💨 CAPÍTULO XVIII: CHEIRO RUIM💨
—D A N I E L Is Not Sick—
Aos dez anos, Daniel teve mais coelhos do que qualquer outra criança da cidade. Todos os bichinhos tinham o mesmo infeliz fim: encontrados mortos com as entranhas para fora e os olhos sem vida nos jardins do casarão da fazenda Miller.
Para os pais, alguma raposa ou animal comia os coelhos.
O sorriso sádico de Daniel ao encarar mais uma morte indicava outra resposta e, tanto Solange quanto Alberto, tentavam ignorar a felicidade do filho.
Decidiram parar de dar coelhos brancos.
Isso despertou a ira em Daniel.
Durante os dois anos em que não ganhava mais nenhum, mandava os "criados", que moravam no casebre dos fundos do terreno arenoso e quente, procurarem um para ele.
O problema era que tinha que ser branco.
Alguns até comprariam um, se recebessem dinheiro dos patrões, na feira e entregariam ao menino de bom grado. Mas eram escravizados, fadados ao ato de sobreviver para trabalhar e trabalhar para sobreviver, dentro de um círculo do inferno.
Alberto, o coronel da fazenda e pai do pequeno monstrinho, não poupava esforços para aplicar a "disciplina".
A chibata, o tronco, a restrição de comida e água, o cárcere aconteciam, mesmo décadas após a abolição da escravatura.
Se recebessem dinheiro, não pensariam muito ao tentar juntá-lo para dar ao garotinho um coelho branco. somente para que Daniel não perseguir mais as galinhas, gatos e cachorros da fazendo com uma faca enorme nas mãos, que logo era retirada pela babá que sempre dava um sermão que entrava em uma orelha e saia pela outra.
Enquanto brincava escondido com Carla, a menina de sua idade com cabelos crespos, pele retinta brilhante e lábios carnudos, no jardim da casa, ele tentava convencê-la a caçar coelhos, ou qualquer outro animal. Mas a garotinha, que até tinha medo de Miller por ele ser um dos patrões, tentava recusar sem dizer não com todas as letras.
Após tanto tempo convivendo com Daniel, sabia que o garoto mimado era bem controlado quando recebia um talvez no lugar de uma negativa certeira. Por isso, floreava suas respostas: amanhã, depois de manhã, por que não podemos criar um na lama? E por aí vaí.
Um dia, no jardim, Carla enfiava as mãos na terra, construía um castelo com o baldinho, enquanto Miller ficava sentado na cadeira, olhando, apático e perdido em seus pensamentos, suas lembranças de seus antigos coelhos brancos, que saudade tinha deles.
Os pézinhos do garoto balançavam usando sapatos sociais que brilhavam com o sol escaldante; sua camiseta social e calça de linha eram um contraste aterrorizante com as roupas surradas de Carla.
Daniel olhou sobre os ombros e encarou seu pai dentro do casarão. As paredes amarelas, os ornamentos no gesso, as janelas largas e as cortinas brancas, davam um ar de realeza doentia.
O pai, gordo e alto, amarelo e suado, gritava com os escravizados e até levantava a mão, ameaçando bater.
Fazia uma semana que seu pai contratou um professor particular para lhe dar aulas de uma matéria que não tinha na escola e que Daniel nunca ouviu falar.
Detestava aquilo do começo ao fim.
Sentar na mesa de madeira escura da cozinha e ouvir o professor falando sobre como, de uma maneira estranha suspeita, geneticamente, pessoas brancas eram superiores aos não brancos.
Dani sempre juntava as sobrancelhas, questionava, contradizia seu professor e pensava nos seus coelhos, brancos, mas indefesos, fadados à morte, e nada superiores a Carla. Virou seu olhar para ela.
— Você vai à escola? — perguntou com a voz apática, sem prestar atenção em como a pequena garota, com seus cabelos presos em um coque, progredia em sua construção de areia.
— Não — ela respondeu.
— Por que?
— Papai e mamãe falam que tenho muito trabalho para fazer aqui e sem tempo para a escola.
Em outras palavras: se não fosse obrigada a brincar com Daniel, aquele menino estranho que lhe causava arrepios; se não fosse obrigada a limpar os banheiros, todos os cinco daquela casa gigantesca que ficava na fazenda.
— Por que será que você trabalha e eu estudo? — Miller perguntou. Carla levantou o olhar.
— Porque você nunca vai parar no chiqueiro como nós.
— O chiqueiro dos porcos? — perguntou.
Carla olhou ao redor para ver se mais ninguém ouvia, viu que os "criados" que cuidavam do jardim estavam longe o bastante, voltou a encarar Miller, negou com a cabeça e sussurrou:
— Não, o chiqueiro de gás para nós, humanos.
— Onde fica esse chiqueiro?
— Aqui na fazenda, há uns quilômetros depois da porteira e pasto das vacas.
— Me leva lá um dia? — perguntou — talvez encontremos um coelho branco — disse animado.
Carla fez uma careta e voltou para a sua construção.
— Não podemos ir para lá, só paramos lá quando ficamos inúteis aqui no trabalho, por isso — disse e olhou o menino — você estuda e eu trabalho, um dia você morre, mas eu posso ser levada para o chiqueiro de gás se não continuar trabalhando.
— O que acontece no chiqueiro de gás?
— Nunca fui para lá, como vou saber?
— Como sabe que ele existe, então?
— O cheiro ruim — revelou sussurrando mais ainda — já notou que quase todo dia perto no final da tarde a fazenda fica com um cheiro ruim? — Daniel concordou com a cabeça, adorava aquele cheiro — então, é o chiqueiro, quem continua trabalhando, não vai pra lá, quem não, vai. Mas antes passa pelo banho especial. Não quero ir pra lá.
— Por que?
— Quem vai para o chiqueiro, não volta.
Na quinta sessão de terapia, três após o ataque psicótico, Daniel Miller continuava mudo, sem responder nem o bom dia de Sarah Kato.
Não a questionou em momento algum sobre o coelho branco.
Passaram três semanas, três dias, três sessões que "como está?"; "gosta do calor?"; "parece que hoje vai chover" eram as trivialidades que a doutora jogava no ar e o silêncio uma das respostas que recebia.
Detestava a maneira penetrante que seu paciente a encarava. Daniel não piscava, parecia nem respirar. Era a estátua do deus do caos a encarando como se fosse, a qualquer momento, matá-la.
A psicóloga tentou iniciar diálogos; comentou que iria ainda decidir a abordagem que seguiria com ele, assim que ouvisse suas primeiras queixas; mencionou como está estudando casos parecidos com os dele, envolvendo alucinações, ataques psicóticos — o que era mentira.
Seu paciente continuava irremediável.
O cenário e incômodo entre os dois se assemelhava aos primeiros segundos da primeira sessão: cada um em sua cadeira, somente lançando olhares indiscretos e mudos.
De um lado, uma mulher inquieta e ansiosa, que os olhos não conseguiam se concentrar mais de três segundos sem desviar. Do outro, a pura raiva era lançada por meio de um olho azul e outro branco.
Na carranca do paciente estava estampado o aborrecimento. Sobrancelhas juntas, lábios curvados para baixo, sem se mexer, de braço cruzado, feito uma criança birrenta. Estava bravo, como se Sarah tivesse traído a confiança dele. E ela tinha.
Kato estava desistindo, lendo um livro que tinha pego em casa para passar o tempo. Faltando dez minutos para aquela obrigatoriedade de silêncio acabar, ela ouviu:
— Você tem família? — Daniel perguntou.
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