𝟬𝟭. O TERNO.
CAPÍTULO 𝟬𝟭 | O TERNO.
SE HAVIA ALGO QUE THOMAS CONHECIA, eram guerras; ele as travava o tempo todo. Entre 1914 e 1918, seus inimigos foram homens que não conhecia e que lutavam pelas Potências Centrais. Antes da Grande Guerra, pequenas batalhas em Birmingham aconteciam o tempo todo, e foram essas brigas por poder as responsáveis por fazer com que os Shelby fossem considerados realeza na cidade.
Já haviam se passado alguns meses desde que as Potências Unidas saíram como vitoriosas da guerra. Thomas estava de volta aos negócios. As batalhas nunca pararam, e ele não esperava que fossem. Também não esperava que, algum dia, tivesse de travar uma batalha contra uma modista, não àquela altura do campeonato, quando todos em Birmingham sabiam de sua fama.
━ O meu terno? ━ ele havia perguntado, alguns minutos mais cedo, sem tirar os olhos dos papéis em sua mesa. Quando não obteve resposta, subiu os olhos para a única irmã. ━ Onde está, Ada?
━ Não deixou a loja da nova modista, é claro ━ retrucou ela, com o forte sotaque. ━ Não deixou que eu o trouxesse sem pagar. Eu não iria pegar a força, se é o que está pensando. Não sou uma selvagem.
O mais velho a olhou dos pés à cabeça. Ada sempre dizia não ter vontade de se envolver com a gangue e clamava reprovar suas atitudes. Ada nunca reclamava de todas as regalias que conseguia graças aos Peaky Blinders.
━ Nossa selvageria colocou um teto sobre sua cabeça, um vestido bonito em seu corpo e os sapatos nos seus pés ━ respondeu Tommy, puxando um maço de cigarros e selecionando um deles. Em seguida, o acendeu com um isqueiro velho e deu um longo trago. ━ Você caçava ratos com armas, Ada.
Segurando um revirar de olhos, Ada deu de ombros, se sentando em frente ao irmão e cruzando as pernas.
━ A modista se recusou a entregar o terno, Tommy. Eu não poderia fazer nada ━ disse, mais uma vez, desejando apenas dar um fim àquela conversa. ━ Ela é nova na cidade, é claro, talvez ainda não saiba sobre o lendário nome dos malditos Peaky Blinders.
Havia um tom de sarcasmo em sua voz, proferido especialmente nas últimas palavras. Tommy ignorou, soltando a fumaça e se levantando calmamente, guardando os papéis em uma das gavetas.
━ Então alguém deve a ensinar, não é?
━ Tommy...
━ Nunca pagamos por ternos, Ada. Não vamos começar agora.
Ada bufou em frustração, se levantando para seguir o irmão, que deixou o escritório e fechou a porta logo após sair. A irmã não se preocupava com Thomas, é claro que não, mas temia pela modista; ainda era difícil dizer quais eram os limites dos irmãos no que dizia respeito às demonstrações de poder, especialmente no conturbado período pós-guerra. Aqueles homens haviam visto muitas coisas que ainda os assombravam durante o sono.
Mas Thomas saiu da casa de apostas antes que Ada pudesse o alcançar, ajeitando a boina sobre a cabeça, de forma a tampar seus olhos e os proteger das finas gotas de chuva que caíam sobre Small Heath naquele dia cinzento e enevoado. Poças se acumulavam pelas ruas cheias de buracos, e lama era formada nos diversos lugares onde a terra se acumulava. Small Heath era um inferno.
Um inferno comandado por ele.
Durante seu caminho até a nova loja do local, encontrou muitos bares, onde homens mal-encarados se reuniam para beber aos montes e criar problemas após um longo dia de trabalho, e alguns comerciantes que guardavam seus produtos. Os bordéis tinham as janelas fechadas, ainda fora do horário principal de funcionamento. Mães gritavam com as crianças que ainda brincavam nas ruas, ordenando que voltassem para dentro de casa antes que um resfriado as atingisse. Elas não obedeciam. Alguns dos filhos de John estavam no meio, Tommy percebeu, descalços como sempre e pulando em poças.
Por fim, após virar uma última esquina, Thomas encontrou seu destino. Em uma placa presa à porta de uma pequena construção de dois andares, lia-se "Mundo das Agulhas", indicando que era ali o mais novo ateliê de Small Heath. Sem perder tempo, Shelby abriu a porta calmamente, fazendo um sino soar, indicando a entrada de um cliente.
━ Seja bem-vindo ao Mundo das Agulhas ━ uma voz feminina saudou, mas Thomas não encontrou sua origem. Ouviu passos próximos, provavelmente do outro lado de alguma das estantes repletas de tecidos dobrados, e permaneceu silencioso. ━ Em que posso ajudar?
Os passos se aproximaram. Após alguns segundos, uma mulher surgiu diante de Thomas, com um sorriso simpático dançando nos lábios pintados de carmesim. Ela tinha os olhos castanhos escuros como chocolate e cabelo que se ondulava à altura dos ombros. Era pouca coisa mais baixa do que ele - mas Thomas também não era alto - e vestia roupas discretas.
━ Estou aqui para buscar um terno ━ ele respondeu, e ela assentiu, já se virando e sinalizando para que ele a seguisse.
Ele o fez. A mulher parou em frente à uma mesa e pegou uma prancheta, onde anotava informações sobre seus projetos, e subiu o olhar para Thomas novamente, curiosamente.
━ O terno está sob qual nome?
Ao responder, o homem nem mesmo piscou.
━ Thomas Shelby.
O sorriso simpático que previamente havia dominado os lábios da morena se desfez, e um brilho de escárnio iluminou seus olhos.
━ É claro ━ murmurou, desdenhosa. ━ Espero que não tenha esquecido a carteira em casa novamente.
Thomas umedeceu os lábios e olhou para o chão, puxando o maço de cigarros de dentro do casaco.
━ Você não está achando que vai fumar aqui dentro, está? ━ ela ergueu uma sobrancelha. ━ Não quero meus tecidos cheirando à fumaça.
Sem se importar, o gângster puxou um isqueiro e acendeu o cigarro, direcionando-o aos lábios e dando um longo trago, vendo a mulher descontente à sua frente cruzar os braços em frente ao corpo.
━ Como se chama? ━ ele perguntou, calmamente.
━ Edith ━ a morena respondeu.
━ Edith...? ━ Thomas a incentivou a continuar.
━ Preston ━ completou, sem paciência. ━ Edith Preston.
━ Bom, senhora Preston. Você está em Birmingham agora. Vai aprender que, aqui, as coisas acontecem da forma que desejo ━ iniciou a explicação com a voz baixa, olhando nos olhos da mulher sugestivamente. ━ E, se digo que vou levar um terno para casa, vou levar, de uma maneira ou de outra. E eu não pago por um terno há anos, senhora Preston.
Se a costureira se sentiu intimidada, disfarçou muito bem. Thomas tinha o dom da oratória, mas Edith tinha os olhos mais dissimulados que já havia visto.
━ Primeiramente, senhor Shelby, é senhorita ━ ela corrigiu, sorrindo falsamente, e depositou a prancheta sobre a mesa novamente. ━ Acabamos de sair de uma guerra. É hora de criar novos costumes. Se nunca pagou por ternos antes, começará agora ou os buscará em outro lugar. Nada deixa minha loja a menos que o dinheiro pese nas minhas mãos.
Thomas era tolerante com mulheres. Se qualquer homem tivesse se dirigido a ele daquela forma, o estabelecimento já estaria em chamas há tempos. Mas, naquele momento, sentia que já estava sendo indulgente demais.
━ Senhorita Preston, esse não é o jogo que quer jogar ━ ele avisou, se aproximando da mulher. ━ Estabelecimentos em Small Heath foram reduzidos às cinzas por muito menos.
Empinando o nariz, Edith deu um passo em direção ao homem.
━ Não sou conhecida por fazer caridade, senhor Shelby ━ ela disse. ━ Se quer um terno, terá que pagar.
Ele soltou a fumaça próximo demais de seu rosto. Cerrando os dentes, Edith virou o rosto para o lado, desviando.
━ Edith ━ ele começou, e ela elevou uma das sobrancelhas ao ser chamada pelo primeiro nome. ━ Sabe que posso pegar a porra do terno sem problemas, não sabe?
━ E por que não pega? ━ a voz de Edith era quase desafiante, e Thomas riu baixo. ━ Suas mãos ainda estão vazias, senhor Shelby.
━ Porque sou um homem bom, senhorita Preston, e estou sendo indulgente. Você não quer que eu perca a paciência ━ ele explicou, disfarçando ameaças com a voz quase suave. ━ Estou te dando a chance de me entregar o terno por conta própria, para não criar... inimizades. Tenho certeza que não é sua intenção, é?
Mas Edith não parecia disposta a dar o braço a torcer.
━ Os Peaky Blinders estão dominando Birmingham. O senhor tem dinheiro suficiente para pagar por um terno.
Então a nova modista conhecia sua fama. Talvez apenas fosse estúpida o suficiente para a ignorar.
━ Eu não pago por meus ternos ━ ele disse, como se explicasse algo a uma criança. ━ Eles são por conta da casa, ou a casa pega fogo.
Estavam próximos o suficiente para que o cheiro da fumaça na respiração de Thomas chegasse até às narinas de Edith. Ela estava claramente contrariada; quantos ternos teria de dar aos Peaky Blinders no futuro, se desse aquele primeiro? Mas Edith estava sozinha. Estava sozinha, e tudo o que tinha era o pequeno ateliê e uma pequena casa no andar de cima. Não estava em uma boa posição para entrar em embates com gangues.
Thomas viu hesitação nos olhos da mulher. Viu quando seus dentes se cerraram novamente e ela se virou, irritada, puxando um cabide com uma longa capa - que protegia um terno, o homem supôs - de um armário velho. Relutante, o estendeu em direção a Thomas, que aceitou o cabide em suas mãos.
━ Eu sabia que faria a escolha certa, senhorita Preston.
Mas Edith não respondeu. Calmamente, puxou o cigarro dos lábios de Thomas, que a encarou sem expressar emoções. Então, soltou o cigarro aceso, que caiu sobre o piso de madeira, e pisou sobre ele, esfregando a sola dos sapatos para o apagar.
Novamente, seu olhar subiu para o rosto do homem, que pressionava os lábios em uma linha fina.
━ Eu não tenho medo do fogo, senhor Shelby. Se tivesse, não viria para um inferno como Small Heath ━ contou ela, com a voz baixa. ━ E não estaria negociando com o diabo em pessoa.
Thomas soltou ar pelo nariz.
━ Você não negocia quando está na pior ━ explicou, já se virando para deixar o ateliê mal-iluminado, ajeitando a boina na cabeça e abaixando o rosto em uma curta despedida. ━ Até a próxima, senhorita Preston.
Thomas caminhou pelo mesmo caminho de antes, dessa vez obrigando os filhos de John a seguir para casa, com o terno em mãos representando mais uma pequena vitória em nome da família Shelby e dos Peaky Blinders. Não podia permitir que houvesse espaço para desrespeito à gangue em Small Heath; ele não tinha tempo para lidar com aquilo.
Quando adentrou seu escritório novamente, encontrou Ada a sua espera, sentada de frente para sua mesa. Ao ouvir a porta se abrindo, a mulher se virou rapidamente para o irmão, o olhando preocupada.
━ O que você fez?
Ele elevou o cabide em suas mãos, antes de o colocar sobre a mesa e se sentar novamente, soltando um longo suspiro cansado.
━ Eu consegui a porra do terno, Ada. É o que eu fiz.
━ E a modista?
Thomas fingiu não compreender a pergunta.
━ O que tem ela?
━ Thomas...
━ Ela está viva, Ada ━ interrompeu a irmã, impaciente, e serviu uma dose de uísque em um copo, dando um gole. O líquido desceu quente por sua garganta. ━ Você pensa coisas horríveis a meu respeito.
Foi a vez de Ada suspirar. Agora mais aliviada, a jovem caminhou para fora do escritório, murmurando algo sobre precisar ajudar Polly. Thomas ignorou, abrindo uma das gavetas de sua mesa e pegando os documentos que lia mais cedo, os colocando sobre a superfície de madeira novamente e percebendo que deveria colocar o terno em outro lugar para que não ocupasse tanto espaço.
Agarrou o cabide e se levantou, indo em direção à porta, onde planejava o pendurar na maçaneta. Sua curiosidade falou mais alto; os ternos do Mundo das Agulhas valiam mesmo todo o estresse passado naquela tarde? Seus dedos calejados foram até o zíper da capa, lentamente os puxando para baixo no intuito de revelar as vestimentas.
━ Porra ━ ele xingou baixo, correndo os olhos pela peça pendurada no cabide, e passou uma das mãos pelo rosto irritado, murmurando: ━ Inferno de mulher.
Edith não havia o entregado o terno, como ele pensava. Disfarçado pela capa escura, havia um vestido.
E aí, o que acharam do primeiro capítulo de Dark Paradise? Espero que tenham gostado da Edith!
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