𝟬𝟳. REUNIÃO FAMILIAR.
CAPÍTULO 07 | REUNIÃO FAMILIAR
Um cigarro descansava entre os lábios de Edith, que ainda não havia ousado acendê-lo enquanto admirava o silêncio das ruas vazias de Small Heath às sete da manhã de um domingo. Suas sobrancelhas se uniram e formaram uma ruga em sua testa, e devagar, a mulher se recostou contra a batente da porta aberta, sem tirar os olhos da vizinhança incomumente tranquila. Após alguns segundos, ela se permitiu fechar os olhos e aproveitar o momento de quietude, antes de, finalmente, acender o cigarro e dar um longo trago.
Enquanto a fumaça serpenteava pelo ar em sua frente, Edith semicerrou os olhos ao ver uma única figura esguia surgindo ao fim da rua, e abriu um sorriso ladino ao identificar Arthur Shelby caminhando em sua direção, trajando um terno elegante e a costumeira boina. Ela desceu o degrau em frente à porta e cruzou os braços, elevando uma das sobrancelhas no aguardo do homem, que aos poucos parecia perder o medo dela — ou, ao menos, aprendia a esconder melhor. Havia algo profundamente satisfatório sobre ser o objeto de terror de um homem cruel; um senso de poder e segurança que ela raramente sentia.
━ Bom dia, senhor Shelby ━ ela cumprimentou, com o sorriso crescendo nos lábios enquanto o homem evitava seu olhar. ━ Já está tudo pronto?
━ John acordou há pouco e está se arrumando. Tommy inventou alguma besteira para ele, e ele está se armando até os dentes ━ respondeu Arthur. ━ Fez o vestido que pedimos?
Pedimos. Não “mandamos”, como eles estavam acostumados. Edith quis rir, mas segurou o ímpeto e apenas assentiu com a cabeça.
━ Ele está lá dentro. Você quer entrar para me ajudar a tirar do suporte? ━ ela perguntou, jogando o cigarro no chão para se apagar sozinho e caminhando para dentro do ateliê, olhando para o homem por cima do ombro e vendo-o balançar a cabeça em negação. ━ É um vestido bem pesado, senhor Shelby.
Por um mero segundo, um lampejo de terror passou pelos olhos de Arthur Shelby enquanto ele entrava em um embate consigo mesmo para decidir se deveria ou não ficar sozinho entre quatro paredes com a modista.
━ Eu… Eu vou esperar aqui fora. Leve o tempo que precisar.
O medo era melhor disfarçado do que nas semanas anteriores, mas ainda estava ali, ela percebeu. Comprimindo os lábios em uma linha fina e mordendo o interior das bochechas, Edith assentiu e caminhou até a parede em que um bonito vestido de noiva, revestido em rendas delicadas, havia sido pendurado durante aquela semana. Com cuidado para não o amassar, ela pegou o cabide que o sustentava e encapou o vestido para evitar que a sujidade do ar de Small Heath o atingisse, e então caminhou para o lado de fora do estabelecimento mais uma vez.
━ Quando Polly veio pedir o vestido, me disse que a moça já tinha um véu ━ ela contou, estendendo o vestido para Arthur, que assentiu. ━ O vestido está aí, tão bonito quanto poderia ser, e tenho certeza que a moça vai gostar.
━ Quem talvez não goste é o nosso John Boy ━ ele resmungou, pegando o vestido com cuidado e pendurando-o sobre o ombro.
━ Ele já sabia que o casamento havia sido arranjado. Não deve ficar assim tão ofendido por isso ━ ela opinou, soltando uma risada pelo nariz, e o homem se permitiu abrir um pequeno sorriso. ━ Claro, ele não espera se casar agora, mas é bom ter um elemento surpresa, não é?
━ Nós não podíamos falar antes ━ Arthur balançou a cabeça para os lados, enrugando o nariz levemente. ━ Se John soubesse que a data estava próxima, ele poderia fugir. Poderia sequestrar você e conseguir chegar até o fim do plano da última vez, sem que eu e o Tommy conseguíssemos impedir.
A mulher arqueou uma das sobrancelhas.
━ E isso seria tão ruim? ━ ela indagou, com a voz perigosamente baixa, cruzando os braços novamente. ━ Essa garota é uma Lee, e até onde eu sei, vocês também não se davam bem com essa família. Ela não é melhor do que eu. Só é mais útil a vocês.
━ Esse casamento é o fim de uma guerra ━ ele murmurou, com a voz rouca. ━ Com você, seria o início de outra.
Ela sabia que era verdade; após a impulsividade do ato e o tempo que se passou desde a tentativa frustrada de casamento com John Shelby, Edith havia chegado à conclusão que aquilo iria apenas desencadear mais problemas e colocar os membros da família uns contra os outros, e ela estaria no meio de tudo aquilo. Talvez, ao invés de se retirar de situações de perigo, o sucesso de seu plano teria sido o motivo de colocar um alvo em sua cabeça.
Mas Edith jamais admitiria aquilo em voz alta. Jamais admitiria estar errada e ter agido de forma impulsiva, porque não importava mais. De qualquer forma, o casamento não havia acontecido e agora tudo estava bem. Aquilo estava no passado, e ela vivia no presente. E, no presente, John se casaria com outra mulher em uma união mais benéfica para sua família.
Após alguns segundos de silêncio, Arthur voltou a falar:
━ Você vai ao casamento?
━ Se eu não for, quem é que irá dizer que é contra essa união?
━ Vamos cortar a sua língua se fizer isso.
━ Eu posso costurá-la de volta. Quem sabe algum dia eu costure a sua também.
Ele se aprumou, desviando o olhar, e com um simples gesto da cabeça, se despediu, pronto para rumar em direção ao local onde a família Lee se reunia para os preparativos do casamento. Mas Edith nunca sabia quando parar de atazanar Arthur; ela sempre queria mais, nunca temendo o momento em que o homem se cansaria de sua petulância, e dessa forma, ela abriu um sorriso novamente.
━ Está marcado para às dez, não é?
Revirando os olhos sem que a mulher visse, Arthur a olhou por cima do ombro, resmungando algo em concordância. Com uma risada baixa, Edith assistiu o Shelby se afastando até desaparecer pelo mesmo local de onde havia surgido.
Fechando a porta atrás de si para impedir que o frio adentrasse em sua propriedade, Edith se sentou sobre o degrau em frente à porta, aproveitando o raro silêncio e a incomum tranquilidade das ruas naquele momento. Em breve, as pessoas começariam a acordar no dia de descanso; as crianças iriam sair e gritar enquanto corriam pelo chão lamacento, alguns carros iriam passar por ali, as mulheres iriam varrer suas calçadas e os homens iriam se reunir para beber nos bares da região. O silêncio chegaria ao seu fim, mas antes que aquilo acontecesse, Edith sairia a caminho do caos, afinal, não poderia esperar elegância do casamento surpresa para celebrar a união de duas gangues para o qual ela havia sido convidada durante o último mês.
Com aquele pensamento, ela riu baixo. Ela gostaria de ter dito para John que seu casamento estava marcado para aquele dia, se ao menos Polly Shelby não tivesse ameaçado fincar uma faca em sua garganta; entre todos os Shelby, ela era a única cujas ameaças Edith realmente acreditava. Já faziam algumas semanas desde que ela havia descoberto; talvez um pouco mais de um mês, e por isso, a modista quase não era vista pela vizinhança, finalmente com um pouco de trabalho que a deixasse ocupada de verdade. Além do vestido de noiva de Esme Lee — que logo seria Shelby —, a morena também vinha fazendo alguns vestidos para Ada, porque sua barriga estava cada vez maior e os antigos já não a serviam, além, é claro, de alguns ternos para os membros mais próximos da família.
Haviam sido meses lucrativos, e ela ainda se surpreendia ao ter Tommy Shelby e seus agregados pagando mesmo pelos seus serviços. Uma parte do acordo estabelecido ao jogar a moeda estava sendo cumprida, e aquilo era o suficiente para Edith.
━ Uma droga de casamento surpresa ━ ela riu sozinha, revirando os olhos, e levantou-se do degrau onde se sentava. ━ É claro que os Shelby tiveram essa ideia.
Parecia uma situação absurda, e certamente era. Mas Edith Preston estava começando a se acostumar com o fato de que, em um inferno como Small Heath, os diabos sempre davam um jeito de se divertir.
Com esse pensamento, ela retornou para o interior de sua casa para se arrumar para o casamento. Surpreendentemente, ela havia sido convidada, e rejeitar convites dos Shelbys era algo que não parecia certo ou, ao menos, possível. De qualquer forma, ela estava ansiosa para ver como seria o primeiro casamento surpresa de sua vida, e devia estar pronta para quando o carro passasse para buscá-la e levar até a cerimônia; Edith separou um vestido bonito e elegante, afinal, apesar da falta de classe dos convidados, ela ainda levava em consideração a riqueza da família que comandava a cidade em que vivia. Ela não esperava nada menos do que uma grande festa, com canapés e taças de champanhe — que até o fim do evento os convidados quebrariam nas cabeças uns dos outros — e mal podia esperar por aquilo tudo.
Algum tempo depois, ela se surpreendeu novamente ao descobrir que o lugar escolhido para realizar o casamento não passava de um campo sujo que mais parecia um ferro-velho. Ela desejava ter sido avisada antes, para que calçasse outros sapatos no lugar do par novo e bonito que adornava seus pés, mas precisava se contentar com o fato de que, por algum motivo, organizar uma cerimônia em um lugar como aquele fazia pleno sentido para os homens mais ricos de Small Heath.
O cheiro da grama molhada pelas chuvas dos dias anteriores enchia seu nariz, e ela observava cuidadosamente os convidados da cerimônia; eram bem vestidos, em sua maioria, e as mulheres da família da noiva eram bonitas, com cabelo escuro e olhos marcantes ressaltados por maquiagem forte. Quanto aos homens, ela não se impressionou; diziam que casamentos eram ótimas ocasiões para conseguir um pretendente, mas para Edith, aquilo não seria plausível, não ali. Os homens da família do noivo, por mais complicados que fossem, ainda eram mais bonitos aos seus olhos, mas seu casamento com um deles já havia falhado e, aparentemente, Arthur não olharia duas vezes em sua direção.
━ Essa é a primeira vez que vejo a noiva chegar no casamento antes do noivo ━ a modista comentou com a voz baixa, sem conseguir segurar a língua enquanto aguardavam por John. ━ Mas bom, eu sou apenas uma moça do interior, não é?
━ O noivo se atrasar não é a pior parte, Edith ━ Ada murmurou de volta, rindo baixo. ━ É a porra de um casamento surpresa.
━ Ao menos a noiva é bonita. Seria o fim do mundo para John se ele descobrisse que vai se casar de surpresa e a noiva ainda por cima fosse feia ━ Edith voltou a dizer, arregalando os olhos levemente, antes de abrir um pequeno sorriso ao observar a noiva próxima de seus familiares. ━ Ele começaria a dar tiros cegamente, Ada! Todos nós seríamos atingidos por suas balas se Esme não fosse tão bonita.
As duas estavam próximas de Polly que, até então, estava mantendo o silêncio e a seriedade. Diante do comentário de Edith, no entanto, a mulher permitiu que seus lábios se curvassem em um sorriso mínimo, enquanto ela balançava a cabeça negativamente. Aquilo era novidade para a modista; se Polly tivesse a mandado se calar e ameaçado cortar seu pescoço, ela estaria menos surpresa.
━ John tentou nos surpreender com um casamento, e agora nós é que vamos surpreendê-lo ━ ela falou, olhando para as duas mais jovens e, apesar da fala sórdida, seu tom era mais gentil e bem-humorado do que Edith estava acostumada. ━ Eles devem estar chegando, acho que ouvi a voz de Tommy.
Tommy Shelby. Ela costumava temer aquele nome, mas ele não a incomodava já fazia algum tempo; desde a noite em que invadiu sua casa para acusá-la do assassinato de um irlandês, Edith havia o visto poucas vezes. E, para sua felicidade, não havia mais ouvido falar de suas conquistas; ela não precisava mesmo saber de seus problemas, especialmente quando sentia que finalmente estava atingindo um estado de calmaria e tranquilidade que nunca conheceu antes.
━ São eles ━ ela falou, após alguns segundos, quando viu um grupo de homens se aproximando do local. Ada riu e entrelaçou seus braços aos da tia e da modista, puxando-as em direção aos irmãos, que logo as viram se aproximando. ━ Sabiam que Deus ama casamentos?
Os olhos de John se arregalaram em sua direção, enquanto ele franziu o cenho, indignado.
━ Até você sabia sobre essa merda de casamento?! ━ ele indagou, e Thomas deu alguns tapinhas em suas costas quando Esme caminhou até o lugar onde seria o altar. ━ Porra, é melhor ela ter menos de 50 anos…
━ Ah, Johnny Boy, você sabe como são os seus irmãos e a sua tia. Se eu dissesse, eles me matariam ━ ela retrucou, recebendo um olhar atravessado de Polly e um levantar de sobrancelhas de Thomas. ━ Mas fique tranquilo. Você vai se casar com uma mulher jovem e bonita e tão selvagem quanto você.
Relutante, ele assentiu, tentando se forçar a acreditar. Tommy o empurrou para que fosse logo se juntar à noiva, e todos admiraram a cerimônia, agora mantendo-se em silêncio para ver a Johnny Dogs celebrar a união entre o novo casal. Edith sentiu um gosto amargo na boca enquanto assistia, não porque amava John Shelby e lhe doía vê-lo se casar com outra, mas porque aquilo era uma lembrança de um objetivo frustrado que ela não foi capaz de atingir. Ela nunca foi uma mulher com o dom de esquecer e perdoar; a memória da derrota e impotência iria sempre assombrá-la, ainda que ela ficasse feliz por não ter mesmo se casado impulsivamente. Aquilo a traria ainda mais problemas.
A ocasião que deveria ser de alegria era um misto de emoções para todos os presentes; John e Esme não podiam dizer que estavam felizes, porque não se conheciam e o casamento era uma forma de prendê-los. Ada, após se casar com Freddie Thorne, também não estava confortável na presença de Thomas Shelby, que queria ver o homem morto ou bem longe dali. Polly estava entrelaçada ao problema dos dois, porque não havia sido capaz de dar um fim à briga entre o sobrinho e o marido da sobrinha. As fofocas não corriam soltas por Small Heath, mas a simpatia de John Shelby valia a pena quando ele a mantinha informada sobre alguns assuntos, ainda que não os aprofundasse como ela muitas vezes gostaria.
Ainda assim, ignorando a tensão ao seu redor, Edith focou sua atenção na celebração do matrimônio que acontecia em sua frente. Quando o vento soprou o véu de Esme de seu rosto, ela sorriu junto ao ver a reação de John ao conhecer pela primeira vez o rosto da noiva, e deu uma leve cotovelada em Ada para que visse o sorriso tolo do irmão.
━ Isso é mesmo necessário? ━ ela murmurou, fazendo uma careta ao ver Johnny Dogs fazendo um corte na mão de John e outro na de Esme. ━ Vai sujar a porra do vestido que eu demorei semanas para terminar!
━ Você não fez de graça ━ Thomas lembrou, com a voz tão baixa quanto a sua, sem olhá-la.
━ Não mesmo, mas ainda é doloroso ver o meu trabalho tão caprichado se sujando de sangue menos de três horas depois de sair da minha casa ━ ela retrucou, em tom de reclamação, vendo os noivos darem as mãos enquanto Johnny Dogs os declarava marido e mulher e dizia para que o noivo beijasse a noiva. Edith deixou a rabugice de lado por alguns segundos, abrindo um sorriso e aplaudindo os dois junto dos outros convidados. ━ Quer saber? Foda-se. Que ela deite e role com o vestido na terra, eu não me importo. Os dois estão felizes.
━ Se o padre tivesse feito o seu casamento tão rápido quanto Johnny Dogs, hoje você seria minha cunhada ━ Ada comentou, também batendo palmas. ━ Johnny Dogs é bem eficiente.
Edith riu, concordando com a mulher grávida, e continuou a aplaudir e comemorar pela união do novo casal. Alguns convidados jogaram grãos de arroz sobre os dois enquanto a cerimônia chegava ao seu fim, e enquanto Polly e Ada iam dar os parabéns aos noivos, Edith silenciou suas palmas calmamente, virando-se para Thomas Shelby com olhos curiosos.
━ Terá uma festa para os convidados, ou eles vão direto para a lua de mel?
Pela primeira vez naquele dia, um sorriso cruzou os lábios de Thomas.
━ Talvez os dois, Edith.
✒️
Quando a noite caiu, Edith Preston já não sentia os próprios pés após tantas horas dançando em meio aos primos de Esme. Ela não conhecia bem os Lee, mas naquela ocasião, aprendeu que eles sabiam festejar como ninguém; alguns cantavam próximos a fogueiras, enquanto muitos pares dançavam organizadamente de uma forma que ela nunca seria capaz, ao mesmo tempo em que riam e bebiam como se não houvesse amanhã. Ela já não sabia que horas eram ou quanto tempo faltava para ir embora, mas sabia que precisava fumar; já fazia tempo demais desde seu último cigarro, e perceber aquele fato a fez sentir a necessidade de dar fim à espera.
Após tirar os sapatos, sentindo bolhas nos pés, caminhou até a mesa mais próxima — e uma das únicas dispostas no local — sentando-se em frente à Thomas, que a olhou inexpressivo.
━ O homem que eu estava procurando ━ ela disse, sorrindo em sua direção e estendendo uma das mãos. Ele uniu as sobrancelhas levemente. ━ Rápido, me dê um cigarro. Eu sei que você tem.
Ele soltou uma risada pelo nariz, assentindo, e tirou uma caixa de cigarros do bolso do paletó, puxando um e entregando à mulher, antes de pegar um para si mesmo e levar até os lábios.
━ Quanto você bebeu, Edith?
━ Nem um terço da metade do que Arthur me ofereceu. Ele gosta mais de mim quando está bêbado, eu percebi ━ ela retrucou, curvando-se sobre a mesa para puxar um isqueiro abandonado por ali e usando-o para acender o cigarro entre seus lábios pintados de vermelho. ━ Essa porra faz mal, sabia? Mas nós moramos perto das fábricas. Fumar não é nada perto de respirar aquele ar sujo e deplorável…
Pelo que Thomas conhecia de Edith, ela não era uma mulher que apreciava conversas furadas, mas ali estava ela, comentando sobre a vida perto das máquinas sem estar verdadeiramente interessada em falar sobre aquilo. Ela não havia bebido muito, pelo que dissera, mas havia bebido o suficiente para se distanciar de seu estado de normalidade com o qual ele estava acostumado.
Ela estava bem mais relaxada naquele momento. Edith Preston nunca baixava a guarda, nem mesmo ao dormir — a arma inutilizada que John havia lhe dado estava sempre debaixo de seu travesseiro —, e acordada era ainda pior. Uma mulher que não o temia era uma mulher a se temer, ele às vezes pensava quando estava prestes a dormir. Não que ele a temesse; não, certamente não era o caso, mas havia algo sobre aquela modista que ele era incapaz de identificar. Um mistério indefinido em seus olhos, uma ameaça no sorriso charmoso que ela insistia em abrir toda vez que falava com seu irmão mais velho e tentava o assustar. Um perigo em sua capacidade de aproximação e na forma com que dava um jeito de conquistar todos ao seu redor por mais que a odiassem no começo. Polly era um exemplo, e até mesmo ele podia se considerar um.
No primeiro dia, ele ameaçou incendiar seu ateliê. Ela o desafiou e deu um vestido no lugar de um terno. Tentou se casar com seu irmão pelas suas costas e venceu ao virar a moeda, conseguindo que ele pagasse por cada centímetro de tecido utilizado nos ternos dos Peaky Blinders. Ainda assim, ali estava ela. Convidada para um evento familiar, cercada de Shelbys e Lees. De alguma forma, ela parecia se encaixar.
━ Já teve a oportunidade de falar com os noivos, Edith? ━ ele perguntou, acendendo o próprio cigarro.
━ Ah, sim. Eu já fui até eles para desejar felicidades. Esme me agradeceu pelo desejo e pelo vestido que fiz, e então me disse para ficar longe do marido dela, já que já fomos noivos e talvez meus sentimentos se reacendam ━ ela contou, fazendo uma careta, e riu quase desacreditada enquanto soltava a fumaça. ━ Eu não tenho sentimentos para reacender. Só estou chateada porque perdi um cão de guarda, Tommy, e aquela porra de inspetor ainda não foi embora para o quinto dos infernos de onde ele veio ━ queixou-se, unindo as sobrancelhas ao dar um longo trago no cigarro. ━ Eu o vi pela minha janela nessa semana, caminhando por Small Heath na calada da noite.
Thomas a encarou, levantando as sobrancelhas.
━ É mesmo? E você viu mais alguma coisa?
━ Eu não vi mais nada. Tive medo que ele me visse e fui me deitar antes que ele sentisse que tinha alguém o observando, é claro ━ ela retrucou, em tom de obviedade. ━ Eu não sei o que acham que aconteceu comigo. Não sei se acham que matei Albert, se pensam que quem quer que tenha o matado também me matou, ou se eu fui sequestrada ou qualquer merda do tipo ━ continuou, parando por um segundo para observar o céu noturno sem estrelas. ━ Eu não acho que alguém esteja me procurando pelo assassinato de um homenzinho tão insignificante quanto o meu marido, Tommy, mas ainda tenho medo que ele me ache.
Ele assentiu com a cabeça, entendendo o queela dizia. Quantas vezes havia achado coisas que nunca procurou? Muitas. A enorme quantidade de armas encontrada acidentalmente por ele e seus Peaky Blinders vinha causando dor de cabeça há meses, por exemplo. Não só nele, como também no próprio inspetor Campbell.
━ Você está com os comunistas, Edith? ━ ele indagou, levantando as sobrancelhas, e ela murmurou em negação. ━ Então ele não está atrás de você.
━ Bom, os problemas ainda continuam me perseguindo, ou estou errada? ━ ela perguntou de volta, levantando uma sobrancelha. ━ Não faz tanto tempo assim desde que você me acordou apontando uma arma para mim, acreditando que eu havia matado aquela porta de irlandês bêbado com quem você estava conversando ━ lembrou, vendo-o comprimir os lábios em uma linha fina. ━ Eu matei um homem, porra. Um homem. Uma vez. Não quer dizer que eu saia por aí atirando em qualquer um que tenha a porra de um pau entre as pernas. E você quer saber de uma coisa, Tommy?
Não adiantava discutir com os bêbados, aquilo era certo. E Thomas estava entretido, no fim das contas, e resolveu continuar a dar corda às falas de Edith. Não era sempre que tinham a oportunidade de ter conversas tão pacíficas, sem a presença de armas destravadas.
━ Diga.
━ Eu odeio os irlandeses ━ ela reclamou, parecendo verdadeiramente irritada. ━ Porra, de onde é que estão saindo tantos?! Aquele velho estúpido com aquele bigode idiota está acabando com os meus dias desde que chegou. Eu me preocupo o tempo todo quando sei que ele está por perto ━ citou o primeiro exemplo, antes de arremessar o cigarro na fogueira mais próxima. ━ E aquele bêbado do caralho que você me acusou de matar. Que porra, Tommy, eles só me causam problemas! ━ praguejou, fazendo-o prender um sorriso de divertimento com sua exaltação. ━ E Grace. Eu gosto de Grace. Mas você quer saber de uma coisa? Eu não matei aquele homem, e a sua testemunha ocular muito confiável, ao menos o bastante para fazer você invadir a porra da minha casa, disse que foi uma mulher quem o matou. Foi a Grace, porra!
Aquela era mais parecida com a Edith que ele conhecia; xingando como um marinheiro, declarando ódio às pessoas e fazendo acusações. É claro, ela costumava fazer tudo aquilo de forma mais contida e elegante, mas o álcool em seu sangue não permitia aquilo naquele momento. Thomas havia pensado em Grace, certamente, mas que motivos ela teria? Não havia um histórico que ele conhecesse e, finalmente, aquele assassinato não havia lhe causado problemas suficientes para que ele continuasse sua investigação. Então, ele não se importava.
━ E sabe de mais uma coisa, Tommy? ━ ela voltou a perguntar, quando não obteve resposta, e Thomas a olhou. A modista o encarou de volta, antes de um sorriso sórdido surgir em seus lábios. ━ Você vai se casar com ela.
Thomas não costumava dar ouvidos aos bêbados, e apenas suspirou e olhou para o lado, onde os irmãos dançavam e bebiam junto dos Lee. Após alguns segundos, ele voltou a atenção para a morena, que servia rum em uma caneca de alumínio sobre a mesa.
━ E você está com ciúmes? ━ ele ousou brincar, vendo-a enrugar o nariz.
━ Não, porra. O próximo Shelby com quem eu vou tentar me casar é o Arthur ━ ela disse, com a fala ligeiramente embolada, e deu um longo gole em seu rum. ━ Não tem nada mais bonito do que um homem com medo da esposa.
Thomas permitiu que uma risada deixasse sua garganta. Ele puniria qualquer um que insultasse seus irmãos, mas quando Edith o fazia, era algo cômico; Arthur estava melhorando, mas sua aversão pela modista ainda era perceptível.
━ Grace trabalha para nós agora. Ela é contadora, agora que eu sou um homem da lei e nossas apostas de corridas são legalizadas ━ ele contou orgulhoso, vendo Edith franzir o cenho. Tommy tinha aquela mania de compartilhar fatos sobre seus dias com os bêbados; eles raramente se lembravam. ━ Podemos encontrar algo para você também.
Ela balançou a cabeça para os lados, cruzando as pernas ao se sentar de forma mais relaxada.
━ Eu não vou trabalhar para você ━ ela afirmou. ━ O ateliê está indo bem, e eu prefiro ganhar o meu dinheiro sem ter que obedecer às suas ordens, Tommy. Nós nos damos melhor assim.
Era verdade e ele precisava admitir; assim como ele, Edith era alguém bem mais fácil de lidar quando não estava sendo contrariada. E após saber de sua história e de como ela havia ido parar em Small Heath, Thomas achava compreensível que ela quisesse ser dona da própria vida e não se submeter às ordens de alguém. Era, afinal de contas, a primeira vez que tinha aquela liberdade em alguns anos.
━ Eu agradeço pela oferta, de qualquer forma ━ ela voltou a dizer. ━ Grace deve estar amolecendo o seu coração.
Ele a encarou com as sobrancelhas erguidas.
━ Você continua trazendo esse assunto à tona ━ ele observou, e ela deu de ombros, dando outro gole na bebida. ━ O casamento está te deixando emotiva, por acaso? Eu ainda posso casar você com Johnny Dogs, se estiver se sentindo carente.
Dessa vez, Edith riu pelo nariz diante do que ela supôs ser uma piada. Balançando a cabeça negativamente, ela colocou a caneca sobre a mesa mais uma vez.
━ É você quem não consegue ficar muito tempo longe, Tommy. Você sempre está buscando por um motivo para ter que falar comigo. Costuma ser para me acusar de algo que posso ou não ter feito, ou fazer alguma ameaça que, a esse ponto, nós dois já sabemos que você não vai cumprir ━ ela falou, com a voz calma, respirando fundo ao sentir o vento soprar seu rosto. ━ Mas eu e você sabemos que eu não sou mulher para você. Não, você gosta mais de mulheres doces e prestativas ━ continuou, e Thomas a observou em silêncio, com as sobrancelhas levemente unidas. ━ Já ouviu dizer que, quando se está muito bêbado, beber mais uma dose te fará sóbrio de novo?
Ele ignorou.
━ Então você não é mulher para mim ━ ele repetiu o que ela havia dito. ━ E eu sou homem para você?
Ela abriu um sorriso. O mesmo sorriso charmoso e detestável que abria quando provocava Arthur ou desafiava Polly.
━ Talvez se você nascer de novo, Tommy ━ ela respondeu. ━ Três vezes.
O fantasma de um sorriso atravessou os lábios do homem, que gostaria de dar continuidade àquela conversa. Ele o teria feito; estava instigado e entretido o bastante para manter aquele diálogo, mas antes que pudesse dizer algo, Polly se aproximou, agarrando seu braço.
━ Você tem que mandar Ada parar. Ela está fazendo muito esforço, e eu a vi mandando algumas doses para dentro ━ ela contou, aflita, lançando um olhar para a sobrinha que rodopiava ao som da música. ━ Era o esperado. Ela não sai de casa há meses, graças à guerra contra Freddie Thorne, mas isso é ruim para o bebê.
━ Ela não vai me escutar.
━ Você é a única pessoa que vai fazê-la ouvir, Tommy.
Com um suspiro, ele se levantou, comprimindo os lábios em uma linha fina enquanto caminhava até a irmã.
━ Ada. É melhor descansar um pouco ━ ele disse, com a voz alta para se sobressair à música. ━ Vamos lá. Você precisa de um pouco de água, sim?
Por um momento, ele pensou que ela iria ceder e fazer o que foi dito. Edith e Polly, que observavam da mesa, pensaram o mesmo. No entanto, quando Ada parou seus movimentos e se virou para encarar o irmão, seu sorriso era de escárnio.
━ Venha ver, Esme! Veja a família a qual você se uniu, e o homem que manda nela! ━ ela praticamente gritou, chamando a atenção para si, e Polly arregalou os olhos e se aproximou dos sobrinhos. ━ Quem decide a mulher com quem o irmão vai se casar, e caça a própria irmã como se fosse a porra de um rato, e tenta matar o cunhado! E agora não quer me deixar dançar! Nem na merda de um casamento!
━ Já chega, Ada ━ ela pediu, tentando acalmá-la, sem sucesso.
Os outros Shelby se aproximaram rapidamente — Arthur, John e Esme —, tentando controlar os gritos de Ada, e Edith, ainda sentada, revirou os olhos. Eles eram mesmo incapazes de manter os ânimos controlados, ela pensou em silêncio. Já era o segundo casamento de John que eles tentavam estragar; ao menos, daquela vez, conseguiram esperar até a festa.
Forçando-se a aceitar um pouco de senso em sua própria cabeça, Edith decidiu ouvir a rara voz da razão que murmurava em sua cabeça e lhe fazia lembrar que Ada estava grávida. Com um pouco de esforço, ela calçou novamente os sapatos, se levantou e caminhou até a reunião familiar que saía dos eixos, enfiando-se entre Polly e John para conseguir falar com a mulher mais nova, agarrando uma de suas mãos.
━ Ada! Ada, você precisa se acalmar, porra ━ ela falou, olhando-a no fundo dos olhos, tentando ser ouvida em meio aos outros gritos. ━ Você quer ter esse bebê, não quer? Você precisa de repouso. A sua barriga já está enorme, e você não chegou até aqui para estragar tudo.
Entre gritos de “chega”, “vá se sentar” e “parem de gritar”, foi inesperado para todos quando a única pessoa a formular uma frase coerente e convincente fosse Edith, ainda alcoolizada. Ignorando e desviando dos irmãos, Ada assentiu e agarrou a mão de Edith mais fortemente, seguindo-a para se distanciar da confusão que havia iniciado.
As duas moças deram alguns passos em direção à mesa onde Edith estava sentada até alguns segundos antes, quando a modista desviou o olhar para o chão ao sentir algo molhando seus pés.
━ A sua bolsa estourou nos meus sapatos, Ada ━ ela murmurou, arregalando os olhos, e se virou para a família da moça. ━ A bolsa dela estourou! Tragam um carro!
volteii! capítulo com 5.2k de palavras e mais migalhas da edith que brinca tanto sobre se casar com um shelby que alguma hora vai realmente conseguir
espero que tenham gostado do capítulo! não se esqueçam de adicionar a fanfic na biblioteca pra receberem notificação quando ela for atualizada, e comentem bastante sobre o que estão achando!
vejo vocês no próximo capítulo <3
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