5 - O Nome de Deus
Lá estava Fredrick Warren, caminhando preocupado ao lado dos enfermeiros que carregavam o paciente desacordado — Doutor, o senhor não pode ficar aqui, desculpe. — um deles falou com gentileza, pois o conhecia de vista, já que trabalhavam no mesmo lugar.
Freddy assentiu com a cabeça, se conformando em seguir os procedimentos que costumava impor aos preocupados acompanhantes de seus pacientes, e se afastou, deixando as pessoas de branco fazerem seu trabalho. Sorriu ao ver que era o doutor Leroux, que além de seu melhor amigo, era um médico bom e dedicado, que seguia os enfermeiros a passos largos, tendo sido chamado para atender a emergência. O homem nem veria Freddy, tão concentrado estava em sua nova tarefa, se este não tivesse atravessado seu caminho, forçando-o a parar.
— Ei, Fred... — Lerry abotoava o jaleco — Estou numa emergência agora, então...
— É sobre isso que quero falar... não vou tomar seu tempo. — Freddy enfiou as mãos nos bolsos da calça jeans - O paciente é...
— Oh, você o conhece... — Leroux compreendeu rapidamente a expressão preocupada do amigo — Não acho que aconteceu algo muito grave, Fred... mas vamos cuidar dele o melhor que pudermos, ok?
— Obrigado, Lerry... — Fredrick se virou para olhar a equipe que levava a maca — Me avise se ele melhorar ou se...
Lerry pousou uma mão no braço de Freddy e seguiu seu caminho. O doutor Warren, por sua vez, ficou parado, se sentindo estranhamente apreensivo, preocupado demais com alguém que só tinha visto uma vez. Ajeitando sua mochila nas costas, caminhou para fora do hospital e dirigiu até seu apartamento, onde pediu para que Allie avisasse imediatamente caso o "tio Lerry" ligasse.
— Ok. — disse Allissa, se virando para ver o pai parado atrás do sofá no qual ela estava sentada ao lado de Sam — Aconteceu alguma coisa?
— Um conhecido sofreu um acidente e o Lerry tá cuidando do caso... — Fredrick explicou rapidamente, pousando um beijo na cabeça da filha e da melhor amiga dela.
— A Sam vai dormir aqui hoje, ok? — informou Allie, não se preocupando muito com o conhecido do pai — Queremos maratonar The Vampire Diaries.
— De novo? — Freddy permitiu que parte da tensão que sentia saísse de sobre seus ombros, graças à mudança de assunto — Vai ser o quê? A quarta vez?
— Mas daddy, nós nem decoramos todas as falas ainda... — brincou Samantha, após engolir a metade recheada de um biscoito.
Fredrick riu da fala da menina — Vou tomar um banho. Me avisem se Lerry ligar, ok? — pediu, seguindo rumo às escadas.
Em seu quarto, jogou a mochila sobre a cama e entrou no banheiro, permitindo que a água quente lavasse o estresse que o ameaçava consumir. Alguns minutos depois, já seco e vestido, ligou a televisão para se distrair, sintonizando-a num canal qualquer. Seus olhos viam as imagens e seus ouvidos escutavam os sons provenientes do aparelho, mas Freddy não saberia dizer o que estava assistindo. Seus pensamentos flutuavam para o lado de seu deus encarnado. Seu coração batia preocupado com o estado de saúde dele.
Era fato que tinha imaginado o momento em que o veria outra vez. Contudo, definitivamente não esperava ver a criatura daquela forma, imobilizada, desacordada, ensanguentada.
O que teria acontecido ao insidioso ladrão? Uma agonia estranha crescia no peito de Fredrick, pois ele se lembrava da noite que compartilharam, do calor daquele corpo magnífico e do quão perfeito era aquele ser. Pegou-se temendo o fim daquela tão única forma de vida e se arrependeu por não ter sido mais insistente, por não dizer que queria lhe tocar uma vez mais.
— Vai ficar tudo bem... vai ficar tudo bem... — suspirou Freddy, desligando a televisão ao notar que sequer dava atenção a ela — Droga! Se ele morrer, você nem vai saber o nome dele... — resmungou numa súbita indignação e, em seguida, lembrou que, mesmo que ele morresse, ainda poderia descobrir a graça do deus encarnado na ficha de paciente que fariam para ele no hospital.
Achou este último pensamento um tanto mórbido.
— Você vai ficar bom e vai me dizer a porra do seu nome... — comentou irritado e se virou na cama para dormir.
Na manhã seguinte, Fredrick acordou num pulo, se odiando por estar atrasado para a própria aula na universidade. Vestiu uma roupa social qualquer e jogou um casaco marrom sobre os ombros. Olhou o smartphone e resmungou uma reclamação ao encontrar duas chamadas perdidas. Somente quando colocou a mochila nas costas e se preparava para abrir a porta e deixar sua suíte foi que um fato lhe atravessou os pensamentos com a velocidade e o poder de um raio, forçando-o a parar no exato local em que estava:
Era domingo.
Por estar vinculado à rotina de seus alunos de universidade e médicos residentes no hospital, Freddy trabalhava, normalmente, de segunda à sexta, às vezes aos sábados, tendo a maior parte dos domingos de folga, exceto em casos de grande lotação do pronto-socorro. Seu corpo, contudo, carregava gravada a memória da época em que trabalhava em escalas rotativas, acordando-o cedo nos dias de folga. Um infortúnio, para dizer o mínimo.
Eram seis da manhã quando Fredrick se jogou outra vez na cama, imaginando que Allie e Sam provavelmente estariam dormindo ou assistindo a tal série de vampiros. Se virou preguiçoso debaixo do edredom apenas para pular outra vez da cama quando se lembrou da provável razão para ter as chamadas perdidas.
— Alô! Lerry? — a voz de Freddy pareceu desesperada ao telefone — Você me ligou na madrugada? Desculpe... eu... eu peguei no sono...
— Ei, Fred... — o melhor amigo falou com voz de cansaço — Tô chegando em casa agora, acredita? Nunca mais cubro o plantão de quem trabalha à noite, sabia? Tinha me esquecido do tanto de gente bêbada que aparece... e as brigas de casal? Uma baixaria atrás da outra...
— Deve ter sido uma loucura mesmo... — Freddy não queria ser mal-educado e cortar a conversa do amigo — Como foi o caso daquele meu conhecido? Ele tá bem? — perguntou e sentiu o estômago se contorcer na expectativa da resposta.
— Ah, sim, o seu conhecido... — doutor Leroux se lembrou — A gente tomou um susto com ele, mas... acho que ele vai ficar bem. — respondeu o médico.
Fredrick suspirou aliviado. Sequer percebia estar apertando o smartphone ao ponto de as pontas dos dedos ficarem brancas — Que bom! — comemorou Freddy — Mas que susto foi esse? Ele teve algum problema grave?
— Oh, não, não... nada grave. — se Freddy acreditasse em Deus, teria dito "aleluia" — Parece que foi um pequeno acidente de moto... um carro fechou ele, sei lá... bateu a cabeça de leve, fraturou um osso da perna, porque a moto caiu sobre ela, e se arranhou. Como estava usando capacete, não houve nada mais grave. Graças a Deus. — Leroux explicava — Mas a gente foi tirar radiografias, sabe, para ver se tinha havido alguma outra fratura e aí que veio o susto. O cara é todo quebrado, sabia disso?
— Oh, nossa... — Fredrick escutava as palavras de Leroux com atenção — Nós nos conhecemos há pouco tempo e nunca conversamos muito... eu não sabia que ele....
— Meu amigo... — disse Lerry, ao se lembrar do caso — Haviam fraturas antigas nas costelas, nos antebraços e nas mãos... logo de cara a gente se assustou, pois não vimos que eram antigas, mas a coisa foi feia. Ainda bem que ele se recuperou...
— É... ainda bem... que bom que ele não sofreu nada grave. Obrigado, Lerry... por me avisar... — Freddy agradeceu e se despediu do amigo e colega. Pensou em perguntar o nome da criatura, mas ficou com vergonha de admitir que, de fato, mal a conhecia. Cogitou também a possibilidade de visitar o deus encarnado. Era verdade que nutria um crescente desejo de vê-lo, pois, embora acreditasse nas capacidades médicas de Leroux e dos enfermeiros que cuidaram do caso, precisava avaliar a situação com seus próprios olhos para, finalmente, alcançar alguma paz.
No fim, porém, passou o domingo em casa. Era um daqueles dias cinzentos em que chovia o tempo todo e Fredrick não tinha muito o que fazer, decidindo passar a maior parte das horas lendo em sua suíte e a menor parte delas cozinhando o jantar que compartilharia com Allie.
Precisava resistir aquele sentimento estranho que parecia dar um nó em suas entranhas quando pensava na infame criatura.
II
No final da noite, Freddy se assustou com o som de um trovão. Teria cochilado? Provavelmente, já que não se lembrava de ter visto Allissa trocar o canal da TV.
— Ei, pai... que bom que acordou. — Allie comentou em tom alegre — Vou fazer brigadeiro, quer? — Fredrick não poderia ter deixado de ensinar para a filha uma receita proveniente da terra natal da mãe dela. Ele mesmo tinha se apaixonado pela guloseima de chocolate e fizera questão de transmitir a mesma paixão para a enteada. Se Freddy acreditasse em alma ou em vida após a morte, diria que sua falecida esposa Elenice estaria orgulhosa.
— Pode ser... — o médico se espreguiçou no sofá — Dormi muito?
— Só uma horinha... — a jovem já se encontrava na área da cozinha. — Se quiser trocar o canal, não tem problema. Já acabou o que eu estava vendo. — apanhou uma panela e a colocou sobre a bancada de granito — Ah, pai... e você recebeu notícias do caso do seu conhecido? Ele tá bem?
— Sim, sim... — respondeu Freddy, se esticando para pegar o controle da TV — Parece que ele sofreu um pequeno acidente de moto... por sorte, nada grave. — continuou — Talvez eu o vá visitar amanhã. — comentou enquanto acessava um dos inúmeros serviços de streaming que Allie tinha contratado.
— Talvez? — Allissa indagou, abrindo a caixa de leite condensado e despejando o conteúdo numa panela — Seria chato não ir, não acha? Já que trabalha no hospital e sabe que ele está lá...
— Eu não sei se ele vai estar lá amanhã. Pode ser que tenham dado alta hoje mesmo. — comentou Freddy, buscando algum título interessante no catálogo de terror — E talvez não seja uma boa ideia visitá-lo.
— Por quê? — a garota jogava uma grotesca quantidade de chocolate em pó sobre o leite condensado.
Fredrick suspirou e fez um bico antes de continuar — Ele é o cara com quem... — buscou outra maneira de fala. — Ele é o cara que conheci na casa noturna, se lembra?
— Uau! Por essa eu não esperava! — Allissa ficou surpresa e pegou uma quantidade pequena de manteiga para acrescentar a mistura — Ele sabe que você trabalha no hospital?
— Acho que não... Lerry não comentou nada, então acho que não teve tempo para conversar com ele. — Fredrick largou o controle sobre o sofá e se levantou para pegar um copo d'água — Queria ver o cara, sabe... saber como ele está. Mas, depois do jeito com o que a gente se despediu... sei lá, fico pensando: e se não for uma boa ideia?
— Acho que deveria fazer uma visita. — Allie foi direta enquanto mexia o creme achocolatado com uma colher de madeira — Ninguém precisa saber o que aconteceu entre vocês e vocês nem precisam comentar a respeito. Não precisa ser tão complicado...
— É, eu concordo com você, mas... — Fredrick decidiu se aproveitar da forte amizade que mantinha com a filha — Confesso que estou com medo de ele contar para alguém que a gente... não estou preparado para isso ainda... como você pôde ver naquela noite, no elevador, ele não parece ser o tipo que guarda segredos... — riu, voltando para o sofá e se sentando.
— Talvez você possa vê-lo quando não tiver alguém por perto, já que trabalha no hospital, creio que ninguém irá estranhar um médico indo ver um paciente. — Allie se esforçava para não deixar o brigadeiro queimar — Realmente acho que deveria falar com ele.
— Ok, vou tentar... — sorriu Fredrick, enquanto iniciava a reprodução de um filme qualquer, esperando que Allissa não demorasse a terminar de cozinhar.
Em minutos a menina se sentou ao lado dele, trazendo a panela de chocolate e mais duas colheres. Comeram e conversaram sobre o filme e sobre diversos outros assuntos, retornando, ocasionalmente, para o caso do deus internado no hospital. Freddy não podia deixar de se sentir estranho, considerando que estava a receber conselhos de sua filha a respeito da própria vida amorosa, mas não se daria ao luxo de rejeitar tais ideias, visto que ele mesmo não tinha a menor noção do que fazer e nem outra pessoa com quem pudesse falar abertamente. Certamente, os anos em que ficou sem se relacionar romanticamente o deixaram enferrujado e, mesmo que não o tivessem deixado, ainda não saberia como agir, já que sua atual situação era totalmente nova e inesperada.
No entanto, por mais que não soubesse como, Fredrick Warren sabia que falaria, eventualmente, com seu deus encarnado. Sua mente não poderia conceber uma realidade na qual tal coisa não acontecesse.
Era um fato com o qual já havia se conformado: querendo ou não, seus pés seriam levados ao encontro da divindade. O que faria então? Essa era a incógnita. Se prostraria outra vez como um humilde adorador? Ou negaria sua relação com deus? Sim, Freddy não sabia o que dizer, não sabia como se comportar. O que diria? O que esperava ouvir?
Ao terminar de comer o brigadeiro, Fredrick olhou a hora e decidiu que deveria dormir. Tinha que se levantar cedo na manhã seguinte e precisava dormir bem se quisesse ter o mínimo de saúde mental para visitar o ladrão de batidas de coração — Boa noite, Allie. — deu um beijo na testa da filha e foi para seu quarto, se jogando imediatamente na cama e se permitindo embalar rapidamente pelo sono. Não queria pensar em mais nada. Estava cansado de raciocinar e raciocinar e não chegar a lugar algum.
— Amanhã você lida com isso, Freddy. Agora não. — disse o médico para si mesmo, fechou os olhos com força e enrolou a cabeça.
III
As manhãs de segunda-feira eram as mais chatas para Fredrick. Estando ele próprio com sono, não gostava de ter que lidar com uma sala de aula repleta de alunos chateados por terem que acordar cedo. Não que não tivessem que fazê-lo nas outras manhãs, mas o primeiro dia útil da semana era pior por representar a constatação de que o fim de semana e, portanto, o tempo do lazer, havia chegado ao fim.
Não era incomum ver os sinais da ressaca em diversos rostos ou as olheiras causadas pelas noites sem dormir. Assim, Freddy se esforçava para não ficar irritado quando o faziam repetir cada explicação e quando, após todas as repetições, erravam as atividades propostas. O término da aula era realmente um alívio, um intervalo de horas no qual podia comer algo com seu melhor amigo, jogar conversa fora e aproveitar o dia antes de se enfiar no hospital.
— Ei, Fred... — Lerry gostava de imitar a fala de um personagem de cartoon ao chamar o amigo — Seu amigo tem algum parente? — perguntou ao mesmo tempo em que se sentava a frente de Freddy no refeitório — Esperava que alguém fosse vê-lo ontem, mas não apareceu ninguém.
— Eu realmente não sei, Lerry. — Fredrick respondeu, apanhando uma porção da comida em seu prato — Nos conhecemos brevemente e conversamos bem pouco. Mas é estranho que ninguém tenha ido vê-lo.
— Falei um pouco com ele... ele disse que se lembra de você, — Leroux continuou e Fredrick congelou — mas ainda estava meio grogue por causa dos remédios que demos a ele e dormiu logo. Antes, ele estava mexendo no celular, então achei que estava chamando alguém. No fim, ninguém apareceu e eu perdi a chance de perguntar se queria que avisássemos alguém da família...
— Ele... ele disse que se lembra de mim? — Freddy não escutou nada após ser informado de que o deus encarnado ainda sabia quem ele era.
— Sim. — respondeu Lerry, engolindo uma garfada de comida — Quando falei seu nome, quer dizer, seu apelido, ele pareceu ter dificuldades para lembrar, então te descrevi um pouco e o cara falou seu nome completo.
— E ele falou mais alguma coisa? — Warren já estava mais calmo, pois, ao que tudo indicava, o deus não tinha contado nada sobre a noite que compartilharam.
— Só que era legal saber que você trabalhava no hospital. Mas o tom com o qual disse isso não me pareceu feliz de verdade. — Lerry fez cara de pensativo e voltou a comer sua comida — Bem, o que eu queria dizer é que, já que ninguém foi ver o cara, talvez seja melhor que vá... um osso da perna rachou no acidente e ele vai precisar de muletas e tem também o risco de trauma craniano, já que ele chegou a desmaiar antes do socorro chegar. Não é bom que ele fique sozinho, mas não posso ficar adiando a alta até aparecer alguém...
— Estava planejando uma visita... — Fredrick comentou, comendo a salada de tomates, queijo e frango desfiado — Vou perguntar a ele se tem alguém que eu possa chamar. — encerrou o assunto.
Contudo, ficou preocupado. Imaginava que a criatura tivesse muitos amigos, pretendentes, etc. Qual seria a explicação para dar tão pouco valor à intimidade sexual? Quem tem demais, normalmente, não valoriza o que possui. Essa seria uma resposta bastante razoável e que Freddy dava como certa. No entanto, se surpreendeu ao considerar que seu deus fosse, em verdade, uma divindade esquecida.
Às cinco da tarde, pegou sua carteira e rumou para uma das lanchonetes do hospital. Comprou uma barra de chocolate, um suco natural e um sanduíche de queijo. Com o pacote de alimentos nas mãos, Freddy caminhou até o quarto em que o ladrão de batidas de coração estava e, falando na insidiosa característica do deus encarnado, já sentia seu órgão bombeador de sangue errar o compasso das batidas, ora pulando no peito como se quisesse abrir um buraco em sua caixa torácica, ora mal se movimentando.
Abriu a porta do quarto e seus olhos buscaram a vil figura, encontrando-a deitada sobre a última das quatro camas que haviam no cômodo, virado de lado, na direção da janela e, portanto, de costas para quem entrava.
— Boa tarde. — disse Fredrick se anunciando, mas não foi ouvido. Caminhou mais um pouco, passando pelas três camas vazias e se aproximando dos pés de seu deus. Percebeu que ele tinha fones de ouvidos presos nas orelhas, explicando a falta de resposta a seu cumprimento — Boa tarde. — o médico elevou a voz.
— Boa tarde. — a criatura se virou, puxando um dos fones e se encostando na cabeceira da cama. Os olhos dela encontraram os de Freddy e sua pele branca, levemente arroxeada pelos hematomas, enrubesceu — Doutor...
— Warren, — o médico completou a fala do paciente. — mas pode me chamar de Fredrick ou de Freddy...
— Fredrick está bom. — o deus respondeu, sorrindo sutilmente. Um de seus olhos estava inchado e não se abria tanto quanto o outro — O doutor Leroux contou que você trabalhava aqui. — sua voz era baixa e calma, e seu tom beirava a indiferença. Ele tentava ser prático, impessoal.
— Não vai se apresentar? — Freddy indagou, sorrindo de forma meio irônica e meio sem graça. Nenhum dos dois sabia exatamente o que dizer ou como agir.
— Imagino que já tenha visto o meu nome na ficha. — falou o deus, apagando a tela do smartphone e o colocando sobre a cômoda que ficava no espaço entre as camas.
Fredrick encarou o deus ferido na cama do hospital. Estava tão frágil, com a face machucada e a perna engessada. Parecia pequeno e delicado e... solitário. Ou talvez essa era apenas a maneira como o médico enxergava, pois sentia o próprio coração se partir em milhares de cacos, afundando-se em pena e em vontade de envolver o tal com seus braços e protegê-lo de todo mal.
— Prefiro que me diga, se não for te matar no processo... — zombou, cruzando os braços, sacudindo, por consequência, o pacote de comida — Isso é para você, aliás. Imagino que queira comer algo diferente da comida do hospital e... bem, você fez aquele macarrão...
— Alexander, — disse o deus encarnado, finalmente ganhando um nome para chamar de seu — Alexander Lucius Cavanagh, como você deve poder confirmar na ficha. — sorriu — Obrigado. — agradeceu, recebendo o pacote das mãos de Freddy — Não precisava se preocupar...
— Alex então... — Fredrick sorriu um pouco mais à vontade, aproveitando a deixa para se sentar na beirada da cama do deus e esticar o braço até a parte externa do móvel para apanhar a ficha médica dele.
— Alexander. — a criatura corrigiu enquanto retirava o sanduíche da embalagem.
Mas que homem difícil, puta que pariu! Alexander Lucius Cavanagh precisou quase morrer para revelar o próprio nome e agora se recusava a aceitar um simples apelido? Uma parte de Fredrick se perguntava qual era mesmo a razão de ter decidido ir ver o tal Alexander.
— Não é fã de apelidos, então... — deu de ombros — Como está se sentindo? E antes que decida não responder para proteger a sua privacidade, aviso que estou perguntando como seu médico.
— Minha cabeça dói... na verdade, o corpo inteiro dói. — respondeu após se esforçar para engolir uma porção do sanduíche.
— Sentiu ou está sentindo enjoo ou tontura? — Freddy se levantou e se aproximou da cabeceira da cama. Viu Alexander balançar a cabeça, negando — Traumas na cabeça podem ter sintomas tardios, é importante que me conte ou conte para alguém se começar a se sentir mal, mesmo que de leve.
— Sim, doutor. — Alexander tomou um gole do suco, parecia estar faminto.
Fredrick usou o estranho silêncio entre os dois para observar novamente o seu deus. Algo não estava certo, aquele não era o homem voluptuoso que conheceu na casa noturna, não, ali naquele hospital o deus era quieto, quase não se movendo, como se estivesse tentando se esconder, falando pouco como se não quisesse papo. Qual era o problema?
— Quer falar sobre o que aconteceu? — Fredrick perguntou, mesmo já podendo imaginar a resposta — No acidente de sábado e no que quer que tenha acontecido antes...
— Antes? — uma expressão de dúvida surgiu na face lânguida de Alexander.
— Nós vimos as cicatrizes das fraturas antigas que teve... — Freddy explicou.
— Motos não provêm o mesmo nível de proteção que um carro... — o paciente respondeu vagamente e o médico entendeu que nada mais seria dito sobre o assunto.
— Alguém sabe que está aqui? — indagou o doutor Warren, sentindo que aquela brincadeira de não contar nada sobre si estava perdendo a graça — Queremos te liberar, mas ainda há o risco de você apresentar sequelas do acidente... o ideal é que alguém te leve para casa. — foi direto.
— Moro com um amigo... — Alexander respondeu e viu a face de Fredrick se contorcer num riso sutil e debochado — Nós não somos um casal... — a necessidade de se justificar surgiu, fazendo-o explicar mais do que precisava.
— Está certo... — Warren pôs uma mão na cintura. Sentia suas entranhas se movimentarem indignadas e com ódio. Então era isso? No final das contas, seu deus era casado?
— Pense o que quiser... — Alexander retrucou irritado — Esse meu amigo está — buscou uma desculpa para dar — ...viajando... ele sabe que sofri um acidente, mas não poderá vir me buscar... pode me dar alta se quiser... posso ir para casa sozinho.
— Não há outra pessoa que possa vir por você? — Freddy soou mais irritado do que gostaria.
— Nenhuma que não precise pegar um avião até aqui. — Alexander respondeu e tentou sorrir, fingindo não perceber a irritação na voz de Fredrick — Não precisa se preocupar...
— Soube que sua moto foi destruída no acidente. — o médico comentou, respirando fundo para não ser grosso. Sua vontade era deixar aquele quarto e nunca mais olhar a face de seu deus — Tem dinheiro para o táxi?
— Devo ter... — a resposta foi rápida. Não agradava ao deus ver a raiva no rosto de Freddy, mas que culpa ele tinha se o doutor decidira crer que ele mantinha um relacionamento amoroso com o colega de apartamento? O melhor era que aquela conversa terminasse logo.
— Vou te liberar então... — Warren tentou parecer frio — Alguém virá trazer suas coisas e os papéis para que assine. Tente não se envolver em mais outro acidente, ok? — se virou e saiu do quarto antes que o paciente pudesse responder.
Caminhando pelos corredores do hospital até a sua sala, Freddy sentiu seu estômago revirar de revolta. Foi por tal criatura que seu coração parou de bater? Foi por ele que seu corpo se entregou às vontades e desejos que nunca considerou existirem?
O tal Alexander não passava de um hipócrita e mentiroso. Rejeitou o pretendente casado na casa noturna por não conseguir ver outro que compartilhasse do mesmo vil comportamento.
Fredrick entrou no banheiro e lavou o rosto. Precisava tirar aquele sentimento horrível do peito. Não era raiva, não era tristeza, era tudo isso e também não era nada.
Tolo! Tolo! Só podia ser mesmo um tolo para se importar tanto com alguém que só tinha visto uma vez, cujo nome sequer conhecia e que, obviamente, só se aproximara para conseguir uma noite de diversão e nada mais.
Preparando-se para ir pra casa, apanhou sua mochila e seguiu, distribuindo sorrisos sutis como forma de despedida dos colegas de trabalho. Praguejou ao notar que chovia muito e que teria que se molhar no caminho até seu carro.
Andando a passos largos pela entrada do hospital, seus olhos foram atraídos pela figura que fazia um demasiado esforço para descer os degraus da escada que levava até a calçada.
Parou para observar o homem que tinha uma perna engessada, uma mochila pendurada num dos ombros e um par de muletas que não conseguia usar direito. Os cabelos escuros e ondulados jaziam encharcados e colados na pele da face sobre a qual a água escorria e gotejava pela ponta do queixo. Andava devagar, temendo, provavelmente, que fosse escorregar e cair, o que só pioraria a sua já precária situação física. Usava uma jaqueta de brim verde escuro, já completamente molhada, assim como suas calças jeans e all stars pretos.
Coitado, as pessoas passavam e olhavam, mas não ajudavam. Deveriam ajudar...
Fredrick sentiu que deveria ajudar.
— Venha comigo! — falou alto enquanto se aproximava de Alexander, que se virou assustado para ver quem era.
— Eu tô bem... — o deus tentou ser gentil ao negar a ajuda oferecida.
— É sério... — Warren segurou o ex-paciente pelos ombros, ajudando-o a descer os degraus — Me deixe te ajudar, está sendo agonizante te olhar desse jeito. — reclamou — Vamos no meu carro, te deixo na porta da sua casa.
— Fredrick, eu... — Alexander já preparava outra negativa.
— Ei, olha... — o médico interrompeu — Sei que não quer contato ou intimidade... eu já percebi, não sou idiota, ok. — os dois pararam debaixo de chuva — Mas eu não posso fingir que não te conheço depois de... — suspirou — Vamos ser adultos aqui, você precisa de ajuda e eu posso ajudar...
Alexander desviou o olhar. A última coisa que queria parecer era vulnerável. Vulnerabilidade atraia predadores e tudo o que ele não precisava era ser a presa ou prêmio de alguém.
Se sentia desconfortável. Fredrick parecia ser legal e estava genuinamente preocupado, mas insistia em agir como se tivesse qualquer tipo de obrigação ou compromisso com ele. Por acaso ele não sabia a definição de "sexo casual"?
Não. Deixá-lo saber seu endereço não era nem de longe o cenário ideal. Mas o que poderia fazer? Estava mesmo vulnerável, incapaz de cuidar de si mesmo. O mero esforço de descer aqueles degraus fazia seu corpo inteiro doer pelos ferimentos, pelo estresse e pela vergonha de ser visto como um fraco por quem passava em volta.
A ele só restava aceitar a oferta de ajuda vinda da única pessoa disponível. Era o melhor que podia fazer e, se pensasse bem, não tinha do que reclamar. Pelo contrário, deveria agradecer a pessoa com quem só teve uma relação sexual casual e que, mesmo assim, se mostrava tão prestativa, tão preocupada com seu bem-estar.
— Ok, Alexander, isso não é nada demais. — pensou o deus encarnado — Ele só está sendo gentil... não custa nada ser receptivo à gentileza alheia. — tentou se convencer, embora ainda estivesse considerando mil formas de dizer não. Por fim, engoliu o orgulho e a desconfiança, pois, gostasse ou não daquilo, tal solução era a melhor que conseguiria.
Notas Finais: Obrigada por ler! Se estiver curtindo, vote e comente. Abraços
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro