Falando demais
Capítulo três
Era domingo e resolvi levar meu cachorro para passear no Parque dos Pássaros. Parque que ficava um tanto longe de onde eu morava, mas valia a pena por ser bem arborizado e cheio dos pombos que o Panfleto adorava correr atrás, além de ter espaço de sobra para que nós dois fizéssemos exercícios.
Coloquei uma calça legging preta, uma regata verde, com um top preto por baixo e um tênis confortável que completava meu look fitnes. Meu cabelo preso em um rabo de cavalo me deixava ainda mais com cara da atleta que nunca fui. Liguei para Karen e Fernanda e as convidei para ir comigo, as duas me xingaram e disseram que era cedo demais para correr, ainda mais sendo um domingo, mas ambas disseram que me encontrariam lá um pouco mais tarde. Na verdade nem eu sabia qual o milagre que tinha acontecido comigo que me fez acordar cedo.
Peguei as chaves do carro e a coleira do Panfleto, enquanto isso o danadinho ao perceber que íamos sair, ficou todo animado.
— Você, hein, Pampam?! Passa o dia todo se arrastando pela casa, na maior preguiça e fingindo não me ouvir, mas é só eu pegar a coleira que já fica todo serelepe.
Ele sentou-se sobre as patas traseiras, me olhou com a língua de fora e caída de lado, parecia feliz e até mesmo sorrir e assentir para o que eu dizia. Peguei a minha bolsa e abri a porta apontando com a cabeça para que ele passasse por ela, assim ele fez e parou em frente ao elevador, me esperando com o rabinho balançando, enquanto eu trancava a porta. Ainda me olhando ele emitiu um barulhinho como se fosse um choro dengoso, mas que na verdade como eu o conhecia, sabia que era o seu jeito de me dizer para andar logo.
Chegamos ao parque, fechei o carro e coloquei a coleira no Panfleto, que parecia animadão. Começamos a fazer uma caminhada leve como aquecimento, antes de tentar correr. Corrida era a moda do momento, todo mundo saía para correr, mas eu era sedentária e fazer exercícios era um sacrifício, entretanto, eu estava tentando ser fitnes, sem muito sucesso, mas todas as vezes que me olhava no espelho, os meus quilinhos extras me lembravam de que eu precisava ter força de vontade.
Logo ensaiei uma corrida leve, depois acelerei o ritmo e Panfleto me acompanhou como se estivesse brincando. Ele me olhava com sua linguinha de fora e sua carinha de feliz que me fazia sorrir. Após não muito tempo que corríamos decidi parar para descansar, porque eu já estava suando, com a respiração ofegante, as bochechas vermelhas e quem me visse de perto acharia que eu estava tendo um pequeno ataque cardíaco. Naquele momento eu só conseguia pensar nas meninas da agência me falando que com o tempo a sensação de morte passaria e meu corpo se acostumaria com o exercício.
Paramos no primeiro quiosque no caminho, comprei um Gatorade para mim, uma água para o Panfleto e o levei até o gramado que ficava de frente para um grande lago. Nos sentamos e ele parecia rir da minha cara de acabada, enquanto eu colocava a sua água em um potinho que o dono do quiosque me disponibilizou.
Era cedo, não tinha muita gente no parque e estava bem tranquilo. O gramado verdinho era convidativo, então sem pensar duas vezes deitei nele, me jogando de olhos fechados e descansando meu corpo exausto.
Aproveitei a brisa que vinha em minha direção e tentei acabar com a sensação de que tinha alguém apertando meus pulmões com as mãos. Panfleto deitou ao meu lado e colocou a patinha no meu braço, como se chamasse a minha atenção. Abri um olho tentando encará-lo em meio aos raios de sol daquela manhã de domingo e falei:
— Você me olha com essa carinha de superatleta, porque já veio programado para correr. — Ele resmungou e olhou para o lado contrário do qual eu estava olhando. — Você é tão metido! Um dia eu vou correr tanto, que você vai ficar cansando e tentando me acompanhar. — Juro que vi Panfleto me lançar um olhar de deboche.
Balancei a cabeça em negativo para ele, me sentei e quando minha respiração já estava sob controle resolvi abrir meu Gatorade. Tirei a tampa e foi eu colocar a garrafa na boca, que uma bolinha de borracha veio saltitando depressa pela grama, vindo em minha direção e em seguida bateu no meu braço, me fazendo derrubar toda a garrafa de Gatorade em cima de mim e me encharcando com o líquido. Sem entender eu já ia fazer um xingamento, aí foi quando percebi Panfleto ficando todo ereto e em posição de alerta. Virei-me para olhar na direção em que ele olhava e como um jato, uma pequena bolinha de pelo vinha correndo em minha direção. Não deu tempo de fazer muita coisa e a cadelinha se chocou contra mim em desespero, me cheirou toda a procura da bolinha que a pouco tinha me atingido e naquele momento estava perdida em baixo das minhas pernas cruzadas. Quando ela encontrou o que procurava, pegou o objeto como se eu não fosse nada e se virou, saindo correndo e animada.
A acompanhei com o olhar e logo mais a frente estava o seu dono: com as mãos na cabeça, cara de pedido de desculpa, como se me atingir não fosse sua intenção e quando vi quem era o dono...
Vinícius!
Ele veio andando até mais próximo e a cadelinha ao lado dele, com sua bolinha na boca e parecendo muito satisfeita e feliz.
— Oi, te machuquei?
— Oi. — Sacudi a minha regata, no intuito de tirar o excesso de Gatorade. — Não, estou bem.
— Me desculpa pela Dona, não era a intenção te atingir.
— Ah! Tudo bem, acontece. É muito normal molhar as pessoas com bebidas e eu nem fico brava com isso, sabe? — falei sorrindo, o lembrando sobre a vez que eu o molhei.
— Verdade, e entre nós acontece com frequência, é como se fosse uma espécie de cumprimento.
— Olha, prefiro que arrumemos outro tipo de cumprimento.
Ele sorriu em resposta e ficamos em silêncio, o que me deu tempo para admirá-lo rapidamente. Meu chefe estava apetitoso em uma bermuda de corrida, tênis e camiseta branca.
— Quer se sentar com a gente? Vejo que nossos amigos já fizeram amizade. —Olhei para frente e a cadelinha dele, junto com Panfleto, já corria pelo gramado e ambos dividiam o brinquedo, correndo atrás da bolinha.
Vini sentou-se ao meu lado e ficou olhando para os nossos bichinhos em silêncio. Eu sempre ficava desconfortável com silêncio, sendo assim logo tinha que quebrá-lo:
— Como é mesmo o nome dela? — Apontei para a cadelinha peluda, que parecia mistura de poodle, com vira-lata e pano de chão felpudo. Um lindo paninho de chão fofo, que brincava com meu Panfleto.
— O nome dela é Dona.
— Bonito nome. Algum significado?
— Apenas que ela manda na minha casa e é dona de tudo desde que a adotei.
Sorri.
— Ah, que ótimo! Eu também adotei Panfleto.
— Panfleto? — Ele franziu a testa e sorriu para o nome do meu cachorro.
— Sim, ele que escolheu o nome. Bom, na verdade, digamos que eu não estava em um momento muito bom quando o adotei e ele me ajudou com a escolha, quando fez uma bagunça com uns panfletos velhos, na nossa nova casa.
— Nome legal! Dona apareceu no quintal da casa da minha irmã e não quis ir embora. Era como se fosse de lá há muito tempo e sempre que me via abanava o rabo e ficava alegre como se me conhecesse, então foi inevitável ficar com ela.
— Que lindo!
O silêncio pairou entre nós mais uma vez e então foi ele quem quebrou:
— Você vem sempre aqui?
Juro que vi uma insinuação em sua voz. O olhei com a sobrancelha arqueada e então ele continuou:
— Ei! Sou melhor do que isso quando paquero, eu quis dizer exatamente o que perguntei.
Me senti boba e fiquei sem jeito, mas tentei disfarçar, afinal, aquele cara bonito na minha frente era filho do dono da agência.
— Eu sei, estava descontraindo. — Dei de ombros. — E respondendo a sua pergunta: nem sempre, venho de vez em quando, fazer exercícios e trazer o Panfleto para passear. Bom, fazer exercícios é exagero, porque sou sedentária, corro dez minutos e estou morrendo, mas preciso fazer exercícios pela saúde e para ver se dou um jeito na forma de bola. — Ri com a minha própria piada besta.
— Eu acho que você está ótima — Vini falou olhando para o meu corpo e senti um calor misturado com vergonha, apesar de ele ter falado de forma natural, sem nenhuma segunda intenção. — Quanto à saúde, eu concordo, fazer exercícios faz bem.
— É verdade! E então, conseguiu marcar aquela reunião com o cliente da marca de sapatos? — mudei de assunto.
— Sim, pedi pra secretária ligar várias vezes. Apesar de o cara ser difícil de encontrar, ele faz questão de acompanhar todo o processo.
— Ah, ele é assim mesmo. — Ri.
— Mas a Sílvia conseguiu contato com ele, aí marquei a reunião, mas não sei se você vai gostar.
— O que aconteceu?
— Terei que viajar para o sul, para apresentar o projeto pessoalmente. O cliente está com um problema na empresa e não consegue vir.
— E por que eu seria contra isso? — Franzi a testa em desentendimento.
— Porque você terá que ir comigo. — Ele testou minha reação e continuou: — Aquele mala faz questão disso. Tentei persuadi-lo, mas ele disse que quer você, já que quem estava desde o início com o meu pai, era você. Vai ser apenas um final de semana, podemos ir no sábado de manhã, marcar a apresentação no sábado à noite e voltar no domingo de manhã.
Que saco! Pensei no quanto eu detestava ter que viajar a trabalho.
— Acho que você não gostou da novidade — ele falou sem jeito, como se tivesse lido a expressão no meu rosto.
— É que não gosto de deixar o Panfleto sozinho, mas como é rápido, tudo bem, eu vou.
— E, além disso, peguei mais uma campanha ontem — ele falava como se testasse a minha reação.
O olhei e sinceramente eu queria xingá-lo. O pai dele nunca pegaria um projeto naquela época do ano. Era quase Natal, poxa! Fora que ele viu o quanto trabalhamos nos últimos dias só para que eu conseguisse deixá-lo a par de todas as campanhas.
— Seu pai não teria feito isso — falei e logo me arrependi, pois ele fechou a cara.
— Talvez, mas é um cliente grande e essa campanha pode nos render algo grande.
— Mesmo assim. Começar agora pode exigir muito da equipe, tem a pausa para as festas e também...
— Bom, eu achei válido — Vinícius me interrompeu parecendo irritado — Como responsável pela empresa, sei que recusar uma campanha como a que apareceu é loucura. E na verdade eu não deveria estar discutindo isso com você aqui. Amanhã voltaremos a falar sobre isso na reunião de equipe.
Ele se levantou, deu um assobio e chamou a Dona, que veio correndo com a bolinha na boca e Panfleto a sua volta tentando pegá-la dela.
— Já vai? — perguntei sem jeito, ele apenas assentiu.
Dona e Panfleto chegaram próximos a nós abanando os rabos e Vini disse enquanto se virava para ir embora seguido por Dona:
— Até amanhã, Celina.
— Até amanhã.
E se virou para ir embora deixando a mim e Panfleto os olhando.
O que foi que eu disse que o chateou?
Revisei mentalmente o que eu tinha dito e ao analisar melhor, pensei que ele podia não ter gostado que eu o comparei com o seu pai, mas a verdade era que eu conhecia o jeito do senhor Mauro trabalhar melhor do que ninguém, sabia que ele não fecharia uma campanha grande em pleno final de ano, porém, ninguém gosta de comparação.
Celina, sua burra!
Olhei para frente e Panfleto me encarava.
— Para de me olhar assim, que você nem viu o que aconteceu.
Ele virou a cabeça de lado e me olhou como se não entendesse o que eu estava dizendo.
— Tudo bem, vamos correr. Eu preciso ser fitnes!
Mais tarde naquele dia, encontrei com as minhas amigas na casa da Karen. Éramos as três viciadas em café, então nossos encontros eram sempre regados a muita cafeína e muitas gordices, que era como chamávamos tudo que nos engordava, mas não conseguíamos largar. Quando contei a elas que Vinícius parecia ter ficado chateado pelo o que falei, Fernanda falou com a boca suja de sempre, pois ela adorava se expressar usando palavrões:
— Caralho, Celina! Não acredito que você disse isso a ele.
— Não falei por mal.
— A gente sabe, mas ninguém gosta de ser comparado — Karen disse dando um gole na sua xícara de café.
— Aiiii... Tô me sentindo mal e vocês sabem como eu sou: fico matutando uma coisa e enquanto não resolvo fico pensando nisso até resolver.
— Sim, sabemos como você é. — Fernanda revirou os olhos.
— Ei, eu sou legal!
— Sim, dormindo — Karen me provocou e nós três rimos.
— Bom, amanhã vou me desculpar com ele. Sei que fui atrevida e não devia ter dito o que ele tinha ou não que fazer.
— Faça isso — Fernanda falou. — Agora nos conte: como ele estava vestido no parque?
Fiz cara de desinteresse e falei:
— Nem reparei.
Karen quase cuspiu o café que estava tomando e falou após se recompor:
— Para, né? Impossível não reparar. Aquele homem...
— Muito melhor que o senhor Mauro. Digo fisicamente — Nanda falou pensativa.
Eu ri.
— Tá, tudo bem, admito, sem querer admitir, mas admito: ele estava delicioso.
As duas gargalharam
— Disso eu já tinha plena certeza. Desgraça de homem bonito! Ele é tão alto e tem um sorriso tão sedutor — Fernanda falou e só faltou babar.
— Eu não vou comentar mais nada, porque meu marido está em casa e vai que ele me escuta falar da delícia do meu chefe — Karen falou e nós três rimos.
Passei à tarde com as duas e quando decidi ir embora já era noite. Minhas amigas, desde que comecei a trabalhar na MW Publicidade, foram as pessoas que enxugaram minhas lágrimas e sorriram comigo, me apoiando a não voltar para a minha antiga cidade. Cidade essa em que conheci meu ex-marido e de onde saí para respirar novos ares, indo parar ali e fugindo do relacionamento que me quebrou e até aquele momento me feria.
Tanto Fernanda, quanto Karen, eram casadas e felizes em seus relacionamentos. Fernanda tinha uma filhinha de três anos e Karen um menino de cinco anos. Às vezes me pegava admirando a família delas e pensando que gostaria de constituir família também, entretanto, logo me repreendia e pensava que a minha família era o Panfleto e estava muito bom. Não precisava de nada mais que o meu bichinho que enchia a minha vida de alegria e quando cheguei em casa, lá estava ele: abanando o rabo, me recebendo feliz e fiel a mim, como nem um ser humano seria.
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