteira
E assim que começarmos, o relógio vai marcar
E continuar por toda a noite
Não vai acabar até que chegue ao fim.
Terminei de cantar, palmas romperam o silêncio do estoque e me assustaram fazendo com que eu abrisse o olho e desse de cara com o Felipe parado na porta que ligava a loja ao estoque e me observando com os olhos cheios de surpresa, ira e acusação.
— Então era você o tempo todo? — O encarei e não conseguia formular uma frase sequer para me defender.
Riu em desdém.
— E eu sou o mentiroso, Cyndi? Tem certeza que eu sou o mentiroso? — Passou as mãos no rosto. — Eu nunca menti para você, mas vejo que fui o único que se manteve honesto.
— Espera, não é bem assim.
— Era você o tempo todo. Todo o maldito tempo e não me contou!
— Eu ia contar.
— Mas não contou.
Encarei-o e meu queixo tremia com o modo como Felipe falava comigo. Ele nunca tinha usado aquele tom de voz.
Depois de parecer tentar se acalmar perguntou com frieza.
— Por que não contou que você era a cantora do show? Queria me fazer de bobo?
— Não! Só que aquela noite eu saí escondida e de início só queria manter o segredo para me proteger, mas depois eu não podia...
— Não podia? Ou não queria. Muito confortável para você seguir fazendo a mim e toda a banda de idiotas. Principalmente a mim... nós transamos aquele dia! E você disse que nunca tinha sido bom.
— Com o meu ex, com você sempre foi perfeito independente de que Cyndi eu fosse.
Ele riu.
— Olha o quanto isso soa falso.
Engoli em seco.
— Olha, eu pensei em contar, juro que pensei, mas o concurso já estava acontecendo e...
Felipe riu de novo.
— Não precisa. Pode parar, eu não quero saber. Vim aqui para... — Soprou como se estivesse cansado. — Eu vim mais uma vez para provar que eu não menti, não te enganei e que era inocente, mas tudo cansa, principalmente depois de descobrir que a mentirosa era você.
— Não menti, só omiti... Você não me deixa falar! Foi por medo e por não querer atrapalhar o concurso.
— Falando nele, olha só a bagunça. Como faremos com o concurso? Meu Deus, Cyndi!
— Viu, foi por isso.
— Não foi por isso — gritou e eu me fechei.
Ficamos em silêncio como se ele tivesse percebido que falou alto demais, até que falei:
— Escolham quem quiser, não vou reivindicar o lugar de cantora e de sua Cyndi.
— Minha Cyndi... — repetiu com ironia testando as palavras.
Assentiu, me encarou com seriedade como se esperasse que eu dissesse algo e depois se virou para sair em silêncio, mas eu o parei quando falei:
— Felipe, parece que toda a nossa história foi uma mentira.
— Parece que sim.
— E a mentira acaba assim, sem uma verdade?
— Já te falei a minha verdade é você quem não quer acreditar. — Fiquei em silêncio. — Ninguém aguenta ter que ficar o tempo todo tendo que se defender.
Encaramo-nos e eu quase acreditava na sua inocência.
— É tão difícil. — Enxuguei uma lágrima.
Mais olhares sem palavras.
— E para mim está sendo fácil?
Silêncio.
— E então, Cyndi, acabamos aqui? — perguntou deixando por minha conta o término de um relacionamento que nunca começou de verdade.
Minha vontade era pular nele e acabar com toda a briga entre nós, mas eu não podia passar por cima do meu orgulho e da desconfiança que me corroía.
Sentindo meu peito queimar, respondi:
— Acabamos aqui. É o melhor para nós. — Assentiu me observando com um olhar tão sério e cheio de mágoa que tive que desviar o meu.
— Espero que não se arrependa depois. — Virou-se para sair, mas voltou a se virar para mim e perguntou: — A faculdade de arte na verdade era de música, não é? — Apenas assenti. — Acho que deveria investir. Como já te disse sem saber que era você, sua voz é linda.
Novamente continuou a sair da loja, passou por baixo da porta de ferro e se foi, me deixando com o vazio da sua ausência e o coração partido.
O caminho para casa foi sofrido e praticamente me arrastei, passei pelo portão de ferro que naquela noite nem rangeu, depois abri a porta da sala e andei em direção à cozinha só querendo chegar logo na segurança do meu cantinho, entretanto, quando passei em frente à porta do meu antigo quarto, ouvi o barulho de música e ao me aproximar da fresta da porta que me permitia olhar dentro do cômodo, notei que Lisbela e Ana Constância assistiam ao vídeo da minha apresentação no show.
Sem perceberem a minha presença por causa do som alto vindo do notebook, pude observar as duas por um tempo e as ouvi conversando:
— Se a gente não tivesse descoberto que ela era a cantora do show e armado aquele encontro com o Lipe logo em seguida, eles ainda podiam estar juntos — Lisbela disse.
— Sorte que fui muito esperta em roubar um beijo quando ele não me reconheceu. Sem aquela foto do beijo roubado a Cindelerda não acreditaria na gente.
— Será que agora que ela saiu de cena de vez você tem uma chance com ele? Porque eu queria muito uma chance com o gatinho de óculos da banda e se você ficasse com o cantor eu poderia ficar com os outros integrantes.
Ambas riram.
— Sua biscate! — Vi Ana jogar uma almofada na irmã.
— É a realidade, mas o gato de óculos não pareceu muito a fim.
— Quando eu conquistar o Fê, a gente vai sair junto e tenho certeza que ele não vai resistir a você.
Riram.
— Ontem quando o Felipe apareceu no portão achei que era por mim, mas era só para me pedir que eu contasse a verdade para a Cyndi. Fiquei com uma raiva, porque me ofereceu até dinheiro! Mas quando eu o contei que não faria, ele disse que ele próprio um dia provaria. Não quis mais nada comigo.
— Você vai conquistá-lo e não conte a verdade nem morta, irmã...
Dei um soco na porta que a fez abrir e bater com força na parede. O barulho assustou as duas que pularam e arregalaram os olhos em minha direção.
— Suas vacas! — Parti para cima da Ana e dei um tapa em sua cara que estalou alto.
Lisbela tentou me tirar de cima da irmã, mas eu estava tão possessa e cheia de ira que as duas não conseguiam me parar. Eu distribuía tapas e puxões de cabelo como uma louca, mas a explosão não era apenas por aquela armação, mas sim por uma vida de humilhações, provocações e tentativa de alienação parental, que só não aconteceu porque sempre amei muito minha mãe e pai para acreditar no que minha avó me dizia sobre ela.
Eu não precisava de um príncipe como muleta para me ajudar a me livrar daquela chantagem emocional que faziam comigo, eu me livraria sozinha e a base de tapas, socos e safanões. Não estava nem aí em parecer uma descontrolada.
— O que está acontecendo aqui? — minha avó perguntou aparecendo na porta do quarto e nos olhando assustada.
Saí de cima da Ana com os cabelos bagunçados e exalando libertação.
— A culpada disso aqui é da senhora — gritei com os olhos vermelhos. — Sempre tão relapsa quanto a mim. — Chorei e solucei. — Sua filha morreu e a culpa não foi minha, não foi dela e nem de ninguém, mas a senhora sempre me tratou como culpada, como se eu te lembrasse a filha que perdeu e como se eu fosse a própria encarnação do mal.
Minha avó me olhava com assombro e eu continuei colocando para fora tudo que me sufocou durante uma vida.
— Minha mãe amava cantar, amava meu pai e me amava. — As lágrimas quase me impediram de falar, mas engoli o soluço e continuei: — No dia do acidente eu não estava com eles, mas muitas vezes desejei ter estado, tudo para não ter que viver com vocês três. Sempre dei amor e só recebi desprezo. Eu estou cansada! — gritei em uma crise de choro e estresse. — Cansada!
— Por que disso, Cyndi? — minha avó pareceu criar coragem para perguntar, enquanto minhas tias estavam encolhidas no canto do quarto que no passado era meu.
— Por quê? Porque essas duas me afastaram do amor da minha vida duas vezes. Por serem mimadas e não aceitarem que ele me queria e não a elas. E eu quero vocês fora da minha casa! Não ameaçaram tanto ir embora e me deixar sozinha? Então, agora quem quer vocês longe sou eu. Fora da minha casa... Foraaaa!
— Calma, querida — minha avó tentou se aproximar de mim.
— Cansei de ter calma e paciência, agora quero vocês fora daqui. Minha mãe sempre disse que eu teria que ter bondade e coragem, pois bem, cansei de ter só a bondade e estou colocando a coragem para fora.
— Então, sabe o que é... — Lisbela começou a dizer.
— Não quero ouvir mais nada, só quero que saiam.
— Não podemos sair, a mãe mentiu quando disse que ia para a igreja, ela, na verdade, ia para um cassino aqui perto e gastou tudo o que tinha lá. — Ana Constância contou.
Encarei as três mulheres na minha frente e suas caras assustadas. Tentei respirar e me recuperar da crise de raiva, mas a seguir comecei a rir, gargalhar e novamente a minha crise de riso nos momentos errados tomou conta de mim.
— Cassino? — Gargalhei alto e até coloquei a mão na barriga para conter o riso. — As vigílias, grupos de oração, Deus no coração e todo o resto que me jogava na cara era tudo hipocrisia? A senhora perdeu tudo em um cassino? Como conseguem ser tão falsas?
Sentindo-me exausta e ainda rindo após uma crise de estresse, saí da casa e fui para o meu quarto, onde chorei mais um pouco por toda a bagunça que cada vez minha vida se transformava.
Por culpa delas perdi o amor da minha vida. O perdi, mas foi bom para me achar e me libertar de uma vida de aprisionamento emocional.
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