🐇CAPÍTULO XVI: COELHO BRANCO🐇
—D A N I E L Is Not Sick—
Quando os olhinhos abriram vagarosamente, os cílios quase brancos de tão loiros se afastaram liberando o anil de sua íris.
Era como se estivesse submergindo de um mar tempestuoso; nunca compreendeu o sentido de dormir, mas era uma delícia estar inconsciente.
O aroma tomou suas narinas, fez uma careta; às vezes, sonhava com isso: acordar em um lugar totalmente fedido, sem vestígios de seus pais ou seus malditos sabonetes.
Com somente oito anos, desconhecia a palavra odiar mas o sentimento sempre esteve presente, como uma chama que queima por dentro, devasta e vira fumaça: os punhos tremendo e os dedos brancos com tiras vermelhas de queimaduras.
Demônios nadando nas chamas de sua alma sem se afogarem em seu coraçãozinho nada ingênuo.
— Desça, Daniel! — gritou a voz estridente e feminina pelo corredor fora do quarto.
O pequeno se sentou e se espreguiçou vagarosamente como um gatinho ao despertar na imensa cama de casal.
Esticou a coluna, levantou os dois bracinhos; respirou fundo, olhou seu cobertor e passou os pequenos dedinhos para sentir a maciez.
Suspirou ao ver as marcas vermelhas nas dobras dos dedos, sentiu ainda arderem e sorriu ao lembrar como o ferro do fogão o queimou.
Desceu com dificuldade da enorme cama e foi andando de pijama verde claro enquanto esfregava os olhos com o dorso das mãozinhas; seus cabelos loiros e lisos em formato de tigela tocavam o começo de suas sobrancelhas.
Desceu os degraus pensando que mamãe e papai tinham comentado algo importante sobre hoje, não conseguia se lembrar do que enquanto andava com as meias brancas e cheirosas passando pelo chão de madeira lustrado que cobria os degraus brilhantes e polidos abaixo de seus pézinhos.
Começou a pular eles de dois em dois; uma brincadeira que deixava a mamãe preocupada com sua segurança e papai irritado com o barulho.
Mas há dias não chamava a atenção deles com antes, de nada adiantou sua birra fajuta. Desceu os degraus sem uma palavra de reprimenda.
Sentado com seus sapatos sociais, o tornozelo em cima do joelho, usando uma camiseta branca social e calça jeans, o homem corpulento e com rosto muito quadrado deixou o charuto de lado no cinzeiro no braço do sofá e se posicionou no meio, bem de frente para uma grande câmera instalada no centro da sala de estar.
Alberto Miller tentou não reparar nas vestimentas de Daniel, mas era melhor do que nada, e eles não tinham tempo.
Era para a fotografia do jornal ter saído há uma hora atrás, mas o filho sempre dormia por muitas horas — o que fez levarem o pequeno para o psicólogo semana passada.
"Está em fase de crescimento, deve ser isso o sono", a médica tinha falado. "Bobagem", Solange pensava, "espero que tenha dois metros de altura no futuro para tanto sono", pensava o marido.
E o que a criança pensava dentro daquele consultório é que não gostava nem um pouco da forma como a mulher falava com ele, mal conseguia pronunciar o nome daquela profissão, sempre saía algo como "cocola" do que psicóloga.
E cocola lembrava a Coca-Cola, algo que ele experimentou e não gostou. Assim como chocolate, alcaçuz, balas e bolos. Que criança não gosta de doces?
Os pais achavam que, com um pouco de açúcar, veriam o filho ter o comportamento de qualquer criança comum: correndo pela casa, brincando com os brinquedos intocados do seu quarto. Mas nada adiantou, nada despertava o interesse em Daniel Miller.
— Que isso? — Dani perguntou com a voz sonolenta ainda e, abrindo mais os olhinhos anil para o tripé e câmera a frente, sentou no colo de sua mãe que logo se endireitou no sofá ao lado do marido.
— Uma câmera fotográfica — disse a voz estridente da ruiva magrela, os dedos longos e finos percorrendo os bracinhos gordos como se fossem aranhas gigantes.
— O que é uma câmera fotográfica?
— Algo que registra os momentos — era a voz de trovão de seu pai. Dani olhou curioso para o corpulento atrás de si e juntou as sobrancelhas — a nossa imagem, agora, vai ficar gravada para sempre.
— E esse cheiro também? — perguntou na inocência, já que os pais pareciam só se importarem com o cheiro das coisas do que com elas em si. Solange soltou um riso baixo e o apertou contra o colo.
— Infelizmente, não — Solange suspirou — olhe para frente, filho — disse, ele olhou e notou que tinha alguém do outro lado do tripé:
— Ele está bem? — perguntou o fotógrafo.
— Sim — disse Alberto. Já sabia sobre o que estava perguntando.
— É que ele parece tão... — falou o homem atrás da câmera.
— Apático? — Solange perguntou erguendo as sobrancelhas e escondendo as mãos machucadas do menino com as suas — ele é assim, já o levamos ao médico, não há nada de errado com ele — respondeu.
— Ei, rapazinho — o homem falou. Daniel olhou o sujeito — gosta dos cheiros dos sabonetes? — Dano fechou o rosto o tanto de pôde e negou com a cabeça, o que faz o jornalista dar de ombros, enfiar a cabeça na câmera — Sorriam! — falou.
O flash veio como uma bomba atômica na mente do pequeno no colo da mãe.
Piscou várias vezes para tentar ver algo de novo e era vermelho, muito vermelho, escorria sem parar, instigava, extasiava algo dentro de si, e depois branco, vários pelinhos brancos. Sentiu a mãe o colocando no chão e levou as mãozinhas para a folha com o que parecia ser um desenho muito realista.
— Ops, caiu — falou o repórter tirando de sua mão o desenho.
— É um desenho?
— É uma fotografia de um coelho — o repórter tentou ignorar as mãos machucadas do menino.
— Posso ficar com ela? — perguntou.
O jornalista juntou as sobrancelhas e encarou a foto que precisou tirar de um coelho que foi massacrado na floresta para uma reportagem contra a caça ilegal fora de temporada na cidade.
Os olhos vermelhos e sem vida, o pelo se misturando com o escarlate, os pêlos manchados e molhados com as vísceras saindo para todos os lados.
— Não, garotão — Bagunçou os cabelos loiros e finos do garoto e saiu agradecendo aos entrevistados pela conversa.
— Mãe! — gritou, fazendo Solange Miller rodar a barra florida do vestido e se virar para o filho que ainda estava no centro da sala enquanto os pais começavam a sair e a babá negra a entrar na casa. — Eu quero um coelho branco!
A ruiva sorriu de orelha a orelha enquanto o marido passava a mão por sua cintura e a guiava para fora.
— Tá vendo? Ele é normal, Alberto, quer um coelho branco! Igual Alice no País das Maravilhas, ele só é incompreendido — ela disse. Seu marido sorriu, piscou para o filho com um olho e comentou feliz:
— Assim que chegarmos em casa, vai ter um — Daniel assentiu com a cabeça e se sentou no sofá — somente se você se comportar! — Dani juntou as sobrancelhas, isso era sinônimo de não colocar as mãos na boca do fogão para sentir algo.
— Eu sabia que em algum momento ele ia despertar algum interesse — Solange comentou e os dois saíram andando.
Ali no sofá, enquanto a empregada tentava chamá-lo para ir se trocar no quarto, a única coisa que o pequeno pensava era como queria um coelho branco.
Um coelhinho, bem daquele jeito: todo estático, pintado de vermelho e com olhos tão escarlate que fariam seu coração palpitar.
Talvez precisava-se de uma tesoura, pensou, até mesmo uma das facas de mamãe quando ela cortava a carne para o almoço usando seu avental cheio de vaquinhas, pura ironia. Talvez não precisaria de tanto.
Encarou suas mãozinhas e os dedinhos gordinhos, praticamente cinzas e azulados de tão brancos e sorriu com as marcas vermelhas.
Talvez Carla pudesse ajudá-lo a achar um coelho branco na fazenda e ele não precisaria esperar pelos pais e poderia colocar ainda as mãos no fogão.
— Venha, vamos colocar uma roupinha mais bonita — dizia a babá pela décima vez. Dani ergueu a cabeça para ela e disse:
— Onde está Carla? — perguntou, a mulher com os cachos volumosos na altura dos ombros respirou fundo.
— Deve estar dormindo ainda no casebre dos fundos — respondeu e Daniel deu vários saltinhos até ela, segurou sua mão sentindo os dedos longos pela palma e foi subindo os degraus, rindo sem parar.:
— Ela vai encontrar um coelhinho para mim! — falou e a babá concordou com a cabeça — coelhinho, coelhinho, coelhinho, você é tão engraçadinho com seu nariz se movendo — cantarolou sorridente.
— Cadê meu coelho?! —O líquido branco de sua saliva salpicando na face retinta, fazendo Sarah fechar os olhos.
Daniel balançou a cabeça, as mechas claras se movimentaram de um lado para o outro como um chicote, puxou as mãos com força, fazendo Sarah soltá-las e quase perder o equilíbrio e cair para trás.
— Vou trazer seu coelho, Daniel — falou atônica enquanto se levantava com dificuldade.
— Cale a boca, Carla! Cale a boca! — Continuava chorando, ranho escorria de seu nariz.
Miller se curvou para frente e começou a bater com as mãos em punho nas têmporas, os policiais entraram de novo e, desta vez, Kato assentiu com a cabeça.
— Peçam para alguma enfermeira sedar ele — foi o que disse aos fardados, eles se aproximaram de Miller. Cada um dos brutamontes segurando um braço e o levantando com força na cadeira, os músculos dos bíceps dos dois saltando pela camiseta do uniforme preto — e se certifiquem que ele tome os remédios! — terminou sua fala e se sentou aturdida.
— Sarah! — Daniel berrou com a garganta doendo e sendo arrastado contra sua vontade pela sala até a porta.
Os homens o puxavam através da curva dos cotovelos e ele soltava o corpo, fazendo os pés ficarem caídos para trás e os joelhos suspensos no ar:
— Me dê meu coelho! — gritou. Olhos fechados, a marca da cicatriz se contorcendo em sua bochecha — por favor, Sarah! Me dê um coelho para pôr em um pote! Por favor! — E, com isso, a porta se fechou.
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