Capítulo 2
Roma, abril de 1.954
Ainda de olhos fechados, Luna tateou até encontrar o despertador e desligá-lo. Aquele momento, quando ela iniciava sua próxima missão, era sempre o pior e assim, manteve-se de olhos fechados o máximo que conseguiu pois sabia o que viria depois. O processo era sempre o mesmo, e depois de mais de quatrocentos anos trabalhando como assistente, era impossível não se questionar por que Ele não encontrara um método menos agressivo. Às vezes, chegava a pensar que aquele processo inicial também tinha como intuito lembrar a todos os assistentes de que eles ainda eram, de certa forma, humanos e que estavam trabalhando por sua evolução. Mas, ainda assim...
Lembrando que tinha um horário a ser cumprido, a contragosto, ela finalmente abriu os olhos e então, o processo teve início. Em fração de segundos, todas as memórias de sua nova identidade para o desempenho daquela missão começaram a ser descarregados em sua mente, como se alguém tivesse plugado um cabo na base de sua cabeça e tivesse iniciado o download das informações. Naqueles momentos, Luna sentia como se seu cérebro pudesse explodir.
Imagens desfilavam em sua mente em uma sucessão verdadeiramente assustadora, como se estivesse vendo o filme de toda a sua vida, desde o nascimento até aquele momento, em câmera rápida. Para aquela missão, Luna era uma bibliotecária que havia nascido na Sicília e se mudado recentemente para Roma em busca de trabalho. Sua mãe falecera há alguns anos e o pai havia se mudado para Nova York. Aliás, aquele era um traço característico em suas missões: ela sempre era uma pessoa solitária, sem parentes próximos ou amigos íntimos. No máximo, algum vizinho a conhecia superficialmente, ou às vezes, um colega de trabalho. Mas, nas raras ocasiões em que aquilo era necessário, Ele se incumbia de fazer o download de memórias necessário às pessoas com quem ela tivesse que interagir.
Para as pessoas comuns, tudo era feito sem dor ou efeitos colaterais. A sensação que elas tinham era como se estivessem em um sonho: você nunca se lembra de como ele começou, apenas que está nele. Elas não se lembravam de onde a conheciam, apenas que a conheciam, mas para Luna não era assim. O processo era sempre o mesmo: primeiro, o download das informações daquela existência que ainda a fazia cravar as unhas no colchão e sufocar o grito que vinha involuntariamente em sua garganta. Quando as imagens cessavam o seu desfile enlouquecedor, chegava a segunda fase. Aquela que a fizera levantar-se e correr para o banheiro, ajoelhando-se na frente do vaso sanitário. Ali, por quase vinte minutos, ela permaneceu ajoelhada enquanto tudo o que tinha no estômago e mais um pouco era posto para fora de forma violenta.
Ao final daquelas duas fases, Luna se sentia extremamente fraca. Com dificuldade, ela levantara-se e jogara água fria em seu rosto. Após, praticamente arrastou-se de volta à cama onde encontrou, sobre a mesinha de cabeceira, um copo de água e dois comprimidos: um para a dor de cabeça e outro, para o enjoo. Não pôde evitar um sorriso que lhe passou pelos lábios ao lembrar-se de quem os deixara ali: Serafim. Embora estivesse na convivência daqueles seres divinos por mais de quatro de séculos, ainda se arrepiava e emocionava-se ao recordar o tanto de amor que aquelas criaturas devotavam aos seus protegidos. Eles nunca desistiam, mesmo que as pessoas não os ouvissem mais. Sempre que havia algum perigo iminente, tentavam intervir de alguma forma. Nem sempre conseguiam, era verdade, pois no mundo moderno não havia apenas a luz, mas também muitas sombras. E, infelizmente, Luna há muito testemunhava um aumento cada vez maior no número destas.
Sempre que ouvia um relato de alguém que havia sido salvo de um carro desgovernado ou uma viga que despencara segundos depois de ter sido misteriosamente empurrado por um "apressadinho" ou que recebera um sábio conselho de alguém desconhecido que parecia ter as palavras certas, ela reconhecia a intervenção de um assistente.
Anjos, como seres etéreos que eram, poderiam se materializar por breves períodos assim como os humanos se tornavam etéreos durante os sonhos, porém, ajudar a seus protegidos era um trabalho em tempo integral e assim, valiam-se de assistentes como Luna. Estes eram seres que estavam entre os dois mundos – o material e o espiritual – e embora nascessem e morressem como qualquer pessoa, os assistentes atuavam quando os anjos não se faziam mais ouvir. Eram enviados de um lugar a outro de acordo com o planejado pelo anjo a quem assistiam sendo utilizados para intervenções pontuais e específicas quando os pupilos começavam a se desviar do caminho traçado no plano superior e precisavam retornar. Como seres em busca de evolução, não lhes era permitido interferir no livre-arbítrio, enganar, ludibriar, iludir ou praticar qualquer ação ou comportamento que fosse contra os princípios ensinados pelo Mestre.
Por sua origem híbrida Luna podia ver, ainda, as pobres almas que perambulavam pelo mundo dos vivos: alguns, simplesmente por que estavam perdidos; outros, por que se recusavam a sair do plano terreno, quer fosse por achar que tinham pendências a serem resolvidas ou porque, materialistas demais como haviam sido em vida, negavam-se a aceitar a morte. Alguns chegavam a reconhecê-la como um ser diferente, talvez, pela energia singular que ela emanava; normalmente, esses eram os que já haviam aceitado a morte e encontravam-se perdidos. Resgatá-los não era sua missão, mas Luna se condoía de sua situação e acabava se dedicando a conversar discretamente com aquelas almas perdidas. Muitos queriam apenas ser ouvidos, desabafar toda a mágoa e a dor que sentiam e nesse momento, ela pedia ajuda aos espíritos superiores. Estes seres iluminados normalmente vinham em grupos e dedicavam-se a resgatar as almas penadas, levando-os para que pudessem terminar sua cura no outro plano.
Luna não conseguia deixar de se sentir emocionada sempre que obtinha êxito ao participar de um "resgate", como aquelas operações eram chamadas. Claro que ela procurava desenvolver aquelas atividades onde ninguém pudesse vê-la, do contrário, corria o risco de ser encaminhada a algum hospício, caso alguém a visse falando sozinha. Afinal, apenas ela era, de fato, humana.
Infelizmente, ainda havia os que continuavam presos à matéria e acabavam "vampirizando" as pessoas de quem se aproximavam, agindo como verdadeiros parasitas. Alimentavam-se da energia daquele ser chegando até mesmo a provocar doenças físicas e, quando não mais lhe convinha, simplesmente trocavam de hospedeiro. Esses eram os mais difíceis de se convencer sobre seu novo estado e os mais chocantes de se ver.
Por mais difíceis que fossem aquelas missões, Luna sempre se sentia aliviada ao encontrar Serafim pois aquele era um sinal de que havia terminado mais uma. E concluir mais uma missão sempre lhe dava esperanças de poder retornar ao plano astral e encontrá-lo...Já fazia muito tempo desde a última vez em que o vira e não havia um dia em que não se perguntava se ele já havia conseguido sair de "lá".
Recostou-se na cabeceira da cama esperando que os remédios fizessem efeito e notou que estava em um quarto de hotel. Não era nenhum cinco estrelas, nem o pior que já estivera. Era mobiliado com uma cama de casal, um armário, uma mesinha de chá e uma cadeira. As paredes eram revestidas por painéis de madeira escura e a janela alta e estreita dava para uma rua movimentada do centro da cidade. Quando finalmente sentiu que o mal-estar diminuía, levantou-se e foi até a cadeira onde repousava uma bolsa e no mesmo instante, ouviu uma batida na porta, anunciando o serviço de quarto. Serafim certamente havia solicitado o café da manhã para ela.
Aguardou até a saída do atendente para novamente espiar dentro da bolsa ao mesmo tempo que mastigava uma pequena fatia de pão. Encontrou seu passaporte e uma passagem com destino a Nova York, voo saindo naquela tarde.
— Sabrina Di Máximo. – leu em voz alta, observando a foto do que deveria ser ela naquele momento.
Jovem, alta, loura, cabelos encaracolados e olhos claros. Não era exatamente bonita, mas havia algo em sua atitude ao olhar para a câmera que a tornava atraente. No armário encontrou um tailleur cinza pendurado juntamente com uma camisa de seda branca e sapatos pretos de salto alto e nada mais. Luna terminou de tomar o café e trocou de roupa, dirigindo-se ao banheiro onde escovou os dentes e os cabelos. Aplicou um pouco de rouge nas maçãs do rosto e passou batom vermelho nos lábios carnudos de Sabrina.
Voltou para o quarto, depositou a nécessaire na mala e fechou-a. Deu uma última olhada no espelho e então, colocando os óculos escuros, saiu para o corredor.
Lunahavia sentado em uma das cadeiras no enorme saguão do aeroporto internacionalde Roma e, com uma revista em mãos, observava o painel à sua frente, bem comoas pessoas que transitavam ali. Após meia hora esperando e já imaginando sehavia se enganado, ela o avistou entrando no saguão com passos apressados.
Giancarlo Modena era um homem alto e magro, de cabelos grisalhos e olhos castanhos. Sua pele era bronzeada pelos muitos anos de trabalho na vinha que pertencia à sua família há muitas gerações. Sempre fora muito trabalhador e homem de poucos luxos. Casara-se com uma prima quando completara dezoito anos e tivera um único filho, Giordano. Desde muito cedo, ele sentia que havia algo diferente com o filho que nunca conseguiu se adaptar ao trabalho pesado da vinha. Naquela época, imaginava que o menino simplesmente não era talhado para a vida bruta. Os anos acabaram levando a esposa, deixando-o a sós com o garoto, então, adolescente.
Depois de concluir a escola, o rapaz havia ingressado na Universidade de Roma. Iria estudar direito, para orgulho do pai. Seria o primeiro de sua família a ter um diploma universitário. Giancarlo continuou na fazenda e precisou contratar alguns funcionários para ajudá-lo, recebendo a visita do filho algumas vezes por ano ocasião em que acabavam brigando devido a ideias tão contraditórias que ambos possuíam. Durante mais de dois anos Giancarlo se preparou para ir à capital e resolveu fazer uma surpresa ao filho. Endereço em mãos, dirigiu-se ao pequeno apartamento alugado no bairro de San Lorenzo. Com grande ansiedade, bateu à porta e aguardou, ciente de que o filho ficaria surpreso.
Giordano abriu a porta e o inesperado aconteceu: não só o filho estava surpreso ao ver o pai parado ali, sem nenhum aviso, mas Giancarlo também se surpreendeu ao vê-lo. Ele trajava uma camiseta velha e um macacão surrado, repleto de manchas de tinta. Nas mãos, trazia uma palheta e um pincel; e no rosto, a mais absoluta expressão de incredulidade.
Após alguns momentos de constrangimento, convidou o pai para entrar, caminhando com passos apressados na frente até uma mesa onde depositou a paleta e o pincel. Em contraste com o filho, Giancarlo adentrava lentamente o pequeno apartamento observando as diversas pinturas penduradas na parede e mais umas três que descansavam em cavaletes. Nas mesas próximas às paredes, havia diversas esculturas ou o que pareciam ser esculturas: algumas de metal retorcido, outras, de argila. Mas, afinal, seria aquilo um hobby? Olhou ansioso para os cantos do aposento, procurando por estantes ou as pilhas de livros de direito que havia esperado, mas não havia nada, apenas os quadros. E então o filho lhe revelou o que ele começava a suspeitar: não havia entrado na universidade para cursar direito, e sim, artes plásticas. Ele queria ser um artista famoso!
Artista! Artista! Não, ele tinha que ser um advogado, um advogado muito famoso e não um zé ninguém que lançava borrões e pinceladas coloridas numa tela e chamava aquilo de arte! Sua família era de homens fortes e decididos, que trabalhava a terra de sol a sol para obter seu sustento e ele sentia como se alguém o tivesse acertado em cheio no peito quando constatou o que o filho realmente estudava. Raiva, culpa, decepção e vergonha, todos aqueles sentimentos se misturavam dentro de Giancarlo ao mesmo tempo em que ele buscava em sua memória o momento em que teria errado na educação do filho. "Onde teria errado, meu Deus?". A pergunta que se repetia sem cessar.
Giordano era um menino de ouro, sua falecida esposa sempre dizia. Garoto muito responsável e dedicado, embora não fosse muito afeito ao trabalho pesado da vinha. Por vezes o pai o pegara sentado no meio das parreiras, olhando ao longe e desenhando na terra com um graveto. Achava que aquilo era simplesmente para passar o tempo e jamais suspeitara de que ele realmente pensava em tornar-se um artista. O que seus amigos e vizinhos iriam dizer quando soubessem o que o filho havia se tornado? Um boêmio! Isso é o que ele pretendia se tornar!
Quem sabe uma surra, uma boa surra como as que o pai costumava lhe aplicar quando criança pudessem enfiar algum juízo na cabeça de Giordano! Sim, talvez seja isso que lhe falte! Sem pensar duas vezes, largou a pequena mala no chão e avançou para o rapaz, batendo-lhe com a mão espalmada um par de vezes no rosto. O rapaz não reagiu, buscando apenas evitar os golpes do pai. Discutiram durante quase uma hora até que finalmente Giancarlo disse que não iria mais pagar o aluguel. Com grande sacrifício, o mantinha ali para que estudasse direito, mas se ele queria escolher aquele tipo de vida, então teria que se manter também. Ele não sustentaria nenhum vagabundo!
E com isso, retomou a pequena mala e saiu. Parou no primeiro boteco que encontrou e tomou alguns tragos, sentindo-se o pior dos pais. A pergunta que não saía de sua cabeça "onde teria errado, meu Deus?" o atormentava. Ao mesmo tempo, olhava para trás e tentava identificar em que ponto aquilo teria começado e porque não corrigira enquanto ainda era tempo, antes que o filho se enchesse de ilusão achando que poderia viver de arte? Giancarlo sentia o peso da idade e não tinha tanta agilidade ou força como antes e sempre pensara que o filho poderia ajudá-lo na administração da vinha, mas agora...O que aconteceria quando morresse? Todo o trabalho de gerações naquela terra seria simplesmente esquecido?
Trabalhara tanto por tantos anos sem sequer dar-se ao luxo de fazer uma viagem apenas para economizar o dinheiro com o qual pagaria as despesas da faculdade de direito e agora...Via seu dinheiro sendo usado para...aquilo!! Havia ficado tão orgulhoso quando Giordano ingressara na faculdade! Contara a todos seus conhecidos sobre a novidade com grande orgulho: um dia meu filho será um desembargador!! E agora... Não, ele não aceitava aquilo! O que diriam os vizinhos e amigos quando soubessem a verdade?
E então, simplesmente decidira: gastaria um pouco do dinheiro pelo qual suara tanto para economizar. Faria uma viagem aos Estados Unidos!! Estava convencido de que uma viagem daquelas o livraria do desapontamento e da aflição e assim, comprara uma passagem para o dia seguinte.
Caminhava pelo terminal onde ocorreria o embarque, prestando atenção ao painel que indicava a situação dos voos quando, de repente, trombou violentamente em alguma coisa, ou melhor em alguém. Com o impacto, o copo de café que Giancarlo trazia nas mãos havia se derramado completamente sobre sua camisa, espalhando uma mancha marrom escorrida por todo seu peito.
— Desculpe-me! – disse a moça em italiano, entregando-lhe o paletó que ela apanhara do chão. Seus olhos imediatamente arregalaram-se ao deparar-se com aquele estrago. — Ai, meu Deus! Desculpe-me eu, eu... – gaguejou ela visivelmente sem jeito.
Giancarlo não pôde conter a irritação ante aquela situação. O dia anterior já havia sido péssimo e agora... Estava certo de que Deus o estava punindo! Mas, pelo quê? Após vasculhar alguns momentos em sua bolsa, a jovem retirou um pequeno lenço branco e com ele tentou secar o café de sua camisa. Enfurecido, Giancarlo tomou o lenço da garota e começou ele mesmo a tentar retirar a mancha, sem sucesso, obviamente. Não havia salvação para aquela peça e assim, tinha duas opções: ficar molhado e cheirando a café durante todo o caminho até Nova York ou....
— Por favor, deixe-me reparar esse estrago! Eu compro uma camisa nova para o senhor! Venha comigo! – falou a moça, puxando-o pelo braço inutilmente pois Giancarlo permanecia no mesmo lugar. — Venha! Eu faço questão! Há algumas lojas fora do terminal....
— Não é necessário! – vociferou ele, soltando-se do aperto da jovem com um safanão. — Tenho uma muda de roupas reserva em minha mala de bordo.
Com o semblante tempestuoso, deu uma última olhada à garota e dirigiu-se até o banheiro mais próximo. Precisava recompor-se rápido ou corria o risco de perder o voo.
Não só tivera que trocar a camisa e a gravata, como a calça também, além de ter de se livrar daquele cheiro de café que parecia ter-se impregnado sob sua pele. Olhou o relógio para ver o horário apenas para constatar que ele havia parado, molhado que estava pela bebida. "Ótimo! O que mais faltava?"
Surgiu vinte minutos depois, correndo esbaforido de volta para o terminal. Temia ter perdido seu voo, mas ao olhar o painel, verificou que o mesmo estava atrasado. Com um suspiro aliviado, sentou-se em uma das cadeiras, passando um lenço na testa que brilhava de suor. Retornava o lenço de volta ao bolso do paletó que dobrava e acomodava em seu colo quando deparou-se com um copo de café fumegante à sua frente. Lentamente olhou para a direita e deparou-se com a jovem que o olhava com ansiedade.
— Uma oferta de paz. – declarou ela, mantendo o copo estendido em sua direção. — Pelo estrago que fiz.
Giancarlo considerou a moça durante alguns momentos. Ela era jovem, alta, loura, com cabelos cacheados e olhos claros por trás dos óculos de gatinho de armação preta. Ela o olhava com expectativa e embora ainda estivesse profundamente irritado com tudo o que lhe acontecera nos últimos dias, não pode deixar de sentir compaixão pela forma como ela parecia, honestamente, tentar remediar a situação.
Assim, embora relutante, tomou o copo de suas mãos e o segurou durante algum tempo antes de levá-lo aos lábios. Olhava fixamente para frente, evitando a jovem, mas pelo canto dos olhos, viu que ela bebericava seu café também. Algo em sua expressão não parecia bem e, embora fosse naturalmente acanhado, sem saber muito bem o porquê, viu-se perguntando:
— Viagem a negócios ou a passeio?
A jovem o considerou seriamente durante algum tempo antes de responder:
— Para pedir perdão. – E deu mais um gole no café.
Aquela, honestamente, não era a resposta que ele esperava e isto o fez voltar-se para ela, observando-a com curiosidade.
— Pedir perdão? Isso é...no mínimo, inesperado. – Ela voltou o rosto em sua direção, parecendo trazer um olhar triste. Mais uma vez, em um ímpeto que não lhe era comum, indagou: — O que aconteceu de tão grave a ponto de fazê-la cruzar o oceano para isto?
— Meu pai. Ele e minha mãe se separaram quando eu tinha dez anos. Papai se mudou para os Estados Unidos em busca de trabalho e mandava uma quantia em dinheiro todo o mês para que minha mãe pagasse minhas despesas, até que, dois anos depois, ela também faleceu. Meu pai trouxe a nova família para cá, já que eu me recusava a ir morar fora do país com ele, mas eu... – Ela fez uma pausa, observando a pista através das vidraças. — Eu não me adaptei a eles. Odiava meu meio-irmão mais novo e a minha madrasta também; achava que meu pai dava mais dinheiro a eles do que para mim. Quando a adolescência chegou, as coisas só pioraram. Vivia discutindo com a minha madrasta, achando que ela queria me controlar e brigava com meu pai porque eu achava que ele os amava mais do que a mim. Tivemos uma briga feia quando eu tinha uns dezoito anos e saí de casa. Meu pai me procurou algumas vezes para que eu voltasse, mas por fim, acabou desistindo e voltou para os Estados Unidos. Ele me mandava uma mesada mensal, mas eu sempre queria mais e mais e cada vez que ligava pedindo uma quantia maior, nós brigávamos. Da última vez, ele me disse que não me enviaria mais nenhum tostão, que eu já era adulta e que estava na hora de ser responsável pela minha vida. Fiquei uma fera! Novamente, falei um monte de coisas das quais me arrependo e antes de desligar, eu disse: "eu te odeio" – Nova pausa. Ela girou o copo entre as mãos, parecendo reviver todos aqueles momentos. Então, após um novo suspiro, prosseguiu: — Naquela tarde, um vergalhão da obra em que meu pai trabalhava se desprendeu e caiu mais de dez andares, atingindo a ele e mais dois colegas. Ele morreu na hora.
Os dois mantiveram-se em silêncio por algum tempo. Giancarlo não sabia o que dizer, aliás, nunca fora muito bom com as palavras. Era um homem do campo...
— Quando minha madrasta ligou avisando o que havia acontecido, eu me senti profundamente envergonhada pelo que fizera durante todos aqueles anos. Quando soube de sua morte, percebi que meu pai nunca deixara de ser meu pai ou de me amar ou de se preocupar comigo só porque havia arrumado outra mulher. Ele tentou me mostrar isso durante todos aqueles anos, mas eu optei por me manter presa a um estado de raiva e revolta constante, achando que se eu o machucasse, se deixasse claro o quanto ele havia me magoado quando optou por deixar a minha mãe, eu me sentiria melhor, superior. Mas não me senti...E pensar que as últimas palavras que ele ouviu de mim foram "eu te odeio"... – ela exibiu um sorriso triste: — Ele podia ter deixado de ser o marido da minha mãe, mas nunca deixou de ser meu pai. Nunca e não se passou um dia durante esses cinco anos em que eu não tenha me arrependido daquelas últimas palavras. Acho que nunca se deve deixar a presença de alguém com palavras de raiva ou rancor... – Uma lágrima rolou em seu rosto. — A vida é tão frágil! E também nunca devemos esquecer da essência das pessoas que nos cercam...Como eu disse, meu pai deixou de ser o marido de minha mãe, mas aquele homem maravilhoso, o meu herói...isso nunca mudou, só eu que não vi... E quando ele mudou para cá, só para ficar comigo! Meu Deus! Como fui egoísta!
Por algum motivo que Giancarlo não sabia identificar exatamente, ele passou o braço pelos ombros da garota, procurando confortá-la. Sua história o havia tocado profundamente..."Eu te odeio" haviam sido as últimas palavras que falara ao filho. Mentalmente, repassou os anos que se seguiram desde o nascimento de Giordano até o dia anterior, todos os momentos que haviam partilhado juntos, principalmente depois do falecimento da esposa. Haviam se tornado grandes companheiros e embora naquele dia, fosse muito claro o quanto o rapaz pudesse odiar trabalhar a terra, ele nunca havia se queixado. Como o pai daquela moça, Giordano também havia feito sacrifícios para ajudá-lo e o fato de seguir uma carreira que fugia à compreensão de Giancarlo não o fazia deixar de ser aquele rapaz incrível que era seu filho.
No painel, o status do voo fora alterado de "atrasado" para "embarque imediato". As pessoas ao redor começaram a se encaminhar para o portão, ao passo que a jovem também separou sua passagem e passaporte, olhando-o com expectativa.
Giancarlo, por sua vez, pegou suas coisas, levantou-se e, exibindo um sorriso pela primeira vez, apertou a mão da moça com firmeza.
— Foi um prazer conhece-la, signorina. – E então, ele deu-lhe as costas, caminhando na direção contrária ao portão de embarque.
— Onde o senhor vai? – perguntou ela, estranhando aquela reação. — Não vai embarcar?
— Não. Vou terminar o meu dia com palavras de amor e não de ódio. – respondeu ele, vendo um sorriso despontar nos lábios da jovem. Giancarlo deu mais dois passos e então virou-se abruptamente: — Esqueci de perguntar o seu nome!
— Sabrina Di Máximo – respondeu ela, apertando mais o passaporte contra si.
— Foi um prazer, Sabrina.
Com um aceno, Giancarlo se despediu da jovem e caminhou a passos largos para a saída do aeroporto onde tomou um táxi até o bairro universitário. Aguardou sentado sobre sua mala na porta do apartamento do filho por quase uma hora até que ele finalmente apareceu no alto da escada, estacando no lugar por um momento ao deparar-se com o pai. Com passos hesitantes, ele continuou o caminho até a porta e parou a alguma distância, o cenho, franzido.
— Pai? O que faz aqui?
Giancarlo sequer se deu ao trabalho de responder. Levantou-se e abraçou o filho com força, ao mesmo tempo em que o beijou em cada face.
— Eu te amo, mio bambino. – declarou sentindo os olhos molhados.
— Eu também, pai!
Giancarlo passara a noite com o filho que recebera alguns amigos "diferentes" do tipo de pessoa com quem ele estava acostumado a lidar. Mas, para sua grata surpresa, descobrira tratar-se de pessoas que levavam sua arte a sério e que trabalhavam arduamente para divulgá-la e tê-la reconhecida. Vira também a forma como uma garota do grupo olhava de forma especial para Giordano que sequer percebia. Mal sabia ele que estava frente a sua futura esposa... Com a sabedoria que a vida havia lhe dado, Giancarlo estava certo de que tudo tinha seu tempo e chegaria o dia em que o filho enxergaria a moça da mesma forma que o pai. O grupo conversava alegremente quando uma notícia na TV chamou a atenção de todos: o avião com destino a Nova York que decolara naquela tarde havia caído no mar e não havia sobreviventes.
Naquele instante, Giancarlo sentiu a boca seca enquanto o filho o olhava com temor.
— Pai...aquele não era o seu voo?
Ele assentiu com a cabeça ao mesmo tempo em que retirava o lenço que a moça havia usado para tentar limpar o café que derramara sobre sua camisa. Apertou-o fortemente em sua mão, sentindo seu coração dolorido ao lembrar-se da jovem que estava naquela aeronave e que só queria pedir perdão ao pai. Pela segunda vez naquele dia, sentiu os olhos úmidos ao observar o pequeno pedaço de tecido em suas mãos com suas iniciais bordadas: "S.M".
— Aquela moça...foi o meu anjo de guarda. – murmurou Giancarlo, enquanto o filho pousava uma mão em seu ombro, aquiescendo.
Hello, people!
Nesta sexta linda, que tal seguirmos o exemplo de Sabrina Di Máximo e terminar o dia com palavras de amor em vez de raiva? Let's go!!
O que haverá após a queda do avião? Prepare-se para visitar um plano completamente novo e siga para o próximo capítulo (sim, porque esse é o meu modo de espalhar amor: capítulo em dobro! =)
E não esqueça de clicar na estrelinha se estiver gostando! ;-)
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