02 - Hostilidade.
A porta se abriu, e a luz do sol contornou um homem baixinho e magrelo.
- Bom dia Doutor.
- Olá Professor, entre e sente-se, qual é o conflito que hoje lhe traz aqui?
- Como sempre, mais uma vivência no meu trabalho, eu não sei se irei aguentar por muito mais tempo.
Aquele homem de pequena estatura e galgaz encara o chão, como se seu olhar pudesse ultrapassar o limite da matéria física.
- Eu não sei o que fazer Doutor, por um lado eu carrego o meu desejo de ensinar aqueles adolescentes a desenvolverem suas identidades e perspectivas futuras, mas neste mundo, as escolhas que eles são levados a fazer, me leva a desacreditar no meu trabalho, sinto que estou desperdiçando meu tempo com escórias! Mas eu não devia sentir isso por eles só por seguirem um caminho que me machuca tanto.
E isso se torna ainda pior quando não se contentam com corromperem somente a si mesmos, essas pessoas ainda tecem comentários tentando me enquadrar na mesma condição repugnante deles! Ontem uma garota me perguntou se eu tinha uma namorada, quem aquela escrupulosa acha que sou para ser um desses detritos humanos que flexibilizam a violência em nome de uma busca por prazer imediato? - Introduzindo ao diálogo suas lágrimas que outrora estavam guardadas.
- Professor, você está novamente deixando sua vivência guiar a hostilidade em suas palavras, estes adolescentes estão passando pelo processo de investigação do mundo, as escolhas que eles estão fazendo e experimentando agora, não são permanentes, você não pode generalizar como se fossem ficar sempre presos em um ciclo de busca pelo prazer imediato como você mesmo descreveu, nós já conversamos sobre isso, você que está preso em um ciclo, o ciclo de reviver suas cicatrizes enquanto obstáculos de percepção para com a vida. No encontro passado a gente tinha conversado sobre a relação que você estabeleceu ao longo da sua vida sobre a manifestação de sexualidade e violência ser sinônimo, e o acordo era que pensasse uma lista com um momento que presenciou e sentiu hostilidade durante sua rotina ao longo da última semana, você conseguiu?
- Eu sei Doutor, mas não é tão fácil de ressignificar. Todo dia na minha rotina eu vejo eles nas descobertas das mesmas coisas, seja a perda da inocência, o luto pela criança que deixou de ser, e sempre depois vem a descoberta da sexualidade no outro e em si mesmo, e sempre veem isso como oportunidade para se satisfazer sem pensar nas consequências.
Eu não posso ficar mudando de área, eu sempre sou designado a dar aulas no ensino médio, eu sempre lido com este recorte do desenvolvimento humano. Estes conteúdos nem deviam aparecer na minha grade que leciono, sou professor de matemática poxa!
Porque deveria lidar com essas questões tão humanas? Esses dias um garoto teve a audácia de me pedir espaço para uma declaração na lousa para a namorada dele, dizendo que ia usar a fórmula do amor e por coerência teria que ser na minha aula, deu raiva, mas enquanto profissional eu tento não deixar minhas feridas interferirem no meu exercício profissional, ai dei espaço para ele continuar.
Ele pediu atenção de todos e disse " Olá pessoal, venho por meio desta mensagem dizer algo especial para a pessoa mais importante para mim, meu amor, hoje faz 1 ano, 2 meses e 8 dias que a gente se conheceu, durante este tempo você me fez conhecer mais a mim mesmo, encontrar minha raiz, você me elevou ao quadrado, me mostrou como posso ser especial, e nos últimos 9 abraços, 8 beijos e 0 abandono, você me fez elevar ao céu, me faz querer voar. A fórmula ficou 128√e980, e depois ele apagou a parte superior da fórmula, fazendo formar a frase "I love you".
Ai depois do discurso, vê se pode, todo mundo aplaudiu e ficou olhando para mim como se eu tivesse que comentar algo, eu que não sei nada de relacionamentos, eu que me formei em exatas porque não sou bom em humanas, e simplesmente fingi demência. Quando eu ignorei e dei continuidade a aula porque não sabia o que falar, começaram a tecer comentários perversos.
- E como você se sentiu após ouvir esses comentários?
- No primeiro momento eu fiquei furioso, eu queria jogar eles todos pela janela, mas depois eu fiquei extremamente triste, eu realmente já tentei mudar, ser diferente do que eu sou, ser uma pessoa normal, que consiga compreender o desejo por outra pessoa, que tem a possibilidade de arrumar uma pessoa que eu possa manter ao lado, que não me abandone, que ofereça a possibilidade de eu ter uma família, mas isso não vai acontecer. Mesmo se eu achasse uma pessoa com boa tolerância ao fato de eu não sentir atração sexual por ela, ela buscaria isso por fora ou terminaria comigo, as pessoas dizem que relacionamentos amorosos não se resumem a sexualidade ativa, mas até hoje não encontrei uma alma viva que toparia ter um relacionamento amoroso com outra pessoa sem intimidades sexuais. O que devo fazer? – Se levantou do sofá e se sentou no chão, em posição fetal, como se sua vida dependesse de abraçar seus joelhos.
- Sei que é difícil ter esperanças quando você não vê mais a luz no fim do túnel para iluminar a respostas para seu problema, e que é tentador deixar que outra pessoa tome a decisão e responsabilidade sobre o que fazer, mas eu não posso te confortar desta forma, você fez imensos progressos até agora, quando chegou você não conseguia ver a sua participação nisso tudo, dizia que todos eram responsáveis e você apenas uma vítima, hoje você consegue perceber o papel das suas cicatrizes, resultado das suas vivências ao longo da sua vida. As vezes só precisamos buscar estratégias para amortecer a raiva e buscar equilíbrio com a realidade que nos cerca, para que o tempo neste movimento de viver, norteie e clareie o sentido da vida. Teve alguma outra vivência?
Cabisbaixo, encarando sua própria sombra, demorou alguns minutos para começar a desabafar.
- Um incidente com minha irmã. Esses dias ela ficou querendo me arrumar uma candidata a namoro, depois que ela teve um filho não há mais um dia sem que ela não fique dizendo que eu deveria passar por essa experiência, que é uma experiência que não tem preço.
Ela disse que nossos pais iriam ficar muito orgulhosos, e que lá do céu agradeceriam por dar continuidade ao legado da família, essa pressão em ser este tipo de pessoa, como ela pode decidir por meus pais que já se foram?
Ela não tem esse direito! Eu não suporto, apenas sai de lá, cheguei em casa e fiz vários cortes no meu peitoral, eu precisava sentir o sangue de alguém, mesmo que seja o meu para acalmar minha ira.
- E seu método funcionou? Acalmou sua ira?
- Não! Eu apenas fiquei com o peitoral ardendo, e sabendo que graças a essas pessoas repulsivas eu me machuquei mais, que graças e eles eu apenas perco qualidade na minha vida, graças a eles eu sofro, não devia ser eu a sangrar e sim eles.
Um sino toca.
- Parece professor, que as páginas acabaram, o horário passa rápido quando falamos sobre o que nos é sensível. Você trouxe nessa sessão o quanto essa raiva te afeta, e vejo que sempre busca formas de reprimir, só que é um processo no qual acaba intensificando-a. Vou passar uma lição de casa para você, quero que as próximas pessoas que sentir que estão te atacando, quero que você conte para mim as possibilidades de tortura que você idealiza, sem reprimir, apenas colocando para fora. Ok?
O homem se levanta, com o semblante baixo se dirige a porta, um barulho ecoa. Ainda lá dentro, resta um homem abatido e em desespero, o que poderia falar para aquele rapaz? Como ser um profissional que separa emoção da razão? Se tivesse passado pelas mesmas experiências faria pior, como então buscar equilíbrio e achar respostas? Perguntas e mais perguntas, sua humanidade se mostra latente, sem as respostas. Aos poucos, refletindo, vai anotando em seu caderno:
->Associação de manifestação de sexualidade como manifestação de violência.
->Conflito entre o que é e o que acaba sendo requerido socialmente.
->Quando pressionado ou ameaçado, como fuga se utiliza de hostilidade como instrumento para afastar as coisas que lhe fazem mal, devo tomar cuidado com a minha forma de enquadrar assuntos delicados.
Um som ecoou vindo da porta, ao som de três batidas fortes, era sinal de que alguém tinha chegado.
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