𝟬𝟲. VOTO DE CONFIANÇA.
CAPÍTULO 06 | VOTO DE CONFIANÇA
NÃO HAVIA MUITO O QUE fazer em Small Heath, Edith Preston sabia bem daquilo; costumava ser um de seus primeiros pensamentos todos os dias ao acordar. No pequeno bairro de Birmingham, eram poucas as opções de passatempos oferecidos à população: havia apenas um pequeno cinema, que a modista não queria mais frequentar após a cena de Arthur com as duas mulheres, e alguns bares, que ela também escolhia manter distância para não ter que lidar com homens que caíam de tão bêbados e diziam coisas desconexas que ela não fazia questão de ouvir. Seus dias eram lentos, dividindo suas horas entre o trabalho, que já não era muito, e passar o resto do dia organizando o ateliê, que também nunca estava bagunçado. Mas Edith gostava daquele tédio; após tanta tormenta, tudo o que a mulher poderia desejar era o prazer da monotonia.
As pessoas da vizinhança a respeitavam mais sabendo que havia estado noiva de John Shelby. Muitos achavam que ainda estavam noivos, e aquilo garantia à mulher alguns privilégios, afinal, ninguém se interessava em arranjar problemas com os Peaky Blinders. Sendo a noiva de John ou tendo sido prometida a ele em algum momento, Edith Preston agora era mais respeitada do que poderia imaginar alguns dias antes. Os homens não soltavam palavras sujas e assobios quando a modista passava por eles nas ruas, e os bêbados respeitavam a calçada de sua casa e do ateliê, mantendo-se longe dali. As pessoas que reclamavam de seus preços e tentavam enrolar para pagar por seus serviços agora eram ágeis para entregá-la a quantia de dinheiro estabelecida em troca de suas costuras, e mesmo as crianças a obedeciam quando ela mandava que parassem de brincar no meio da rua, onde era perigoso.
Ela só conseguia pensar que se tivesse, de fato, casado-se com John, tratariam-na como a própria rainha da Inglaterra. Edith e John haviam se visto poucas vezes nos dias que sucederam o casamento interrompido por ordem dos Peaky Blinders, e era fácil dizer que o homem não estava satisfeito com o ocorrido; ele se revelou mais gentil naqueles dias, pedindo desculpas por não ter sido capaz de cumprir com o que prometeu à modista, mas os negócios vinham antes do amor, e o acordo com os Lee era importante para os esquemas de aposta em que ele e a gangue estavam envolvidos. Edith também foi compreensiva, os dois desejaram juntos que a noiva de John não fosse uma mulher feia, e assim, tornaram-se amigos, já que não poderiam ser mais do que aquilo.
Dessa forma, Edith ainda seria associada aos Shelby. Ela ainda estaria protegida e seria respeitada. Era parte do que John prometeu quando a pediu em casamento, e apesar do acordo interrompido por terceiros, ele ainda era um homem de palavra.
━ Mais um pouco? ━ A voz doce de Grace preencheu os ouvidos de Edith, sentada de frente ao balcão do pub mais conhecido de Small Heath, com uma garrafa de uísque escocês em mãos. A modista balançou a cabeça para os lados, levando o copo aos lábios apenas para sentir o gosto do álcool impregnar seu paladar. ━ E você, senhor Shelby?
━ Irlandês ━ John pediu, sentado ao lado de Edith, e a loira assentiu enquanto deixava a garrafa de uísque escocês de lado, alcançando outra garrafa e servindo uma dose no copo do homem, que riu baixo. ━ O que é isso, você está com dó? Pode encher o meu copo, Grace.
━ Ainda não é meio-dia, John Boy ━ Edith observou, levantando as sobrancelhas levemente. ━ Vá com calma.
━ Você tem que lembrar que não é minha esposa, Edith ━ ele retrucou, com a voz levemente arrastada, unindo as sobrancelhas enquanto seus lábios denunciavam um discreto sorriso ladino. ━ Eu sei que é difícil, porra. Mas você vai superar.
A morena revirou os olhos levemente, antes de observar Grace recolhendo alguns copos deixados nas mesas na intenção de organizar o local minimamente. Então, olhou para John e sorriu minimamente, erguendo o próprio copo.
━ Vamos brindar a isso, meu querido ex-futuro-marido ━ ela disse, batendo seu copo contra o do homem e virando todo o resto de seu uísque de uma vez, fazendo careta ao sentir a garganta queimando. Então, voltou a atenção à Grace mais uma vez, enquanto John ria baixo e acendia um cigarro. ━ Sabe, você poderia cantar mais vezes, Grace. Nós merecemos um pouco de diversão, de contato com as artes ━ Edith comentou, limpando a garganta e limpando a mancha de batom deixada em seu copo, vendo a garçonete sorrir levemente. ━ Me disseram que Tommy só permitiu música uma vez na semana, mas ele não está aqui o tempo todo.
Tommy Shelby era alguém que, finalmente, havia sumido um pouco de seu radar. Desde a última conversa, após o falho casamento com John, Edith o viu poucas vezes, e interagiram menos ainda. Era um avanço, ela pensava; era melhor ser ignorada pelo homem do que hostilizada por ele. E, para duas pessoas que discutiam sempre que seus caminhos se cruzavam, havia certa cordialidade no silêncio.
Quando a janela da pequena sala privada da família Shelby no Garrison foi aberta, John soltou uma risada natalidade ao encontrar o irmão mais velho encarando Edith com as sobrancelhas erguidas, fazendo a modista morder o interior das bochechas ao encontrar seu olhar.
━ Eu estou aqui agora, senhorita Preston ━ ele disse, e a modista assentiu, dando-se por derrotada. Era algo que Thomas também estava se acostumando a ver; até alguns dias antes, aquilo nunca aconteceria, mas a conversa entre os dois havia revelado bem mais do que o passado de Edith. Havia revelado que, se tratada com respeito e dignidade, ela corresponderia. ━ Mais uísque, Grace.
A loira assentiu, aproximando-se do balcão e secando as mãos no avental.
━ Irlandês ou escocês?
Thomas fixou os olhos nos copos do irmão e da modista, vendo as garrafas abertas de uísque, e indagou:
━ O que você está bebendo, Edith?
━ Escocês ━ respondeu, franzindo o cenho, e o homem assentiu, antes de responder:
━ Irlandês, Grace.
Quando a loira pegou a garrafa de uísque irlandês e o entregou, juntamente de alguns copos, os olhos espertos de Edith fixaram-se na interação entre os dois, enquanto John prestava atenção no líquido dentro de seu próprio copo.
━ Decidi não ir à corrida ━ Grace disse, quando Thomas pegou os copos de suas mãos, e Edith movimentou levemente um dos pés, para esbarrar em uma perna de John na intenção de chamar sua atenção para a cena sem fazer barulho. Quando os olhos do homem seguiram a direção do seu, Grace continuou, sem perceber que era observada: ━ Só se me der mais duas libras e dez xelins para o vestido.
━ Já não te dei três? ━ o mais velho perguntou, com um leve sorriso, e Edith uniu as sobrancelhas despercebida. Thomas Shelby não era conhecido por sua simpatia, e agora, ali estava, com sorrisos discretos para Grace enquanto ela falava sobre um convite feito por ele.
Era uma surpresa e tanto, Edith pensou. Talvez Thomas Shelby tivesse um coração, ainda que muito endurecido.
━ Quanto foi o terno que vai vestir? ━ Grace devolveu a pergunta, elevando as sobrancelhas, e dessa vez, a modista revirou os olhos.
━ Foi de graça ━ Edith se intrometeu, com a voz levemente arrastada, e John bateu o copo, agora vazio, no balcão de madeira, chamando a atenção para si mesmo sem intenção. ━ Porra, fique quieto, John. Você também não pagou pelo seu.
Tommy elevou a sobrancelha, percebendo o leve estado de embriaguez de ambos, e voltou a atenção à Grace.
━ Então quer que eu vá para a corrida como se fosse a florista?
━ O que eu quero não faz diferença ━ ele respondeu, finalmente dando as costas aos outros para deixar a garrafa de uísque e os copos na mesa da sala privada. ━ Não é para mim que você irá se vestir.
Quando ele fechou a pequena janela novamente, Grace voltou aos seus afazeres para manter o pub limpo e organizado na medida do possível, e Edith serviu mais um pouco de uísque em seu copo, bebericando devagar enquanto girava no banco de madeira, seguindo a loira com os olhos.
━ Você irá sair com Thomas Shelby, Grace? ━ ela perguntou, com um sorriso ladino, antes de rir baixo e passar uma das mãos pelo cabelo. ━ Bom, avise o senhor Shelby que se vocês dois forem se casar, eu vou entrar na igreja e matar o padre, só para descontar por ele ter atrapalhado o meu casamento ━ a modista continuou, apoiando uma mão em um dos ombros de John, que bebeu o uísque de seu copo. ━ Se ele não tivesse feito isso, porra, nós poderíamos ser cunhadas em breve.
━ Sem mais uísque para ela, Grace ━ John mandou, e as palavras saíram emboladas de sua boca. A modista revirou os olhos, vendo-o se virar no banco da mesma forma que ela havia feito, apoiando as costas e os cotovelos no balcão. ━ Ela já está ficando fora de si.
━ Eu não estou bêbada, porra ━ ela retrucou, cruzando os braços, e encarou John. ━ Nós estamos aqui há horas e eu bebi apenas umas três doses de uísque. Já você, Johnny, bebeu três doses para cada filho que você tem. Vá passar uma água nesse seu rosto, você não pode andar por aí bêbado tão cedo no dia.
O homem uniu as sobrancelhas, encarando Edith com os olhos semicerrados enquanto Grace ria sozinha da pequena discussão entre os dois sobre quem estava mais afetado pelo consumo de álcool.
━ Eu posso fazer o que eu quiser, eu sou a porra de um Peaky Blinder.
Com um revirar de olhos, a modista respondeu:
━ Foda-se, eu não fiz nenhuma pergunta para você ou qualquer idiota dos Peaky Blinders ━ sua voz soou baixa e impaciente conforme a mulher se levantou do banco e puxou o homem, empurrando-o em direção ao banheiro masculino e vendo-o cambaleando levemente antes de fechar a porta. ━ Lave o seu rosto, eu quero ouvir o barulho da água.
Embora não estivesse minimamente embriagada como John - que havia bebido bem mais do que ela era capaz de contar -, Edith ainda sentia-se aérea, quase leve. Era um dos efeitos da bebida, ela tinha conhecimento, e embora gostasse daquilo, estava consciente o bastante para saber que não deveria beber mais. Mulheres não deviam se embebedar, não por uma questão de elegância, mas por uma questão de vulnerabilidade; a modista não tinha qualquer intenção de cambalear quase inconscientemente pelas ruas perigosas de Small Heath enquanto homens estivessem à espreita.
Aquilo não era uma boa ideia nem mesmo para John, que tinha inimigos o bastante para que andar embriagado em plena luz do dia se tornasse um problema, e era essa a razão pela qual Edith o obrigara a lavar o rosto numa tentativa de se recompor e recobrar o estado de alerta. Se a principal pessoa que a protegia não estivesse segura, ela certamente também estaria em perigo, e aquilo era algo que ela jamais desejaria.
━ Tudo bem aí dentro, John? ━ ela indagou, apoiando as costas contra a porta de madeira fechada enquanto observava a entrada de dois homens que ela não conhecia no pub, que então seguiram para dentro da sala privada em que Tommy aguardava. Unindo as sobrancelhas, Edith girou o próprio corpo e abriu a porta num movimento rápido, vendo o ex-noivo abotoando o cinto em frente à privada. ━ Porra, John!
━ Você não sabe ler, porra? O feminino é do outro lado ━ ele retrucou, arregalando os olhos e indo até a pia para lavar as mãos. ━ Se você quer ver tanto assim, é só avisar. Tenho certeza que nós podemos resolver isso de uma forma bem mais divertida do que com você abrindo a porta enquanto eu mijo.
━ Quem são os homens que entraram na sala da sua família? Eles não são daqui, eu nunca os vi antes ━ Edith foi direto ao assunto, sem dar muita atenção às brincadeiras do homem. ━ Tem a ver com o motivo pelo qual o inspetor está aqui?
John uniu as sobrancelhas.
━ Já dissemos a você para ficar longe dos assuntos que não são da sua conta, Edith ━ ele falou, agora com a voz mais baixa, e secou as mãos no paletó, fazendo uma careta. ━ Tommy está mais amigável com você, mas você não pode achar que agora está tudo bem e que você vai sair por aí fazendo o que quiser e se enfiando em problemas dos outros ━ continuou, olhando-a fixamente, e brincou com um cacho de seu cabelo. ━ Nós sabemos do que você passou, o Tommy nos disse, e sendo bem sincero, porra, nós mataríamos o seu marido por você se aquilo acontecesse por aqui. Nós não vamos colocar você em problemas, mas você precisa fazer a mesma coisa e parar de procurar confusão.
Ela o encarou em silêncio, mordendo o interior das bochechas e assentindo. Era claro que os Shelby agora sabiam de seu passado; eles eram uma família estranhamente unida e funcional, apesar de criminosa, e esperar que sua conversa com Thomas após o casamento interrompido fosse mantida em segredo era irrealista. Edith não podia dizer que se importava; ela não se envergonhava do que passou durante os anos de casamento, apenas desejava não ser obrigada a se lembrar de Albert Wilson e tudo que o envolvia, e quanto mais pessoas soubessem de sua história, mais difícil aquilo se tornaria.
━ Você está segura, Edith. Você quase foi uma Shelby, porra, todos aqui já sabem ━ falou John, tentando assegurá-la mais uma vez, e ela comprimiu os lábios numa linha fina e concordando com a cabeça. ━ Além do mais, você também sabe como se cuidar, caso alguém seja louco o suficiente para mexer com a mulher que quase se casou comigo ━ ele continuou, abrindo um sorriso ladino ao apoiar uma mão na cintura da mulher, sentindo a arma presa pela saia e coberta pelo casaco largo. ━ Vamos sair daqui, esse banheiro fede.
A porta rangeu quando foi aberta, e enquanto caminhavam de volta para o balcão, uma música foi ouvida vinda de dentro da sala privada em que Thomas estava com os dois homens, e Edith franziu o cenho ao se sentar, olhando para Grace em confusão.
━ Bom, era melhor ficar sem música do que ouvir isso. Eles não cantam nada bem ━ ela resmungou, ainda tentando identificar a canção cantada pelos homens enquanto John saía do bar sem mais explicações. ━ Um copo d'água, Grace.
━ Um pedido incomum por aqui ━ Grace respondeu, enquanto depositava o copo d'água em frente à morena.
━ Ah, eu tenho certeza.
Enquanto Edith levava o copo d'água até os lábios, a porta da sala privada foi aberta e os dois homens saíram, ainda cantando, e finalmente a modista foi capaz de identificar a música: tratava-se do hino do Exército Republicano Irlandês. Ela arregalou levemente os olhos, continuando a beber o conteúdo de seu copo, e observou os homens sumindo pela porta do Garrison enquanto Thomas, com um sorriso discreto, se dirigiu ao balcão e deixou a garrafa de uísque que havia pedido alguns minutos antes.
━ Pensei que só podíamos cantar aos sábados ━ Grace comentou, e Edith balançou a cabeça em concordância, agora silenciosa, mais disposta a prestar atenção na conversa do que fazer parte dela.
Apesar de todos repetirem que ela deveria cuidar da própria vida, ela não conseguia se sentir segura o bastante para não se intrometer nos problemas dos outros.
━ Uísque é um bom soro da verdade ━ o homem respondeu. ━ Mostra quem está mentindo e quem não está.
Talvez fosse uma coincidência, talvez fosse uma estratégia. De qualquer forma, em algumas das conversas mais importantes tidas entre Edith e Thomas, a modista percebeu que o álcool estava presente; em uma das vezes que discutiram seus interesses, o homem levava consigo uma garrafa de rum, e na noite em que resolveram algumas de suas desavenças, uma garrafa de licor se esvaziou.
━ Você é um simpatizante do Exército Republicano da Irlanda, Thomas? ━ Edith perguntou, após alguns segundos, com um tom zombeteiro de quem não estava verdadeiramente interessada no assunto.
Thomas Shelby, logicamente, não entrou em seu jogo, lançando-a um olhar inexpressivo ao responder:
━ Eu não simpatizo com nada, Edith.
Ela mordeu o interior das bochechas, revirando os olhos ao encarar o copo d'água no balcão. Era claro para ela, àquela altura, que Thomas Shelby e os Peaky Blinders estavam envolvidos em um problema bem maior do que esquemas de apostas. Edith teve quase certeza que o inspetor recém-chegado em Small Heath estava ali pelo mesmo motivo que os simpatizantes do Exército Republicano Irlandês estavam na sala com Thomas; ele tinha algo que interessava aos dois e, em tempos de guerras para acabar ou continuar com a influência inglesa sobre a Irlanda, deveria ser algo que poderia ser decisivo para um dos lados.
Ou talvez, ela apenas estivesse alcoolizada demais e nada daquilo fizesse sentido de verdade, mas Edith Preston entendia o bastante de crimes para acreditar que havia uma chance de estar certa, por menor que fosse. E ela torcia para estar; seria a maior confirmação possível de que ela estava livre de qualquer acusação, afinal, ela nunca se envolveu com os irlandeses em sua luta por independência.
━ Eles tinham um sotaque bem pesado, me surpreende ter entendido o que eles estavam dizendo ━ Grace comentou. ━ Se quiser, da próxima vez posso traduzir para você.
Aparentemente, Edith Preston não era a única mulher intrometida em Small Heath, ela pensou, sorrindo para si mesma enquanto Grace jogava suas cartas para tentar descobrir um pouco mais. Infelizmente, Thomas não se deixava enganar por nenhuma das duas e permanecia calado como um túmulo a respeito do assunto que despertava a curiosidade das mulheres.
━ E trabalharia para mim?
━ Achei que já estivesse trabalhando.
Era difícil para Edith ler aquele homem; era particularmente difícil identificar se estava sendo tentando ser gentil, se estava se segurando para não despejar ordens e ameaças, se estava mudando de assunto ou, numa última e interessante opção, tentando flertar com a garçonete. Ele certamente era mais paciente e menos sério com Grace do que era com ela, e bom, Edith Preston compreendia todos os seus motivos, afinal, desde o primeiro dia ela arranjou formas de desafiá-lo.
Se Edith sentia algo sobre aquilo, certamente era pena de Grace, porque Thomas Shelby parecia sempre precisar reafirmar para todos e, especialmente para si mesmo, que estava no comando. Que todos trabalhavam para ele e todos estavam sempre sob suas ordens e vontades, e a morena acreditava que mesmo suas amantes eram, muito provavelmente, tratadas como funcionárias, o que para ela seria insuportável. Tommy era mais elegante do que John e menos explosivo do que Arthur; ainda assim, conseguia causar mais medo do que os irmãos, e de alguma forma, vê-lo agir com tanta cortesia naquele dia fez a modista sentir um estranho desconforto, como se algo que não devesse estar acontecendo estivesse ganhando forma diante de seus olhos.
━ Então você irá à corrida ━ Thomas concluiu, e levou uma das mãos ao bolso do paletó. ━ Duas libras e dez xelins, certo? ━ indagou, antes de tirar duas notas e se virar para Edith, que franziu o cenho. ━ Dez xelins. Faça um vestido vermelho, para combinar com o lenço dele.
Lenço dele.
Edith lançou um rápido olhar para Grace, que assim como ela, parecia levemente surpresa e indignada.
━ Lenço de quem?! ━ a loira questionou, mas era tarde demais; Thomas já estava saindo pela porta do bar, abandonando-a sem uma resposta.
Novamente, Edith Preston sentiu pena da mulher à sua frente; se antes o desconforto era devido ao fato de Thomas estar agindo tão diferentemente do usual, agora se devia ao fato do homem ter feito exatamente o que era esperado de alguém como ele e convidado Grace para acompanhá-lo à corrida apenas para usá-la em algum tipo de plano maior. Com cuidado, ela guardou o dinheiro que Thomas a pagou pelo futuro vestido de Grace na bolsa e deixou um pouco sobre o balcão para pagar pelo consumo daquele dia.
━ Acho que eu e você temos manequins parecidos ━ ela disse, ao se levantar para deixar o bar, olhando para a garçonete da cabeça aos pés. ━ Você pode passar no ateliê mais tarde para termos certeza.
Finalmente, Edith havia conseguido algum trabalho para si mesma, e agradeceu mentalmente por poder ocupar o resto de seu dia costurando rendas e cortando tecidos. A mulher deixou o bar com calma, apertando o casaco ao redor do corpo enquanto andava pelas ruas e desviava de poças de lama até chegar em sua casa, encontrando Elsie sentada em um dos degraus da entrada, de onde podia ver o filho mais velho brincar juntamente de outras crianças na rua.
━ Bom dia, Elsie ━ cumprimentou, tirando a chave de dentro da bolsa para destrancar a porta. ━ Com licença.
━ O senhor Nolan trouxe o resto do dinheiro que te devia por fazer a bainha das calças ━ a vizinha contou, tirando algumas moedas do bolso e estendendo-as para a modista. ━ Ficou sabendo das notícias?
━ Notícias? ━ ela uniu as sobrancelhas, aceitando o dinheiro e contando para constatar que estava certo. ━ O que aconteceu agora?
━ O amor está no ar para a família dos Shelby, Edith ━ a mulher riu baixo, vendo a modista a encarar confusa ao abrir a porta. ━ Estão dizendo que Ada Shelby se casou com Freddie Thorne.
━ É mesmo? O comunista? Eu pensei que ele não estava mais por aqui, desde que o inspetor chegou.
━ Não estava, mas aparentemente está de volta, casado e, para melhorar, com um filho à caminho.
Aquilo tornava bastante claro o motivo de Ada Shelby ter sido a única em toda a família a apoiar seu casamento com John; como ela poderia criticar os dois quando estava grávida de um comunista que havia fugido da cidade e certamente era ainda mais procurado pelas autoridades do que seus irmãos? Edith não podia negar que admirava os Shelby; eles não tinham medo de nada e nem de ninguém, nem mesmo uns dos outros. Enquanto Thomas se comportava como se tudo devesse ocorrer apenas com sua aprovação, ver que sua irmã mais nova seguia o desafiando de diversas formas era como respirar ar fresco.
━ Que o pequeno Karl Marx venha com muita saúde, então ━ Edith desejou, soltando uma risada pelo nariz, e finalmente entrou em sua casa, jogando a bolsa sobre a cama e tirando a arma presa à cintura para apoiá-la sobre a mesa da cozinha.
Dirigindo-se ao ateliê após atravessar a porta que o separava dos cômodos de sua casa, ela se colocou a trabalhar no vestido de Grace.
✒️
Era madrugada quando Edith Preston acordou de seu sono assustada, respirando com dificuldade após sonhar que alguém invadia sua casa. Tentando regular a entrada e saída de oxigênio de seu corpo, ela engoliu em seco e fechou os olhos novamente, levando uma das mãos até debaixo do travesseiro para se assegurar de que a arma estava ali.
O barulho de passos em sua casa havia ficado nos sonhos, mas quando sua própria respiração se acalmou, Edith pôde ouvir outra. Mordendo o interior das bochechas, ela puxou a arma sob o travesseiro e a destravou com cuidado, desejando amaldiçoar o processo por não ser silencioso, e apontou-a para onde acreditava ser o ponto em que a respiração se originada, ao mesmo tempo em que sua mão livre acendeu a lâmpada do abajur.
━ Sonhos ruins, senhorita Preston? ━ foi a forma com que Thomas a cumprimentou, sentado próximo à mesa da cozinha, com a própria arma apontada em sua direção.
━ Porra! O que você está fazendo aqui, inferno, e como foi que você entrou? ━ ela praguejou, unindo as sobrancelhas e lutando fortemente contra a voz que sussurrava em sua cabeça para dar um tiro em um dos pés do homem. Sua própria voz. Num movimento brusco, ela abandonou a arma no colchão, passando uma das mãos pelo cabelo. ━ Que merda, Thomas, o que você quer? Filho da puta.
Ele elevou as sobrancelhas, sem se mover, e a mulher bufou ao ver a arma ainda apontada para si.
━ O meu irmão adoraria acordar todos os dias com o seu bom humor matinal.
━ É mesmo? E ele também adora acordar todos os dias com a porra de uma arma apontada para a cara dele, ou você reserva esse tipo de coisa para quando invade a casa de mulheres no meio da noite?
━ Essa é a primeira vez ━ ele afirmou, com um sorriso ladino, antes de abaixar a arma e guardá-la novamente. ━ Eu não estou tendo um dia bom, Edith, e você conseguiu piorar.
━ Do que é que você está falando, porra? ━ ela indagou, impaciente, puxando o robe próximo ao abajur e vestindo-o rapidamente para cobrir a camisola. ━ Você invadiu minha casa no meio da madrugada e me acordou com uma arma apontada para mim, você poderia, ao menos, parar com a porra da enrolação e dizer logo o que está acontecendo.
━ Você é uma das duas únicas mulheres em Small Heath que usam salto alto, junto de minha irmã, Ada, e ainda assim tem a boca mais suja que boa parte daqueles homens que passam o dia se embebedando nas portas das fábricas ━ ele observou, vendo-a respirar fundo, e umedeceu os lábios antes de continuar. ━ Acabou de chegar até mim, Edith, também durante a madrugada, a informação de que um dos irlandeses que se encontraram comigo no Garrison de manhã foi morto. O IRA acha que fomos nós, os Peaky Blinders, mas uma das mulheres que mora nas proximidades do The Black Swan disse que viu uma mulher jovem saindo da cena do crime. E eu vou me resolver com a porra do IRA, mas eu preciso saber quem é que está causando problemas no meu nome.
Edith o encarou em silêncio por alguns segundos, antes de comprimir os lábios em uma linha fina. Aquela era a ideia de trégua para Thomas Shelby? Ela havia pensado que após a conversa de algumas noites antes, quando o casamento com John foi interrompido, os dois haviam se resolvido, mas ela estava enganada; o homem havia mesmo tido a audácia de ir até sua casa no meio da noite para acusá-la de assassinato.
━ E você acha que eu o matei ━ ela concluiu. ━ Porque eu, é claro, sou a única mulher jovem de Small Heath.
━ Você estava no Garrison quando eles saíram, e estava fazendo perguntas ━ Thomas retrucou, cruzando as pernas, e levantou as sobrancelhas. ━ Você não é a única mulher jovem de Small Heath, mas é a única que eu sei que já matou antes. Ele fez algo a você?
Por um mero momento, Edith precisou raciocinar se Thomas estava tentando culpabilizá-la ou ajudá-la. Ela o observou, com o cenho franzido, e passou uma das mãos pelo rosto, balançando a cabeça negativamente.
━ Ele não fez nada comigo, e eu não o matei ━ ela disse, pausadamente. ━ Quando saí do pub, vim direto pra casa trabalhar no vestido de Grace ━ continuou a explicar, antes de respirar fundo, levantando-se da cama e caminhando até a cozinha. ━ Não tive tempo para matar ninguém hoje, infelizmente. Você tem um cigarro?
Thomas assentiu, puxando um cigarro e entregando à mulher, ainda desconfiado.
━ Eu não matei ele, porra ━ Edith repetiu, impaciente, acendendo o cigarro. ━ Eu não sou a única mulher jovem de Small Heath, e nem a única mulher jovem que estava no pub fazendo perguntas sobre os irlandeses. Você também invadiu a casa de Grace ou essa é a sua próxima parada?
Com cuidado, ela se sentou sobre a mesa de madeira, cruzando os braços para manter o robe firme ao redor de seu corpo enquanto fumava, visivelmente estressada com toda a situação. Thomas a observou em silêncio, balançando a cabeça devagar, antes de acender o próprio cigarro.
Edith sabia que desconfiar de Grace não era uma opção, não se ela estivesse por perto para levantar suspeitas. Ela também não achava que a garçonete era a culpada pelo assassinato; de fato, a modista duvidava muito que aquela história fosse algo além de uma fofoca. A suposta testemunha ocular talvez não existisse, ou talvez a mulher que viu cometendo o crime não fosse assim tão jovem. Ninguém parecia considerar outras possibilidades, no entanto, e por isso Thomas Shelby estava em sua casa, no meio da noite, interrogando-a sobre um crime que não cometeu.
━ Mentiras se espalham mais rápido do que a verdade ━ Thomas disse, soltando um pouco de fumaça, e observou enquanto Edith se levantou mais uma vez e caminhou até a cama, pegando a arma. ━ Eu acho que você é inteligente demais para matar um homem qualquer, Edith.
━ Ótimo. Eu ainda quero que faça a contagem de balas e veja que estão todas aí ━ ela retrucou, antes de, finalmente, dar alguma atenção à porta, que estava devidamente trancada e não havia sido arrombada como ela imaginava. ━ Você mandou Curly te dar uma cópia da porra da minha chave?
━ É claro ━ Thomas resmungou, com o cigarro preso entre os lábios enquanto observava as balas. ━ As pessoas são leais a quem paga o salário delas. Eu não precisei pedir duas vezes.
Ela balançou a cabeça negativamente, rindo pelo nariz ao tragar.
━ Eu vou trocar a fechadura.
━ A chave foi um facilitador, Edith ━ ele respondeu, devolvendo a arma à mulher e descansando as costas no encosto da cadeira. ━ Se eu quiser entrar na sua casa, trocar a fechadura não vai me impedir.
A mulher deu de ombros.
━ Bom, eu não gosto de facilitar as coisas para ninguém ━ afirmou, com a voz baixa e levemente rouca, encarando a porta antes de voltar a atenção para Thomas. ━ Ouvi dizer que o sobrenome de Ada agora é Thorne. As mulheres da vizinhança me falaram.
━ Falar é o que vocês, mulheres, mais fazem.
━ Nós falamos tanto e, ainda assim, você foi pego de surpresa pelo casamento ━ a mulher respondeu de forma afiada. ━ Eu diria que talvez os homens também devessem falar mais, mas eu não estou interessada em ouvir.
Virando o rosto para cima para encarar a mulher que estava de pé em sua frente, Thomas ousou abrir um sorriso, balançando a cabeça para os lados.
━ Quem fala muito se torna refém da própria língua.
━ Bom, eu vou continuar vivendo até encontrar alguém que me mate por isso ━ ela deu de ombros. ━ Você não trouxe suas bebidas que revelam a verdade dessa vez e não me pediu para tirar o licor do armário.
━ Eu escolhi te dar um voto de confiança.
━ E se o voto fosse quebrado?
━ Você não viveria para ver as três e meia da manhã.
Ela assentiu devagar, deixando uma risada rouca escapar de seus lábios.
━ Você deveria testar as suas frases de efeito com Freddie Thorne, e não comigo ━ ela voltou a provocar. ━ Eu apenas tentei me casar com o seu irmão, mas ele conseguiu se casar com a sua irmã.
O homem soltou um suspiro, balançando a cabeça negativa enquanto fixava o olhar sobre um ponto qualquer na cozinha.
━ Você é duas vezes mais homem que a porra do Freddie Thorne.
As opiniões de Thomas Shelby acerca de Edith Preston eram variáveis. Ela era absolutamente insuportável e teimosa, era uma certeza, e era também engenhosa e diligente. Edith não parecia temer a morte, o que o fazia se perguntar se lhe faltava a vontade ou a capacidade de segurar a língua. Quando ela estava contra ele, ele a odiava. Thomas a odiava pelos mesmos motivos pelos quais a estimava; ela era esperta demais e, de sua própria maneira, cativante, embora outras pessoas pudessem discordar.
━ Eu sou duas vezes mais homem do que boa parte da porra dos seus peaky blinders, e eles ainda não são metade da mulher que eu sou ━ Edith respondeu, com um sorriso ladino, antes de lançar um olhar para a porta. ━ Eu estou com sono. Se você quer conversar, pague uma puta para te ouvir. E quando você sair, passe a sua chave por baixo da porta.
Thomas assentiu, com as sobrancelhas elevadas e um meio sorriso quase incrédulo, e se levantou da cadeira, soltando a chave sobre a mesa e ouvindo seu tilintar antes de caminhar até a porta, sendo seguido por Edith, que a abriu.
━ Se você invadir a minha casa no meio da noite de novo, eu vou atirar em cada um dos dedos da sua mão direita ━ ela prometeu, vendo-o passar pela porta. ━ Boa noite.
Ele deveria matá-la por ameaçá-lo. Ele deveria querer matá-la. Mas não queria.
━ Tranque a porta, Edith.
demorei um pouquinho, mas voltei! espero que gostem do capítulo, e comentem bastante sobre o que estão achando!! ❤️ e aí, acham que a edith vai se aprofundar na investigação ou finalmente escutar o que o John diz e parar de se intrometer nos problemas dos outros? ela quaaaase desconfiou da grace, mas acabou deixando passar.
vejo vocês no próximo capítulo!
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