Capítulo 1
DE FRANGO A HERÓI
Estamos num tanque gigante, sem água, por enquanto. A multidão se espreme na arquibancada construída ao redor. Estão protegidos pelas paredes magnéticas que contornam o tanque. A selvageria se manifesta na forma de gritos, berros e insultos por parte dos torcedores.
Se alguém não me beliscar, vou continuar a achar que isto é um pesadelo. Nem por um minuto pensei que estaria aqui com os rebeldes da República da América. Para o nosso azar a situação é um tanto assustadora e mortal.
Os açus* mutantes são liberados por várias passagens dos tanques. Os roncos que emitem são assustadores, muito mais do que o tamanho deles. Eles são rápidos, mesmo não estando submersos. Day foi capturado por uma jaula no centro da piscina. Estamos apenas June e eu, as refeições frescas que os açus procuram.
Antes de ser comido vivo, deixa eu contar como cheguei até aqui.
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O tangara azul, nave da Província Oeste, se aproxima da Grande Arena que antecede o escudo protetor da selva, protegida pelo game ,chamado Maps. Permanecemos sentados,tão apreensivos, que esquecemos de desafivelar os cintos.A reunião na cabine de comando terminou, e finalmente os três saem: Day, June e Éden, os três Lendários da República da América, território membro da Província Oeste. Alex acompanha eles ,e interage como se os conhecessem a anos.Bill se levanta para puxar saco. O loirinho metido do Norte. Não fico surpreso, pois foi assim que ele conseguiu uma vaga no Maps.Niara parece ir contra seus próprios instintos. Apesar de não confiar fácil, ela fica de pé e adota uma postura amigável, a fim de conhecer melhor os visitantes.
Meu coração bate mais depressa, o suor desce gelado pelo meu rosto, Meus pés não param quietos nem por um segundo, meus olhos oscilam até mirarem o chão, definitivamente.Ouvir falar muito sobre eles e gostaria que eles soubessem das minhas habilidades, mas o pânico me paralisa.Tudo o que eu queria era uma oportunidade para falar, interagir e sorrir, numa roda de conversa com os três heróis da República.
Jogadores e visitantes se encontram no corredor da nave. O turbilhão de conversas eufóricas me incomoda a ponto de me fazer fechar os olhos. É como um som acusador, me informando o que estou perdendo por ser tão medroso e assustado, e que ,merecidamente, estou na posição que sempre foi confortável para mim.Não tenho forças nem para olhar pelas janelas e observar o grande domo que encobre a selva. Os gritos de empolgação ecoam pelo interior da nave. Os três rebeldes da Província parecem encantados com o que veem.
Alguém senta ao meu lado.
- Ouvi dizer que, quem sai ileso da Província Leste está mais preparado para o Maps.
Levanto a cabeça e observo a expressão sorridente de Éden, irmão de Day. Concordo com a cabeça.
- Você conseguiu o que eu sempre busquei - diz Éden. - Yudi, apesar de ser mais velho, vai tê-lo como inspiração.
Olho para seu rosto ao ouvi-lo mencionar o nome de meu irmão mais velho.
- Como você sabe ? - pergunto.
- Antes mesmo de entrarem no Maps, a fama dos quatro selecionados já se espalhou pelo mundo.
Fico surpreso com a explicação de Éden. Os três rebeldes vieram para a Província Oeste cientes de nossa jornada para chegar até aqui. Éden parece conhecer o que passei nas terras áridas do Leste, antes de ser recrutado .
- O que quero dizer é - continua Éden. - A maioria dos heróis e mocinhos são rotulados com uma capa: bonitos, altos, extrovertidos, populares, corajosos,guerreiros...
- E são mesmo - digo.
- Aquele cara ali - diz Éden apontando para Day. - Meu irmão, é tudo isso que descrevi, mas eu vejo muito além do que essas descrições. Ele é meu herói particular. Tudo o que fez para me salvar tem a ver com sentimentos, não com status, fama, essas coisas. Eu o vejo como meu irmão mais velho, que sempre vai me proteger.
- Acho que entendi você - digo, arrancando risadas de Éden.
- Vamos lá - diz Éden. - Day está ansioso para te conhecer.
- Sério?- digo, relutando para levantar.
Antes do pouso na Grande Arena ,ganhei uma dose extra de autoconfiança ao ser bem aceito numa roda de conversa.Day, June e Éden, nem consigo acreditar! Eles tocaram algumas de minhas engenhocas, e não fiquei bravo. Me senti lisonjeado. Eles ficaram curiosos para saber como é morar em frotas litorâneas, e não poder pisar em terra firme.
Os próximos acontecimentos indicam que esse momento de incentivo veio na hora certa.Logo estaremos no lado de dentro dos portões do Maps.
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Então, aqui estou, saltando entre os ataques desesperados dos açus, que parecem não terem feito uma refeição há semanas. June recebeu um golpe pelos dentes afiados de um Açu. Ela está encurralada entre dois jacarés e uma parede.
Há alguns minutos estou distraindo e saltando entre os bichos para manter ela viva. Faço isso, enquanto recito livros. Pode parecer estranho ,mas é o que motiva minhas ações e movimentos.Aprendi com Alex, o carrancudo do Oeste, que os olhos são uma das poucas partes sensíveis dos jacarés, por isso salto em um deles e o acerto, fazendo soltar um forte ronco.
Enquanto estou em cima do bicho ,balbucio algumas palavras:"O desconhecido chegou no começo de fevereiro ,num dia de inverno, debaixo do frio cortante e da borrasca da neve, a última do ano , pisando o chão coberto de branco ,aparentemente vindo da estacao ferroviária de Bramblehurst ... ele cambaleou até a pensão Coach and Horses, mais morto do que vivo, e largou a valise no chão."*
June sai da zona de perigo. A água entra por todos as brechas possíveis, e enche rapidamente o tanque.Day está impotente, preso e prestes a ser submerso. Nadamos, June e eu, até ele. Tentamos libertá-lo de todas as formas, mas sem sucesso.Consigo observar de perto a relação de apego que os dois têm, algo que sempre almejei.June segura firmemente a mão de Day, que tenta manter a cabeça acima da superfície. Ela está decidida a morrer junto com seu grande amor, caso não haja chance de fuga.
Três nadadores com roupas de mergulho chegam, cortam parte da estrutura que prendia Day,e o liberta. Somos direcionados a uma saída submersa. Um dos nadadores libera tinta vermelha de um recipiente.Dá para ouvir os gritos dos torcedores. Acham que fomos devorados em baixo d'água. Para eles o show acabou.
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Se Éden tem seu herói particular, eu tenho três: Bill, Niara e Alex, amigos que conheci a pouco tempo, mas que voltaram para me resgatar. Enquanto eles me cercam, verificando se tenho algum ferimento sério, Day se aproxima sem proferir palavra alguma, apenas um longo abraço. Fico sem reação, momentaneamente, apenas paralisado.
- Obrigado por salvar ela - diz Day.
- Estamos juntos nessa missão - respondo, em baixa voz.
- Sempre fui um herói para meu irmão Éden - diz Day. - Estou do outro lado agora, graças a você. Sei como Éden sempre se sentiu. Sou eternamente grato a você.
Éden observa de longe, e confirma o que esperava de mim.Heróis sempre existiram e existirão. Não usam capas e poderes especiais. Só precisam de algumas boas virtudes para serem liberados e fazerem a diferença no mundo.
Enquanto isso, seguimos nossa jornada. Me preocupo com nossos amigos convidados, os quais não têm ideia alguma dos perigos desta parte do planeta.Eles tiveram a chance de mostrar para que vieram ao mundo e fizeram isso muito bem na República da América e na Antártida. Eles me inspiram.
Chegou a minha vez.
Algum dia, numa página amarelada de um livro antigo, alguém vai ler sobre um herói comum que mudou o mundo:O grande Daug.
*Açus - Espécie de jacaré da região amazônica.
* Citação de H.G Wells - O homem invisível.
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