Capítulo 5 - Parte 2
Dez anos antes
O dia estava chuvoso e Isabel tentava se proteger o máximo possível embaixo de uma ponte que levava ao povoado em que vivia com a mãe. Abraçou os joelhos contra o peito na tentativa de afastar o frio que as roupas molhadas lhe provocavam, mas o fato é que não conseguia parar de tiritar. Não comia desde o dia anterior e olhava com desconsolo para a mata à sua frente....Sentia-se sozinha e com medo.
Isabel nunca havia conhecido o pai, que morrera pouco antes dela nascer vivendo sob os cuidados da mãe. Ela trabalhava servindo bebidas em uma taverna, mas o dinheiro que ganhava com aquilo não era o suficiente para comprar comida e pagar o aluguel do pequeno quarto que ocupavam. Assim, com sete anos, não houve outra alternativa para Isabel a não ser começar a trabalhar como faxineira na estalagem que ficava ao lado da taverna. A vida era dura para ambas, mas a mãe sempre procurara disfarçar a miséria em que viviam com gestos carinhosos e alguns passeios quando o dono da taverna permitia.
Ambas sempre se levantavam muito cedo, antes do o sol nascer mas, naquele dia, a menina acordara com os raios incidindo sobre sua cama através dos vidros imundos e engordurados da pequena janela. Com um sobressalto, começou a sacudir a mãe na tentativa de acordá-la. Haviam perdido a hora! Mas, por mais que tentasse, a mãe não acordava. Com medo e chorando, saiu do pequeno quarto e chamou uma vizinha para que a ajudasse, mas quando a velha senhora chegou, seu rosto foi tomado pelo choque.
Isabel não entendeu inicialmente o que estava acontecendo e porque a vizinha insistiu em tirá-la dali às pressas. Mais tarde, o dono da estalagem e outros dois homens chegaram e levaram o corpo enrolado no próprio lençol, ao passo que a vizinha lhe informou que a mãe havia morrido. O dono da estalagem lhe disse que ela não poderia mais ficar naquele quarto se não pudesse pagar por ele e assim, não restou outra alternativa à criança que não reunir os poucos pertences que possuíam (uma camisola e um vestido) e partiu. Não tinha para onde ir e tampouco lhe deixaram voltar para seu quarto, e assim, Isabel perambulou sem rumo pelas ruas de Valência durante a última semana.
A vizinha havia lhe dado algumas provisões que ela colocara em uma trouxa juntamente com as únicas peças de roupa que trouxera consigo, mas elas haviam acabado e agora a menina não sabia mais o que fazer. Não tinha nenhum parente ou amigo...tinha apenas sete anos e estava sozinha no mundo.
Quando a chuva finalmente parou, Isabel saiu do local onde estava. Seu estômago roncava e doía ao mesmo tempo. Subia o pequeno morro que dava até a cabeceira da ponte quando um movimento na estrada enlameada lhe chamou a atenção: cavalos andavam apressadamente puxando um carroção colorido atrás de si, onde um homem muito moreno como Isabel jamais havia visto, o conduzia. Ele trazia um lenço vermelho na cabeça, cobrindo seus cabelos escuros e lisos que caíam sobre os ombros, sua camisa era amarela e a calça, vermelha também. Estava tão concentrado em conduzir os animais pela parte menos esburacada da estrada que sequer viu o pequeno vulto andrajoso da criança. Atrás dele, haviam muitos outros carroções e cavalos, tudo muito colorido e brilhante o que atraiu a atenção de Isabel e fez seus olhos brilharem.
Ela esperou que o último carroção estivesse a uma boa distância antes de começar a segui-los. Pequenos sinos presos ao pescoço das vacas ajudavam-na a se orientar enquanto os acompanhava de longe. Escondida atrás de uma árvore, viu quando pararam em um descampado próximo a um córrego. Imediatamente, dezenas de pessoas saíram de dentro das carroças e um vai-e-vem frenético teve início. Vários homens andaram ao redor do local, provavelmente procurando por animais que pudessem representar perigo e verificando que estava tudo calmo, todos começaram a montar grandes tendas em forma de um grande círculo. Não demorou para que a conversa animada tomasse o ambiente, juntamente com alguma cantoria o que fez com que um pequeno sorriso brotasse no rosto de Isabel. Eles pareciam tão felizes! Ela mesma não se lembrava, em seus poucos anos de vida, de ter se sentido tão feliz a ponto de cantar como aquelas pessoas faziam com tanta facilidade.
Logo, uma fogueira foi acesa para receber um bicho que Isabel não podia distinguir. Ele estava fincado em uma estaca e agora assava sobre as chamas. No instante em que o cheiro de carne assada chegou às suas narinas, sentiu o estômago se revirar mais uma vez enquanto salivava. Lentamente, a menina se aproximou de uma das tendas e, agachada do lado de fora, apurou os ouvidos a fim de constatar se havia alguém ali. Não que esperasse encontrar comida, mas poderia pegar qualquer coisa de valor que pudesse ser trocado por um pão duro e uma tigela de ensopado.
Segura de que a tenda estava desabitada, Isabel levantou a borda e entrou. Imediatamente ficou maravilhada com o cheiro de eucalipto que pairava no ambiente. Grandes almofadas estavam dispostas em um canto, cobertas por uma colcha colorida. Havia alguns tocos de madeira que faziam as vezes de banqueta, além de um grande baú de madeira. Algumas roupas estavam penduradas em uma arara e seu brilho chamou a atenção da garota. Isabel passou as mãos encardidas pelas peças e sentiu a maciez daquele tecido...Era tão diferente do trapo que sempre usava! Olhou com cobiça uma das saias com babados à sua frente...era tão bonita! Seu brilho fez com que Isabel pensasse em uma noite estrelada...A menina continuou analisando o ambiente ao seu redor quando, para seu espanto, verificou que havia uma cesta cheia de frutas aos pés da cama. Sem pensar duas vezes, lançou-se sobre o objeto devorando tudo o que via à sua frente. Chegou a fechar os olhos para apreciar o suave sabor daquela maçã. Ela não era muito grande, mas era extremamente doce e fazia com que Isabel se esquecesse, por alguns momentos, de seu triste destino. No momento seguinte, porém, uma mão forte a agarrou pelo pulso e puxou-a com tanta força que a fez cair e derrubar o que havia na cesta.
Isabel deparou-se com um rapaz de uns quinze anos que parecia gritar com ela enlouquecidamente em uma língua que a menina não conseguia entender. Mas, pelo seu semblante enraivecido, nem precisava que ele falasse sua língua: era claro que estava irritado com sua pequena pilhagem.
— Desculpe-me! Mas eu estava com fome! – tentou argumentar enquanto o rapaz continuava a chacoalha-la com cada vez mais força.
Naquele instante, um outro garoto parecendo ter a mesma idade que o primeiro, entrou falando também aquela língua estranha parando abruptamente o que dizia no momento em que pôs os olhos em Isabel. Ele era alto e magro, com uma penugem escura cobrindo seu rosto de menino-homem. Seus cabelos eram escuros como a noite e desciam pelos ombros, embaixo de um lenço azul que trazia na cabeça. Uma argola dourada pendia de uma das orelhas, assim como diversos colares e anéis enfeitavam seu pescoço e suas mãos. Seus olhos também escuros a fitavam com surpresa.
Agora, o outro rapaz apertava com tanta força seu braço que Isabel sentiu lágrimas de dor virem involuntariamente aos seus olhos.
— Pare, Ivan! Você a está machucando! – falou o garoto no mesmo idioma de Isabel.
O outro começou a responder naquela língua estranha novamente, mas de fato, soltara um pouco o aperto que mantinha no braço da menina.
— Por favor, diga a ele que eu peço desculpas! Estava apenas com fome... – suplicou Isabel com lágrimas nos olhos. — Se vocês me soltarem, vou embora agora mesmo.
O rapaz a considerou por alguns momentos antes de voltar sua atenção para Ivan e falar-lhe algo que o fez olhar com espanto para Isabel. Eles trocaram mais algumas palavras até que Ivan saiu da tenda apressado, deixando Isabel acuada em um canto a observar o garoto que ficara. Ele reunia as frutas que haviam se espalhado pelo chão e ofereceu um pêssego que Isabel hesitou em pegar. Não porque não estivesse com fome, mas o medo do que fariam com ela havia feito com que um nó apertasse sua garganta.
— Vamos, pegue.
Isabel olhou desconfiada mais alguns momentos até que o garoto soltou uma bufada, pegou a mão da menina e a fez segurar a fruta com firmeza.
— Eu me chamo Hiago. E você? – perguntou o garoto, sacando um pequeno punhal da bainha de sua calça e cortando um pedaço de uma maçã que tinha nas mãos.
— Isabel. – respondeu ela, timidamente, baixando o olhar para o pêssego que ainda segurava entre seus dedos encardidos.
— Há quantos dias você não come?
— Dois...
Os olhos do garoto se arregalaram para ela, mas ele não disse nada. Apenas a examinou atentamente o que fez com que a garota se encolhesse ainda mais em seu canto. Mal podia imaginar o que ele via: seus cabelos estavam engordurados, seu rosto, mãos e pés, encardidos e seu vestido, rasgado e sujo. Não tomava banho há mais de uma semana o que certamente causaria repulsa em qualquer pessoa, mas não naquele garoto. Ele a olhava com simpatia, compaixão até, ao ponto de estender-lhe uma fatia de maçã. Isabel timidamente a pegou e levou à boca. Tão doce quanto a primeira que havia comido...
— Você está sozinha? – A menina assentiu com um aceno de cabeça. — E onde estão seus pais?
— Meu pai morreu quando eu era pequena e minha mãe... – Isabel sentiu um nó na garganta enquanto lutava contra as lágrimas. — Morreu na semana passada.
Novamente Hiago arregalou os olhos com surpresa, mas ainda assim, continuou descascando e cortando fatias da maçã que ora servia a ele próprio, ora dava à menina.
O barulho de passos fez com que Isabel se levantasse rapidamente, deixando cair o pêssego e a fatia de maçã, encostando-se à parede da tenda. Ficou em pânico ao constatar que Ivan havia retornado com uma mulher mais velha. Assim como os demais, ela era morena e seus cabelos escuros estavam presos em uma longa trança. Trazia um lenço preso na cabeça apenas com presilhas mas, ao invés dos outros, ela vestia-se totalmente de preto. Ela estacou ao lado de Ivan e olhou para Hiago com ansiedade. O rapaz também levantou-se e foi até ela, falando naquela língua estranha o que fez com que a mulher levasse a mão à boca quando a surpresa tomou seu semblante.
— Minha Santa Sarah Kali! – Foi tudo o que ela disse na língua da garota antes de tomar Isabel nos braços, em um abraço afetuoso.
No início a menina permaneceu inerte, olhando para Hiago com desconfiança ao passo em que ele lhe sorria. Seus dentes muito brancos contrastavam com a pele morena. A mulher continuava a falar com ela naquela língua estranha enquanto beijava suas faces até que pareceu perceber o quão desconfiada a menina estava. Olhou para Hiago e ambos trocaram algumas palavras até que a mulher se afastou, olhando-a com ansiedade.
— Esta é minha tia, Carmem. Ela e meu tio foram casados por muitos anos e têm cinco filhos, um deles, o Ivan. – começou o rapaz, apontando para o primo. — O sonho de minha tia sempre foi ter uma filha, mas meu tio acabou falecendo há dois anos. – Agora, ele a olhava com seriedade. — Nossa gente é muito ligada à mãe terra e Deus sempre fala conosco por diversos meios, um deles, é pelo sonho. Há uma semana, minha tia teve um sonho com Santa Sarah Kali que é a protetora do nosso povo. – Ele lançou um olhar à tia. — No sonho, ela disse à minha tia: "Eu tenho ouvido suas preces, minha criança e não pense por um momento que eu a esqueci. Os laços de sangue são muito importantes, mas ainda mais valiosos, são os laços do coração. Quando a lua mudar na próxima semana, trarei uma filha sem mãe para uma mãe sem filha. Uma filha de coração."
Todos olhavam para Isabel com ansiedade, principalmente a mulher que estava visivelmente emocionada e chorava em silêncio. Isabel olhou para cada um deles e por fim, fitou Hiago novamente. Ele havia sido atencioso com ela e a tratava com simpatia...até mesmo dividira uma maçã! Há uma semana, desde que a mãe falecera, ela não havia falado ou estado na companhia de mais ninguém. Das poucas vezes em que tentara se aproximar de alguma pessoa, fora enxotada como se fosse algum animal sarnento. Naquela época eram tantas as crianças que circulavam pelas cidades sozinhas que ninguém mais parecia se importar com a sorte dos coitados. Ali, ela se sentira segura pela primeira vez, mas, ainda assim, estava receosa.
— Eu...eu acho que não entendi. – disse simplesmente, depois de algum tempo.
— Se quiser, você pode ficar conosco. Ter uma nova família e...uma nova mãe. – falou Hiago, olhando-a com simpatia e apontando para Ivan e a tia. — O que você acha? Quer ficar conosco?
Isabel novamente considerou o grupo e por fim, apenas balançou a cabeça positivamente. Aquele gesto fora suficiente para que a mulher novamente a tomasse nos braços em um abraço apertado.
Aquele fora o começo de uma nova vida para Isabel. Ela fora levada à presença do chefe do clã, irmão de Carmem, Ramirez. Ele era o cigano que ela havia visto no primeiro carroção e era tão forte que, em sua mente de criança, ela imaginava estar à frente de uma grande muralha.
Na sequência, sua nova mãe a levou para uma tenda um pouco afastada onde um grande tacho cheio de água já a esperava. Ela colocou um líquido na água que imediatamente lançou um aroma suave de rosas no ar. Sempre cantando, a mulher a banhava com cuidado: primeiro, lavou suavemente seus cabelos e depois, com gentileza, esfregou seu rosto, mãos e pés até que tudo estivesse muito limpo. Envolveu-a em uma toalha de linho e vestiu um vestido azul claro com babados de um tom de azul mais escuro. Sentou-se em um banquinho e, com a menina entre suas pernas e um sorriso que não abandonara seu rosto por um momento, ela penteou seus cabelos, prendendo uma parte com uma presilha dourada. Ao final, a mãe lhe entregou um espelho de moldura acobreada e com o cabo entalhado com algumas pedras brilhantes e coloridas. A menina assustou-se com seu reflexo no espelho: nunca havia visto seu rosto tão limpo e claro em toda sua curta vida! Trabalhando na faxina, era fácil ficar suja e sem os cuidados de uma mãe ou um espelho por perto... Não pode evitar um sorriso que despontava em seus lábios rosados...
Quando chegaram à tenda que ela invadira mais cedo naquele dia e que seria sua nova casa, Hiago as aguardava. Ele olhou com surpresa para Isabel, abrindo um sorriso encorajador enquanto sua tia conversava com ele.
— O que ela disse? – perguntou a menina.
— Pediu para te dizer que, conforme a nossa tradição, todos os ciganos têm dois nomes: um, o de batismo que só a mãe sabe e outro, pelo qual nós somos conhecidos. – explicou o rapaz, enquanto a menina sentava-se ao seu lado na cama, junto com a mãe.
— Por que?
— Para evitar mau-olhado e qualquer outra carga negativa que alguém queira jogar em você, chamando-a pelo nome. – E vendo a expressão intrigada da menina, deu uma risada. — Calma! Você vai entender com o tempo. O importante é que, seguindo a nossa tradição, a partir de agora você será chamada de Luna.
— Luna? – A menina voltou-se para a mãe que exibia o mesmo sorriso de antes e acariciava-lhe os cabelos.
— Sim, porque você chegou na mudança da lua.
A partir daquele momento, Luna passou a ter uma vida de sonho. Tinha quatro irmãos, todos homens, mais velhos, casados e com filhos. Alguns sobrinhos, mais velhos do que ela, o que era estranho. O tio também ficara viúvo há alguns anos e tinha somente filhos homens, sete, no total, sendo Hiago o mais novo. Casados, com filhos e tendo sua própria vida, não demorou para que Luna fosse adotada pela família como se tivesse nascido ali.
Durante quase um ano, todos os dias, ela tivera lições de romani, a língua dos ciganos, com Hiago. Naquele começo, ele sempre estava junto, uma vez que sua mãe quase não falava espanhol e com paciência, ensinou à menina seu dialeto. Com facilidade, tornaram-se grandes amigos, partilhando diversas travessuras pois, apesar da seriedade que o pai exigia de Hiago por sua idade e sua posição no clã, ele ainda gostava de pequenas traquinagens. No fundo, Luna achava que ele se sentia responsável por ela de alguma forma e ela, por sua vez, o via quase como a um herói.
A conversa entre eles corria fácil, às vezes, bastava um olhar para que se entendessem. Mas, eram ciganos e assim, seu caráter apaixonado se refletia em tudo inclusive nas brigas. Era raro isso acontecer, mas quando Luna e Hiago se desentendiam, eram verdadeiras lutas homéricas, como se o mundo fosse acabar naquele instante. Como há poucos minutos...
Hello, pessoal!
A pequena Isabel deixou sua vida de miséria e abandono para trás no momento em que seu caminho cruzou com o dos ciganos.
Família é mais do laço de sangue, é laço de coração. Então, prepare o seu que o Festival del Verano está chegando com o poder da estrelinha! Não esqueça dela! ;-)
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