Isabela
Isabela
Me encarei no espelho do banheiro e eu estava horrível: cabelo meio molhado e meio seco e meu rosto sem maquiagem me deixava até parecendo mais jovem. Procurei nas gavetas do gabinete do banheiro e encontrei um prendedor de cabelo em uma delas. Não fazia muito tempo que eu tinha estado ali com as minhas irmãs, pois quando eu decidi que queria passar um final de semana no chalé, Pietro disse que tinha muito trabalho a fazer e me instruiu a vir com elas e assim eu fiz. Como sempre ele nunca tinha tempo para mim.
Amarrei meu cabelo curto em um rabo de cavalo e tirei a blusa de moletom, ficando apenas com a baby look branca e de algodão, que eu estava usando por baixo. Procurei uma toalha no pequeno armário dentro do banheiro, achei e não estava cheirando a pó, então lavei o rosto para tirar a vermelhidão por ter chorado.
Saí do banheiro, meio envergonhada e sentado no braço do sofá da sala, com os braços cruzados na frente do peito, Othon ainda olhava janela afora, vigiando incansavelmente.
⸺ Acho que estamos seguros aqui, na verdade acho que estamos mais seguros aqui do que lá ⸺ falei, chamando sua atenção.
⸺ É o que parece. Tô observando há algum tempo e está tudo na mais absoluta calmaria.
Olhei em volta e tudo até que parecia limpo, fui até a cozinha, que era maravilhosa. Toda de madeira e na cor marrom, os armários planejados se acomodavam perfeitamente em todas as paredes livres que ficavam de frente para a pia e no centro da cozinha uma mesa redonda com quatro cadeiras ocupavam o espaço que era pequeno, mas eu sempre me sentia bem em uma cozinha.
Passei a mão pelo fogão e uma vontade absurdamente grande de cozinhar me atingiu, fechei meus olhos já ouvindo as milhares de críticas que ouvi do Pietro e da minha sogra todas as vezes em que eu disse que sentia falta do fogão, como se cozinhar fosse algo que me diminuísse. Balancei a cabeça em negativa e com raiva por ter sido tão privada das coisas que eu gostava, por preconceitos bobos. Depressa voltei para sala e animada perguntei ao Othon:
⸺ Quer comer alguma coisa?
Ele me olhou como se não entendesse minha animação.
⸺ Seria ótimo, mas acho que não deve ter nada nos armários e o mercado mais próximo daqui, deve ser a mesma distância de irmos comer na mansão.
Eu ri.
⸺ Quando uma mulher se propõe a fazer uma coisa, ela se prepara. ⸺ Andei até a mesa na entrada do chalé e joguei a chave do carro para ele. ⸺ Pode pegar duas bolsas de couro que estão no porta-malas do carro, por favor?
Ele franziu as sobrancelhas em desentendimento, mas fez o que eu pedi, quando voltou, carregava as duas bolsas com dificuldade e depois de colocá-las sobre a mesa ele bateu com a mão no terno para tirar os pingos de chuva que o molharam.
⸺ O que você trouxe aqui?
⸺ Tudo o que você imagina. ⸺ Aplaudi, sorri e ele também sorriu para a minha empolgação.
Peguei a bolsa com as roupas e dela tirei meus livros, o pen drive e pedi que ele colocasse na sala.
— O que tem neste pen drive? — ele perguntou.
— Um pouco do que eu gosto de ouvir, mas em vídeos tipo shows e clipes. Acho que você não vai gostar, é tudo muito romântico e nada melancólico como você gosta.
Ele voltou rindo da sala e nisso deixei a bolsa de roupa de lado e fui para a bolsa de comida, levei até a mesa da cozinha, e comecei a tirar tudo que eu tinha pego da dispensa da mansão, enquanto Othon me olhava com um sorriso divertido no rosto.
Fiquei pensando no que eu faria para comermos e eu estava tão animada quanto uma criança em um parque de diversões, mas dei uma desanimada quando percebi que todos os pratos que eu pensava em fazer sempre faltava algum ingrediente que eu não havia levado.
⸺ Não dá ⸺ falei, colocando a mão na cintura.
⸺ O que não dá? ⸺ Othon perguntou, encostando-se ao armário da pequena cozinha que estávamos. ⸺ Faltam ingredientes. ⸺ Cruzei os braços decepcionada.
⸺ Olha, agora você me deixou com fome e vai ter que cozinhar para mim, não posso perder a chance de ter um jantar feito exclusivamente para mim por uma Chef renomada.
⸺ Não sou mais Chef, muito menos renomada ⸺ falei, séria.
⸺ Claro que é! E acho que pode criar seus próprios pratos. Me surpreenda. ⸺ Ele cruzou os braços na frente do peito, ainda encostado ao armário da cozinha e tinha um sorriso largo nos lábios que nem parecia o Othon com cara de mau, que conheci no dia anterior.
⸺ Tudo bem. ⸺ Sorri. ⸺ Então vamos lá, tira esse paletó e vem me ajudar, porque todo Chef precisa de um auxiliar.
Sorrindo ele tirou o terno, a gravata e o coldre que parecia um colete que ele usava por baixo do paletó junto com uma pistola. Fiquei meio tensa ao ver a arma, mas ele me garantiu que não tinha perigo. Depois dobrou a manga da camisa branca até a altura do cotovelo, porém, quando terminou de dobrá-la, parecia sério e parei de separar os ingredientes para encará-lo, então perguntei:
⸺ O que foi?
⸺ Não sei se seu marido ia gostar de me ver assim, tão à vontade perto de você. ⸺ Ele engoliu, parecendo envergonhado.
⸺ Não estamos fazendo nada demais e, Othon, é capaz dele ficar mais bravo em me ver cozinhando do que por te ver sem o paletó. ⸺ E ao constatar isso senti um aperto no meu coração e doeu.
Percebendo a tristeza tomar conta de mim Othon pareceu arrependido, rapidamente bateu uma palma e falou para me animar:
⸺ Então, Chef, o que eu faço?
Sorri e dei batatas para ele descascar enquanto eu descongelava o peito de frango e procurava no armário o liquidificador. Resolvi fazer um frango com creme de milho, mas como eu não tinha tudo que eu precisava seria um frango com creme à moda da Isa e quando eu disse isso ao Othon, ele assentiu orgulhoso.
Ele estava tão diferente, parecia mais extrovertido e era como se o Othon do primeiro dia que o conheci fosse um e aquele na minha frente fosse outro. Observei seus braços descascando as batatas e quando ele manuseava a faca a camisa apertava em volta dos músculos e eu tive que me concentrar no frango para não o admirar de forma inapropriada.
Ri do quanto Othon parecia compenetrado nas tarefas que eu o passava e ele me disse que quando se propunha a fazer algo, levava a sério e fazia com convicção até terminar e eu ri.
Bati o milho enlatado, cozinhei batatas com frango, coloquei creme de leite e temperos e ao final, mesmo com poucos recursos, algum tempo depois estávamos com a mesa posta e cada um com o seu prato vazio após comermos o meu frango à moda da Isa.
⸺ Tenho que reconhecer, você é uma ótima Chef ⸺ Othon falou, erguendo a taça com o vinho que eu havia pego na adega que Pietro tinha montado no chalé.
⸺ Obrigada e você é um excelente auxiliar. ⸺ Ergui a minha taça para ele, bebi e continuei a falar: ⸺ Fico feliz que tenha gostado, ver as pessoas comerem sempre me deu o maior tesão. ⸺ Othon engasgou e eu completei envergonhada: ⸺ Digo, sempre me deu maior alegria. ⸺ Ele riu.
Juntos tiramos a mesa, lavamos os pratos e os guardamos, enquanto eu o contava empolgada o quanto o meu restaurante era maravilhoso e ele ouvia tudo e as vezes me fazia perguntas parecendo interessado no que eu contava. Falei sobre os projetos sociais que eu adorava ajudar e fiquei triste em seguida por me lembrar da falta de interesse do meu marido.
Mudando de assunto por notar a minha tristeza Othon pegou a garrafa de vinho e fomos para a sala, onde me sentei no sofá e ele antes de se sentar na cadeira de madeira ao lado, verificou a janela como o ótimo profissional que era e ajeitou a cortina. A chuva ainda caía incessante e estava engrossando novamente. Enchi a minha taça e fui colocar mais vinho para ele também, mas Othon disse que não ia beber mais para que conseguisse ficar de vigia durante a noite.
⸺ Te contei tanto sobre mim e agora você podia me falar um pouco sobre você ⸺ pedi.
⸺ Não há muito o que falar.
⸺ Tenho certeza que há. Você tem namorada? ⸺ perguntei e vi que ele ficou sério e olhou para baixo, mas mesmo parecendo contrariado me respondeu:
⸺ Não.
⸺ Não? ⸺ perguntei, insistindo.
Ele pensou e parecia cogitar me contar algo doloroso, então encheu a sua taça de vinho e falou baixo, como se tivesse dificuldade:
⸺ Tive uma, ela era incrível e eu era apaixonado por ela, mas eu tenho um problema com a vida ou com a morte, como preferir, todas as pessoas que eu amo... eu perco. ⸺ Ele bebeu um gole do vinho e ainda olhava para baixo.
⸺ Como era o nome dela? ⸺ perguntei, já sentindo um caroço se formar na minha garganta por ver sua tristeza.
⸺ Aline. ⸺ Ele riu sem vontade como se segurasse as lágrimas. ⸺ Ela morreu no dia em que me contou que estava grávida e foi o dia mais feliz e mais triste da minha vida. Uma bala perdida, uma maldita bala perdida que podia ter me atingido, mas atingiu a ela e eu não consegui protegê-la.
Eu estava com os olhos marejados.
⸺ Sinto muito ⸺ consegui dizer, tentando segurar as lágrimas.
⸺ Isso faz nove anos e eu nunca mais consegui ter ninguém. ⸺ Deu mais um gole do vinho. ⸺ E depois da morte da Aline e do bebê que ela esperava, larguei a faculdade de letras e decidi me tornar segurança na tentativa de descontar toda a minha frustação de não ter conseguido defender a mulher que eu amava, defendendo outras pessoas da morte. ⸺ Ele riu. ⸺ Segui levando a vida de maneira automática, moro sozinho em um Kitnet e guardo todo o dinheiro que ganho, pois não tenho planos nem sonhos nem nada que eu queira tanto ou que me anime a gastá-lo, então criei o hábito de guardá-lo e com isso apenas sigo.
⸺ Somos parecidos ⸺ falei no automático, ele levantou o olhar e me encarou.⸺ Eu também ultimamente apenas sigo e consigo entender o que você vem sentindo todos esses anos, Othon, e sei o quanto sente-se... sufocado. Eu não ando tendo motivos para sorrir e apesar de não ter perdido ninguém, sinto a morte quando penso que uma parte de mim morreu, ou melhor, uma parte de mim foi morta por críticas e cobranças.
Ele assentiu, ficamos em silêncio até que eu falei baixo:
⸺ Sinto muito por suas perdas e entendo perfeitamente a sua dor, mas você não pode pensar que você morreu também. Você ainda está vivo e posso não ser a pessoa mais indicada para dar esse conselho, porém, sempre fui melhor em aconselhar do que seguir conselhos, então acho que você já viveu seu luto e tem que honrar as pessoas que se foram, vivendo. E se algo acontecer e você perder alguém, isso é a vida, um dia será alguém perdendo você.
Ele ficou de cabeça baixa e parecia apertar os lábios se controlando até que disse:
⸺ Obrigado, eu precisava ouvir isso e saiba que eu também sinto pelas suas perdas. ⸺ Othon falou baixo e depois me encarou. ⸺ Percebi o quanto você tem que aguentar e você é muito forte por se manter com sanidade naquela casa, vejo você como uma pessoa que tem tudo e ao mesmo tempo não tem nada. ⸺ Eu tive que desviar o olhar do seu e com os olhos fechados, senti as lágrimas escorreram por meu rosto.
⸺ É exatamente isso ⸺ sussurrei, aliviada por alguém enfim me entender.
Com isso ficamos em silêncio e só o barulho dos trovões lá fora, era ouvido entre nós. Ficamos sem assunto para continuar e ambos sentindo o peso das nossas vidas, mas pela primeira vez eu não me senti culpada por ter tudo e reclamar, pela primeira vez eu senti que alguém entendia que eu tinha problemas e entendia o que eu sentia. Um estranho que entrou na minha vida há dois dias, me entendia tão perfeitamente que eu tinha até medo.
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