O que existe no presente
Os esvoaçantes cabelos reluziam com as chamas bruxuleantes. A face pálida com traços suaves e femininos transpareciam contentamento fervoroso, uma felicidade fantasiosa com um deslumbre doentio. Trajando um longo vestido branco manchado, ela dançava graciosamente para demonstrar seus dotes artísticos e seu desempenho primoroso. Ao redor, corpos caídos jaziam, todos cuja vida lhe fora arrancada, imóveis como peças de um teatro de mal gosto.
Seu estômago revirou com a cena, não suportando testemunhar tamanha crueldade.
“Quando virá brincar comigo, irmã?”
Arya arquejou com o despertar brusco, praguejando mentalmente sob os efeitos prolongados do remédio para dormir e seu devaneio — não, a breve memória. Se o preço para ter sonos mais longos eram lembrar de coisas que deveriam permanecer enterradas, desistiria de ingeri-los.
— Pesadelo? — indagou a voz masculina.
— Creio que sim. — esticou o corpo notando, um pouco grogue, que esteve dormindo no sofá e coberta com um dos sobretudos vermelhos de Dante. Ele deve ter o feito quando chegou da adega.
Tentando amolecer meu coração, Dante?, murmurou para si mesma, aspirando o aroma de pólvora e álcool do casaco.
— Talvez não devesse ler tanto antes de dormir.
— Ler me distraí e me ajuda a aprender mais sobre esse período.
Esticou a mão e encostou na pilha de livros jogados ali, lembrando vagamente da sua sessão noturna de leitura.
A edição que adquiriu na biblioteca tinha páginas extras com contos a respeito do Lendário Cavaleiro Negro Sparda, exaltando seus feitos entre os homens e como fora um símbolo de honra e altruísmo mesmo para um demônio que, em teoria, se valia de desgraça e maus sentimentos. Ele provou ser o oposto de seus compatriotas e seu senhor que desejava escravizar a humanidade. Bocejou ainda entorpecida, esquadrinhando o escritório até encontrar com Dante aparentemente adormecido com as pernas sobre a escrivaninha e uma revista cobrindo o rosto, nada muito fora do comum.
— E como foi sua noite? — questionou com uma voz rouca de recém despertada. — Você chegou cedo. Não achou o que procurava?
Dante se mexeu ligeiramente.
— Nada que realmente fosse bom. — respondeu sem rodeios.
— Sem trabalho hoje?
— Não estou com vontade de sair. — retrucou jogando preguiçosamente a revista na mesa. — E pelo visto você encontrou uma boa companhia entre as páginas desse livro, espero que não mais interessante que eu.
— Ninguém é mais interessante que um jovem adulto empreendedor com hábitos alimentares questionáveis. — Arya riu, lançando um olhar travesso ao caçador. — E você sabe que se não sair pra trabalhar com mais frequência, sua agência nunca vai deslanchar como deseja, certo?
Ele deu de ombros.
— Seu pai é bastante famoso, até personagem de contos infantis virou. — comentou recolhendo os livros e os organizando na mesa.
— Se soubesse a quantidade de vezes que já ouvi isso. — fitou o ventilador de teto girava desengonçadamente pela falta de manutenção – somando um item na longa lista de consertos. Como seu negócio ainda estava no início, em termos de orçamento é o mais abaixo do zero possível, o que levaria um tempo para pôr tudo em ordem para abrir oficialmente.
Cobriu novamente o rosto com a revista, tediosamente escutando os ruídos do aparelho e o estalar do assoalho sob o peso da nova companhia que perambulava pelo local com frequência irritante, indo de um lado para outro.
— Sparda foi sim uma lenda viva. Contudo, não como as pessoas imaginam. — Arya balançou um livro jocosamente.
— Tem a minha atenção agora. — brincou focalizando na mulher com feições divertidas. — Quero ouvir o que... — o som do telefone cortou a interação. — Espero que dessa vez não seja mais um confundindo meu negócio com uma funerária. — atendeu com visível tédio.
Após poucos minutos de uma breve conversa, Dante se levantou e vestiu seu sobretudo, guardando as armas no coldre e Rebellion nas costas.
— Vou ter que resolver alguns problemas. Se cuida. — avisou. — E não abra a porta pra estranhos.
Arya revirou os olhos.
— Não se preocupe. Tome cuidado pra não destruir mais patrimônios públicos. — provocou em represália com uma sutil dose de sarcasmo, ligando o jukebox.
×××
Ao acordar, na manhã seguinte, Arya escutou ruídos confusos e desconexos, como se não existissem na sua realidade. Tinha optado ficar no escritório, passando a noite entre pequenas histórias e aquilo tornou toda a paz do momento em uma cacofonia.
Rompendo.
Quebrando.
A música ao fundo tocava em um ritmo contagiante, a acústica do lugar favorecia para que o som ecoasse alto pelo ambiente vagamente desordenado, quase combinando com o instrumental mais metal e a voz pesada do cantor. Uma arfada suave escapou dos lábios entre abertos e um couro de rosnados em frenesi vibrou em resposta — tão hostil quanto faminta. A besta vil brandiu a lança afiada para próximo do pescoço delgado, o ato assistido atentamente pela vítima que exalava com leveza, os olhos esverdeados entreabertos e cautelosos.
Páginas avulsas soltas dos livros que leu flutuavam perdidas, formando uma valsa desengonçada rodopiando sem parar até caírem no chão.
A lâmina imunda se aproximava languidamente da tez pálida, como uma ameaça muda de que sua efêmera vida humana seria ceifada. No entanto, a mulher não transparecia preocupação, talvez o medo estivesse suprimido a capacidade racional a tal ponto que aceitou seu destino, sem resistência ou pesar. Simplesmente não recuou tampouco emitiu um apelo sonoro pela sua segurança, para que a poupassem. O grupo de demônios mantinha a dama imobilizada, totalmente a mercê de seu selvagem ataque repentino, satisfeitos com uma presa tão submissa e resignada.
O disco no jukebox fora trocado e uma canção mais melódica e sensual tocou substituindo o entusiasmo delirante da anterior, contudo, ainda mais envolvente. Arya inclinou ligeiramente a cabeça tediosamente para o lado oposto no qual a arma encostava, meditando no quanto aquelas criaturas realmente se empenharam em acreditar que a cercaram, que a tinham sob seus domínios, que realmente a assustavam. Ponderou se existia algum traço de ingenuidade neles ou uma pura presunção — a mesma que os conferia a arrogância para matar humanos. Sempre buscando uma pessoa para subjugar, uma figura frágil para sucumbir a sua violência.
Sem perder mais tempo nessa encenação, os impeliu com vigor, desamarrotou suas roupas um pouco aborrecida com alguns rasgos pequenos no tecido da saia. Dante havia arranjada algumas peças de roupa para si e detestou o fato daqueles invasores terem-na destruído depois do trabalho que o meio-demônio teve para obtê-las. Terminando de checar o estrago, conjurou um círculo mágico com um pulsante brilho vermelho que, de imediato, agiu sobre o grupo como uma espécie de energia luminosa que os desintegravam rapidamente. Pela velocidade, entendeu que os demônios eram de classes mais baixas e sua missão, muito provavelmente, seria testar a força de Dante — o que não funcionou como planejado visto que o mestiço saiu minutos antes.
— Esse deve ser o cardápio diário de Dante. — ajustou os longos cabelos ligeiramente despenteados pelo jogo que se propôs ao não finalizar os demônios o mais rápido possível. Queria verificar se eles teriam algum plano ou só foram mesmo mandados com um propósito levianamente mal executado, o que resultou em nada.
Recolheu os livros destruídos consternada pelas grandiosas obras terem encontrado um fim tão prematuro.
Suspirou entediada.
No chão, havia, entre as páginas, uma carta um pouco amassada. Recolheu o invólucro e o abriu, encontrando uma fotografia velha com a coloração bem desbotada com uma mensagem no verso: Para você.
Franziu o cenho com a imagem rasurada da figura feminina, porém identificou o rapaz da foto e era assustadoramente semelhante a Dante — ou seria o próprio Dante — com os cabelos escovados para trás com um cuidado que não imaginava vir de um jovem desbocado como o caçador.
— Isso parece um... Convite. — murmurou, batendo o salto distraidamente no assoalho. — Mas... De quem...? — continuou examinando a fotografia, entendendo um pouco da sua fina e delicada estrutura.
— Olha só quem encontrei aqui. Que inesperado, não é? — uma voz masculina gracejou alto, irrompendo a tranquilidade pós ataque.
Quantas vezes teve o desprazer de vê-lo zanzando pela agência?
A presença dele era uma constante que desejava não ter um contato aprofundado. Sua virtuosa paciência não se estendia as provocações e falatórios de um cara com pouco menos de educação e modos particularmente baixos. Além de examiná-la com uma insistência ganância.
— Eu moro aqui, Enzo. — revirou os olhos com o rapaz engraçadinho que servia de agente ocasional de Dante para fornecer trabalhos no qual era o maior beneficiário. Acabou o conhecendo dias depois de sua chegada a loja.
Enzo Ferino era o que poderiam caracterizar como um boêmio de gostos duvidosos e humor ácido, um cretino com um senso dúbio.
— O Dante saiu, como pode ver. — moveu o peso de uma perna a outra, pensativa.
Sua falta de sorte lhe sorriu, impedindo-a de se agraciar como uma auto companhia de estudo.
— Que pena, trouxe um trabalhinho fresco pra ele. Renderia uma boa grana. — ajeitou o chapéu, com um semblante frustrado. Se tratando de dinheiro jogado fora que poderia estar em seus bolsos, não esperava outro tipo de reação.
— E o que é esse trabalho?
Um sorriso sacana se desenhou em suas feições.
— Sabia que não deixaria um amigo na mão, Arya.
— Não somos amigos em primeiro lugar, só quero ajudar com recursos financeiros. — cortou sem qualquer delicadeza. — Acordei faz mais de dois meses e me sinto mais que apta a tais serviços. Pelo menos isso pagará pelas minhas despesas.
— Você é tão insensível quanto Dante, talvez não devessem viver sob o mesmo teto. Ele vai estragar você. — alfinetou, rindo.
— Claro, e deveria morar com você?
— Eu te trataria como a rainha que você é. — Arya disfarçou a risada debochada com o comentário.
— Você não é meu tipo. Em muitos aspectos. — estendeu a mão para que ele entregasse as informações da missão, algo que fora prontamente atendido.
Folheou as páginas dos arquivos com ceticismo.
— E então? Vai entrar na jogada?
— Bem, vou verificar, diga ao Dante que precisei adiantar o lado dele. E fique longe das bebidas. — o encarou com o olhar bastante assustador, a ponto dele assentir sem qualquer gracinha.
Pegou uma espada e um casaco, disparando para fora do escritório. Possuía uma boa memória para traçar caminhos e decorar mapas sem a necessidade de qualquer ajuda externa, apesar de não ter uma vasta experiência no ambiente social do novo período, não fora muito difícil se adaptar a ele. No entanto, não dependeria somente de seu senso de direção e sim, também, de um dispositivo chamado GPS. Seguiu a rota próxima ao litoral da cidade, em uma área mais interiorana, agradecendo mentalmente pela sorte de tudo ser no lugar mais isolado possível do centro populacional.
Abriu um portal em uma zona deserta para não atrair desnecessariamente espectadores curiosos e uma onda de energia sombria a atingiu violentamente tal como um sopro ácido e pútrido misturado com o vento seco, a atmosfera carregada com o cheiro tenebroso e enjoativo de morte. Não pôde evitar a careta com o ar rançoso que a recebeu, esquadrinhando os arredores para se situar diante do cenário apocalíptico do lugar.
— Segundo aquele relatório os ataques de demônios eram frequentes, mas eles devem ter cansado de brincar e resolveram por um fim no espetáculo. — sussurrou pensativa. — Não posso fazer muito... Infelizmente... Pobres almas...
A cidade condenada ardia em chamas altas que se propagavam rapidamente pelas construções em ruínas. Caminhou pelas ruas tomadas, preparada para sacar a espada caso capturasse algo, os dedos estrategicamente posicionados no punho da arma. Seu olhar aguçado percorreu cada centímetro do local com a paciência de uma caçadora, sucinta e astuta.
Tentou, através de sua percepção sensorial, captar algum sinal de vitalidade — pelo menos um ser vivo que pudesse resgatar. Seu rosto se contorceu em fúria e pesar com a concepção da amarga verdade, porém, assimilou uma fraca e oscilante aura em meio a atmosfera mortal.
Correu por entre escombros com o máximo de discrição possível, saltando entre o que sobrou de casas e aterrissou com sutileza na entrada da residência decadente no qual a energia vital irradiava débil. Adentrou sem grande dificuldade e arfou com o odor pungente de carne podre queimada, procurando avidamente o seu alvo que se arrastou para um vão de um armário velho.
Uma criança.
— Ei, calma. — murmurou com doçura, esticando a mão para alcançá-lo. — Eu vim ajudá-lo.
O garoto não se moveu, seu rosto congelado em feições de profunda desesperança e resignação.
— Não precisa ter medo. — entoou gentilmente. — Meu nome é Arya, sou uma caçadora. Estou aqui à trabalho. Vim salvar os sobreviventes como você. — havia lido, em certa ocasião, que para passar credibilidade e desenvolver uma posição de conforto e confiança era imprescindível atuar como uma pessoa segura e falar de si mesma para que o outro se sinta a vontade para se abrir — um gerenciamento de empatia. Um método que prometia ser mais prático.
A princípio o garotinho recusou a aproximação, mas, a medida que o encorajava a sair do casulo no canto fundo de um móvel velho no qual se enfiara, ele saiu, fitando-a com tristeza.
— Está tudo bem agora... Como você se chama?
— Meu... Nome... É Vitale.
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