24 - O Mundo na Palma da Mão
— Essa é uma boa pergunta, filha... é a pergunta de um milhão...
E era mesmo.
Pelas semanas seguintes, a tal questão voltava à mente de Fredrick para lhe tirar a paz. Isso porque ele começava a se sentir cada vez mais pressionado para falar a verdade a respeito da própria sexualidade e, claro, do relacionamento com Alex.
No hospital, havia, finalmente, tomado coragem para ir falar com Leroux. Pediu desculpas pelo desentendimento que tiveram e se surpreendeu quando o amigo também pediu perdão por ter sido insensível. Lerry prometeu que tentaria não brincar ou fazer pouco do que chamou de "características sexuais alheias" e Freddy ficou feliz quando, ao contar a Alex que tinha feito as pazes com o amigo, o fotógrafo disse que "educar era melhor do que afastar".
Falando no deus encarnado, foi um dia feliz aquele em que o professor Cavanagh aprovou Allissa em seu pequeno teste como assistente e a indicou para a vaga de estágio. Na escola de artes, houve quem quisesse questionar a decisão do docente, dizendo que Allissa gozava de favoritismo, já que era filha do namorado do professor.
— Não se preocupe com isso, as pessoas sempre terão inveja do que você conquista e vão usar qualquer coisa para tentar provar que eram mais merecedoras do que você. — dizia Alexander — Além disso, a entrevista nem aconteceu ainda, ou seja, pode ser que você nem passe no processo. — riu.
— Isso deveria me animar? — Allie estava sentada no sofá da própria casa e via Alexander organizar imagens dentro de um álbum em seu notebook — Será que não tinha mesmo alguém melhor do que eu para a vaga?
— Não pra mim. — o professor sequer tirava os olhos do computador para encarar a interlocutora — E a decisão era minha. Acho que você já passou tempo o suficiente comigo pra saber que eu não estava brincando quando disse que você iria se desesperar. Não se esqueça do dia em que chorou porque errou a edição das imagens e eu a fiz fazer tudo outra vez. Tenha em mente o dia em que a vaca da minha cliente te ofendeu por que eu não deixei ela desvalorizar o nosso trabalho. Você se esforçou pra caralho por essa vaga. Se esforçou mais do que todo mundo. Se querem achar que foi porque eu durmo com o seu pai, que seja. Você não tem que provar nada a ninguém além de si mesma. — fechou a tampa do notebook e fitou a face de Allissa. — Não se preocupe com o que as pessoas irão achar ou falar, ok?
O sorriso largo da jovem era prova de que ela estava mais tranquila em relação a Alexander e sua influência na vida dela e de Fredrick. O período que passou sendo assistente do professor serviu para que ela se acostumasse com a ideia de tê-lo sempre por perto. Além de que a fez compreender que, embora o professor fosse delicado como uma mula raivosa, ele não possuía más intenções.
Com o tempo, um abaixou a guarda em relação ao outro e os sinais de uma amizade brilhavam aqui e ali.
O resultado disso foi que Alex concordou em convidar seu colega de apartamento para um almoço na casa de Freddy, após a insistência de Allissa, que dizia achar Lucas um fofo.
O médico ficou muito contente por poder finalmente conversar com o tal amigo do qual Alexander sempre falava. Achou-o um doce de pessoa, apesar de um tanto perdido em pensamentos, e adorou ouvi-lo falar de suas origens indígenas, especificamente do povo Sioux que vive entre os estados de Nebraska e Dakota do Sul.
Na ocasião do almoço, Amanda, a namorada de Lucas, fez questão de fazê-los brindar porque, aparentemente, tanto ela mesma, quanto o amigo de Alex tinham sido aprovados para a vaga de emprego no mercado que ficava próximo do apartamento em que moravam.
Por fim, apesar da animosidade entre a moça loira e o fotógrafo, até que apresentar Lucas para Fredrick não foi tão ruim quanto Alex achava que seria. O rapaz estava mesmo sóbrio e se esforçava bastante, assim, por hora, não havia com o que se preocupar.
Alex nem achou ruim quando Fredrick o informou que gostaria de ver o amigo dele de novo.
Outra coisa que, aparentemente, Alexander não achava ruim, era o fato de Freddy passar cada vez mais tempo ao lado de Louise, a fim de escreverem o livro. O médico e a diretora do hospital se encontravam cerca de duas vezes por semana e, nesses dias, Freddy evitava marcar qualquer compromisso com Alex justamente para evitar que a natureza do relacionamento de ambos fosse descoberta.
A pergunta que Allissa havia feito há algumas semanas voltava à mente, fazendo-o pensar em como deveria lidar com a tarefa de "sair do armário".
Sinceramente, Fredrick não tinha o menor interesse na ideia de anunciar para terceiros sua orientação sexual. Considerava aquela uma coisa pessoal e queria ter a opção de manter suas escolhas e gostos para si. O problema era que não podia permanecer a fingir que Alex era apenas seu amigo, principalmente agora que Louise passava de simples associada profissional para amiga e que Leroux parecia menos predisposto a cometer alguma insensatez.
— Me desculpe por ainda não me sentir pronto para falar sobre nós... — disse Fredrick numa noite, após remarcar um encontro em uma exposição de arte com Alexander porque Louise o tinha convidado para uma palestra a respeito do tema do livro que escreviam.
— Eu tô acostumado, Freddy, não se preocupe. — o fotógrafo respondeu e encerrou o assunto — Eu vou sozinho pra exposição...
— Não podemos ir juntos em outro dia?
— Você já remarcou duas vezes, Freddy. Se eu não for dessa vez, não poderei ir depois e aí a exposição vai terminar... — Alexander respondeu sem se importar se suas palavras causariam algum incômodo no interlocutor.
— Me desculpe...
— Olha, tá tudo bem, ok? — por mais que o fotógrafo dissesse que tudo estava certo, seu tom de voz parecia impaciente. Não. Ele parecia cansado. Sim, cansado de se repetir — Você não tá pronto pra falar sobre a gente, eu entendo. É complicada essa questão de família, de se abrir com os amigos... acredite, eu sei... só que eu não posso ficar esperando que você tenha tempo pra mim...
— Pera, a gente tá brigando, é isso? — Fredrick indagou um tanto confuso. Alex dizia que estava tudo bem, mas parecia irritado. Que porra tava acontecendo?
— A gente não tá brigando.
— Então por que você tá falando assim? Eu já te pedi desculpas por desmarcar o encontro e...
— Só pára de me pedir desculpas, ok? — Alexander respirou fundo e falou — Todo mundo fica só pedindo desculpas e nada nunca muda. É irritante!
— O que quer dizer com isso? — Freddy se sentiu verdadeiramente perdido.
— Você não é o primeiro cara que me pede desculpas por ter que me esconder da família e dos amigos dele. — Alex foi sincero — É sempre assim e eu já tô acostumado... eu só... eu só não quero que fique pedindo desculpas como se as coisas fossem ser diferentes amanhã...
— Mas as coisas serão diferentes, Alex... Alex... — Fredrick, que até então estava sentado na cama de seu quarto, se preparando para dormir, virou para tocar o ombro do fotógrafo que já se encontrava deitado — É isso que acha? Que eu vou ficar escondendo a verdade sobre a gente? Eu só não tô...
— Pronto ainda... eu sei. — Alexander se ergueu e se sentou na cama — Eu tenho quase quarenta anos, Freddy, quantas vezes acha que já escutei isso?
— Eu não sou igual as pessoas com quem você ficou...
— Você está com medo de dizer que tá dormindo com um cara, pois não quer prejudicar o seu emprego e as suas amizades. — o fotógrafo foi cru — Se Allissa e Samantha não estivessem contigo no dia da balada, eu duvido que teria dito a verdade para elas também. — viu os lábios de Freddy se moverem, mas nenhum som saiu deles — Até aqui, você ainda é igualzinho aos outros caras com quem fiquei. — soube que feria o médico no momento em que proferiu aquelas palavras — Já passou a época em que eu achava que alguém um dia iria tomar coragem e assumir que estava comigo... que eu iria conhecer uma família que não fosse homofóbica ou que eu podia fazer parte do grupo de amigos dos caras "héteros" que se descobriram bi ou que escondiam que eram gays. Então só para de mentir pra si mesmo... porque o mundo será o mesmo amanhã... as pessoas ainda vão te julgar e te ridicularizar na segurança das casas delas. O que quer que você esteja esperando, não vai acontecer... Ou você se assume ou não... Só não fica me pedindo desculpas pelas decisões que você toma de forma consciente.
— Olha, Alex, — Fredrick estava irritado — eu não tenho culpa pelo fato de outras pessoas não terem tido a coragem de te assumir. Até meses atrás, eu nunca havia parado para pensar que poderia gostar de um homem e muito menos esperava que fosse me apaixonar por um.
Alexander estremeceu ao ouvir a palavra "apaixonar" — Esquece que eu falei alguma coisa, Fredrick. — se deitou, dessa vez, virado para a parede.
— Esquecer? Meu amigo, eu não vou esquecer. — o médico insistiu — Eu não consigo imaginar como deve ser pra você ter que esperar alguém descobrir que tá pronto... e sim, eu vou me desculpar, porque a minha intenção nunca foi te machucar ou fazer você sentir que não era importante. Eu tô sendo sincero contigo desde o começo.
Esperou que Alex fosse dizer alguma coisa, mas só escutou o silêncio.
— Você tá certo, eu não teria dito nada para Allie e eu tô com medo... tô morrendo de medo de contar pra alguém e acabar prejudicando você, a mim ou a minha filha... Esses negócios de bissexualidade... isso é novo e eu tô com medo de me entregar a isso e depois me dar mal... E eu só queria que você fosse capaz de compreender isso, ao invés de decidir descontar em mim as frustrações dos seus antigos relacionamentos. — Fredrick esperou novamente por uma resposta, contudo, Alexander nada dizia — Eu sei que você tá acordado... não vai me dizer nada?
Então o fotógrafo se levantou de uma vez, apanhando a própria mochila e puxando dela a primeira peça de roupa que alcançou. Começou a se vestir apressadamente diante de um Freddy atônito.
— Pera aí, você tá querendo ir embora? — indagou o médico ao se levantar da cama e parar na frente de Alexander, segurando-o pelos ombros.
— Me solta, Freddy. — o pedido veio sério, embora o olhar inseguro se desviasse para não encarar a face do médico.
— Ei... não... para! Vamos conversar, que é isso? Tá louco? Indo embora assim no meio da noite?
— Me solta, Fredrick! — Alex bruscamente afastou os braços do médico de sobre seus ombros — Me deixa!
— Não, senhor! Eu não vou deixar você sair enquanto não me disser o que tá acontecendo. A gente tava bem e do nada você começa a brigar comigo, depois não quer mais falar e agora quer ir embora?
— Quem você pensa que é para dizer que não vai me deixar sair? — a voz do fotógrafo soou falhada e irritada.
— Eu só quero que a gente converse, Alex...
— Eu não quero conversar, eu quero ir pra casa. Pra minha casa!
— Você está sendo irracional, por favor...
— Sai da minha frente, Fredrick... por favor...
— Ok, eu saio. — o médico se afastou do fotógrafo e se sentou na cama. — Mas me escuta antes de sair. Eu só quero que a gente fique bem... Eu me importo com você e com o que você sente. E eu não tenho a menor experiência em — riu — "sair do armário", eu não sei se tô fazendo algo errado e preciso de você para me ajudar a entender... Eu preciso que você fique e me diga o que há de errado, porque a última coisa que quero é machucar as pessoas com quem me importo. Eu não sou do tipo egoísta, não sei meter o pé na porta e fazer as pessoas engolirem o meu jeito e as minhas crenças. Talvez isso seja um defeito. Eu tô procurando um jeito que seja confortável pra mim, pra você e pra todo mundo... mas não adianta nada se eu te ferir na tentativa de não fazê-lo. Alex... você pode ir embora, se quiser. Mas eu realmente gostaria que ficasse e me dissesse o que eu posso fazer pra te deixar feliz.
Fredrick não conseguiu deduzir o que se passava pela cabeça de Alexander enquanto este permanecia parado em frente a porta do quarto, com a mochila pendurada em um dos ombros. Uma eternidade pareceu se passar e o médico estranhou a falta de resposta, verbal ou não, por parte do fotógrafo. Era como se ele estivesse preso naquele espaço, com as palavras do médico o impedindo de abrir a porta e sair ao mesmo tempo em que um incômodo inexprimível não o permitia retornar para o lado do doutor e deixar toda aquela discussão para trás.
Freddy queria ouvir algo, uma reclamação que fosse, pois, qualquer coisa seria melhor do que o silêncio de quem tinha algo a dizer, mas não queria ou não conseguia falar.
Levantando-se, ao ver que Alex nada faria, caminhou até ele e o abraçou por trás. Por ser mais alto, conseguia dar pequenos beijos no topo da cabeça do fotógrafo, afundando o nariz por entre os fios castanhos de seus cabelos. Suspirou aliviado quando sentiu as mãos de Alexander a segurarem seus antebraços, retribuindo o abraço da forma que podia.
— Me desculpa...
— Tá tudo bem...
— Me desculpa... — a voz trêmula denotava a força que Alexander fazia para não chorar.
— Não se preocupa com isso. — Freddy se perguntava a razão daquelas reações tão intensas — Deixa eu fazer um chá pra você... Ou prefere descansar?
— Vamos só dormir...
— Vamos... vamos sim...
II
O relógio sobre a cômoda ao lado da cama marcavam três e trinta quando Fredrick desistiu de tentar dormir. Não estava particularmente inquieto, apenas mantendo os olhos abertos e a encarar a noite escura além dos vidros das portas da sacada.
Cansado de estar deitado, se levantou e vestiu seu roupão, depois, caminhou e abriu as portas da sacada, onde tratou de tomar uma cadeira como assento.
No décimo nono andar, o vento ficava consideravelmente mais forte e mais frio. O mundo também ficava incrivelmente menor e, considerando esta perspectiva, Fredrick se levantou e esticou um dos braços para frente e abriu a mão, observando-a encobrir quase todo o espaço abaixo de si. Naquele momento, o médico podia dizer que tinha o mundo a seus pés, que a realidade mal escapava da dimensão de suas mãos.
Então, virando-se de costas para o mundo, esticou o braço em direção ao homem que jazia adormecido em sua cama e abriu a mão. Riu quando sua palma aberta mal cobriu, em perspectiva, a totalidade do tórax de Alexander. Era o fotógrafo maior do que um mundo inteiro?
Era.
Afinal, era um deus encarnado. Entidades como ele não seriam mesmo fáceis de se compreender.
Virou-se de novo para o mundo e voltou a se sentar, inspirando o ar profundamente enquanto tentava organizar os próprios pensamentos e sentimentos.
— Vai acabar pegando um resfriado nesse vento... — a voz de Alexander tirou Fredrick de seus devaneios.
Sem tirar os olhos da face sonolenta do deus, o médico se levantou, tomando a mão aberta que ele lhe oferecia.
— Quando achei que meu mundo estava resolvido, você veio e mostrou que, na verdade, eu mal estava começando... — Freddy tomou a outra mão de Alex enquanto falava. Um sorriso se formou em seus lábios quando o vento desgrenhou ainda mais os cabelos do fotógrafo.
Alexander esticou os lábios e riu.
— Você sabe que não faço a menor ideia do que quer dizer, né? — indagou entre sorrisos, sentindo seu peito se aquecer diante do rosto também sorridente do doutor.
Se aproximando, Fredrick tratou de beijar a boca de Alexander — Fica hoje comigo... quer dizer... quando acordarmos mais tarde, fique aqui... passe o dia ao meu lado... uma coisa é eu não contar para os outros sobre nós... outra é eu te esconder do mundo. Eu não quero te esconder. Se chegar alguma visita, se algum vizinho nos ver... a gente decide o que fazer. Você me ajuda a decidir o que fazer... tudo bem? Sei que isso ainda não é o que você merece, mas...
— Vamos para cama... — Alexander interrompeu o médico e o beijou de volta — Tá frio aqui fora...
Fredrick assentiu e, ainda segurando as mãos do deus, foi guiado por ele até a cama, onde se sentaram enquanto se beijavam e sobre a qual os roupões que usavam se misturaram aos lençóis embolados num canto. O frio da noite nada pôde fazer contra o calor que emanava dos dois corpos nus que não possuíam qualquer vontade de dormir.
Notas Finais: Esta é a segunda parte do antigo capítulo "Desculpas". Aqui a obra recebe um acréscimo de todo o trecho em que Fredrick se levanta e vai até a sacada. Seja você ou não um conhecedor da primeira versão desta história, espero que esteja gostando. Se estiver, vote e comente para me ajudar a chegar mais longe! Obrigada!
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