🚪CAPÍTULO VI: O PORÃO🚪
— 𝕾𝖊𝖗𝖎𝖆𝖑 𝕶𝖎𝖑𝖑𝖊𝖗 𝕰𝖘𝖈𝖆𝖕𝖊—
Teve poucos amigos, mas não se importava.
Sabia muito bem que a qualidade era melhor do que a quantidade. Sempre teve receio de se aproximar de uma pessoa branca, demorou anos para frear a inveja dos cabelos longos, os olhos claros, a pele branca.
Por vezes, ousava sonhar que acordaria de outra forma, em outra vida, em que nasceria pelo menos mais clara. Demorou, mas entendeu que nada mudaria.
Poderia alterar somente sua mente, a forma como se via, mas nada a ajudava. A mídia, os filmes, os livros, as histórias são sempre sobre eles, nunca sobre nós, era a conclusão que chegava.
A miséria de saber que o pior está por vir assola a alma, aterroriza o corpo, encolhe o peito, sufoca a garganta, martiriza a esperança.
Emma Magalhães terminou de puxar o trinco da porta do porão assim que sentiu um corpo bater nela e viu a maçaneta começar a girar freneticamente.
— Abra essa porta! — a voz do horror soou grossa e infinita, como se formasse ecos. Só que, em vez da força do som diminuir, ele aumentava, as palavras cresciam como ervas daninhas que comiam o que restava de sua sanidade. — Abra a porta! Agora! Magalhães!
Emma ignorou Daniel e virou o corpo, adentrando em uma caverna íngreme e podre, o que quase a fez vomitar. Sua barriga revirava em fúria com o excesso de bile na garganta.
Deu um salto para trás ao sentir o fio encostar em sua testa e não pode conter o fino e estridente grito que profanou. O ar era condensado em dois sons dicotômicos: o bater frenético da palma de Miller na madeira maciça e o timbre agudo da garganta de Magalhães.
Contendo-se, e com a visão se ajustando à escuridão, Emma olhou para a cordinha que balançava suavemente de um lado para o outro após colidir-se contra sua face. Ela puxou o fio e, assim, fez-se a luz.
Uma escada íngreme com degraus gastos e até com furos apareceu a um passo diante de Emma. Desejando sair de perto do som irritante e assustador de Daniel gritando e do bater da madeira, ela desceu correndo.
Ao chegar no porão, respirou e, assim, não pôde evitar: vomitou o que restava do almoço e café da manhã.
Em um jorro verde-amarelado, os restos orgânicos caíram com um som pegajoso no chão à sua frente, pelo menos se curvou a tempo de não se sujar.
Ao fundo, a voz de Miller soava em fúria:
— Eu vou arrombar a porta!
A maçaneta girou ritmada, de um lado para o outro fazendo uma música rítmica, mas a letra da melodia não era para qualquer um ouvir. O diabo estava fora do inferno e uma intrusa invadia seu santuário.
Embaixo, Emma Magalhães limpou rapidamente o canto da boca com o dorso das mãos e, ao levantar a cabeça sentindo a garganta arder, visualizou outra cordinha semelhante à primeira.
Com o coração martelando, batendo como se fosse um ritual satânico, ela puxou a corda e, novamente, fez-se luz. Ficou espantada com o que viu, não pelo terror, horror e atrocidade que tanto esperava encontrar, mas pelo fato de que parecia ser somente um porão comum como qualquer outro — apesar do cheiro.
Era tão pequeno que em menos de seis passos poderia ser cruzado, sujo como se o chão e a poeira tivessem um casamento de décadas, com caixas de papelão fechadas e empilhadas; uma estante da mesma madeira dos móveis do primeiro andar e uma enorme mesa preta ocupava a parede do lado esquerdo e preenchia todo o comprimento do cômodo.
Emma juntou as sobrancelhas ao notar com a ajuda da luz fraca e amarela que havia uma espécie de caixa retangular enorme em cima da mesa e, ainda, estava coberta por um surrado pano branco. Ela aproximou-se devagar enquanto Daniel ainda gritava e batia na porta.
Os olhos dela percorreram o retângulo de ponta a ponta, sua mente associou aquilo automaticamente com um caixão, o coração disparou mais ainda.
Emma sentia que o corpo estava tremendo, já tinha notado que ali não havia nenhuma porta ou túnel, então, não tinha escapatória.
Ela estava diante de algo que ainda não havia se revelado sinistro — mas sua intuição já gritava que ia — e não conseguiu cessar a onda, o tsunami avassalador de pensamentos de que iria, inevitavelmente, morrer ali.
Eu vou morrer, eu vou morrer, eu estou morrendo!
Os sintomas do ataque de pânico fizeram Emma supor que já estaria prestes a ter um ataque cardíaco e, assim, cairia dura no chão.
O som ao fundo deixa tudo pior, mesmo que abafada, a voz de Daniel era um trovão em meio a uma tormenta, uma tempestade em que Emma Magalhães se banhava no mais puro pânico.
Ficou ofegante e antes de perder a capacidade de se mover, puxou o pano branco com força.
A revelação e a imagem que viu quando o tecido velho tocou o chão a fez escancarar a boca e soltar um grito que silenciou até mesmo Daniel Miller.
O grito se arrastava fino e ia fazendo as cordas vocais de Magalhães vibrarem sem parar.
Uma cúpula redonda de vidro, parecia um cano enorme e translúcido cortado pela metade, abriu as cortinas para o maior pesadelo de Emma — um que ela sequer sabia ser seu.
O que estava após o vitral era o corpo em decomposição de Samantha Pinheiro, quase irreconhecível devido aos bichos gordos que percorriam a mulher e se aglutinavam em multidões nos orifícios dos olhos, da boca e das orelhas.
Os cabelos loiros e compridos eram a única coisa que restava intacta. Em um tom cinza, preto e verde, a mulher desapareceria pelas bocas dos vermes verdes e a expressão na qual Sam morreu deixou o miocárdio de Emma em chamas de fúria, pavor, tristeza e injustiça.
Como se o crânio estivesse se alongando mais do que o normal em um formato oval, a boca aberta ocupava mais da metade da face e os olhos e nariz disputavam o pouco espaço que havia sobrado. Samantha Pinheiro repousava morta dentro do vidro.
O terror estava gravado nela, na face, por todo o corpo e, infelizmente, na alma. E estaria assim por toda a eternidade. Congelada, paralisada em um medo terrível justamente no momento de morrer e, ainda, representando a morte em seu pior estágio: da decomposição para o sumiço, Samantha não era um fantasma, ela parecia mais um monstro.
Emma Magalhães sabia muito bem que, apesar da mais feia e repugnante aparência que a morta tinha, eram os brilhantes cabelos loiros, o corpo esbelto e forte, a voz serena e a face apática de Daniel Miller a verdadeira monstruosidade.
A mulher não cessou o grito por quase um minuto e, assim que viu a imagem da torturada, começou a andar para trás em passos rápidos. Não tinha mais coração para bater, morreu por dentro assim que viu Samantha daquela forma — vestiu a alma de noiva cadáver.
Andou, andou e andou para trás, com as pernas tremendo e o som da própria voz no ar — as únicas coisas que provavam para ela mesma que ainda estava viva. Até que bateu as costas na estante velha, a força devido à rapidez do esbarrão fez com que um pote redondo de vidro caísse a quase um metro à sua frente.
O barulho do vidro estilhaçando e o líquido tomando o chão fez Emma parar de gritar, levar as mãos aos ouvidos e fechar os olhos. Outro pote semelhante bambeou acima de sua cabeça e, segundos depois, também caiu bem na sua frente.
Emma abriu os olhos de susto, deu um pulo rápido e viu o líquido respingar e molhar a barra do vestido. Ela estava recuperando o fôlego de tanto gritar e sentindo a faringe vibrar de dor quando abriu a boca de novo e, desta vez, berrou com todo o pavor que tinha no peito.
O que estava dentro do vidro e rodeado do líquido apareceu no chão como se fosse uma bola envolta por um grosso pano marrom. À medida que os segundos passavam, o pano grudava no objeto revelando dois buracos fundos, dois menores como riscos abaixo e, por debaixo deles, a arcada dentária aparecia sob o pano.
Um crânio sorria para Emma Magalhães.
O cheiro forte de formol tomou conta do ambiente e se misturou com o de podridão. A bile subiu a garganta de Emma mais uma vez enquanto os olhos lacrimejavam, não somente pelo odor, mas também pelo medo.
A ânsia foi despertada, mas, desta vez, nada saiu, pois não havia mais nada para ser colocado para fora. Mesmo em um movimento repetitivo do abdômen pedindo para ela vomitar, a única coisa que ela fazia era continuar berrando.
Os ouvidos receberam o alerta do cérebro com o instinto de sobrevivência, como uma ligação desesperada anunciando algo por parte dos neurônios que pressentiram o problema chegar e, também, por parte da pele que sentia de maneira sobrenatural a vibração de um segundo barulho.
Assim, Emma ouviu além de seu berro um som assustador. Tum, tum, tum, tum, tum. Daniel descia rapidamente a escada.
Emma se afastou cambaleando para longe dos crânios, evitando olhar o primeiro que espatifou no chão e foi para o fundo do porão na tentativa de evitá-lo.
Estaria mais longe da escada, de fato, mas escapar de um leão, estando dentro de uma jaula, seria impossível.
Por outro lado, desistir não fazia parte de seu vocabulário, mesmo em uma situação tão catastrófica e horrenda.
Tum, tum, tum, tum.
Começou a procurar em volta alguma coisa para detê-lo, girava o pescoço de um lado para o outro e tentava focar a visão mesmo com as lágrimas tomando os glóbulos brancos dos olhos.
Até que olhou para o chão e viu um taco de beisebol velho, não sabia se aquilo poderia impedir Miller de alguma forma, mas era melhor do que nada.
Tum, tum, tum. Assim que agarrou o objeto e levantou o corpo, o barulho cessou e Emma olhou Daniel paralisado em frente a escada.
Com o corpo rígido e movendo somente os olhos para encarar o cenário, Miller olhava e, à medida que via os crânios e o pano do caixão de vidro no chão, sua face endurecia.
Com as mãos juntas e rentes ao corpo em formato de punho, a boca semiaberta e os olhos envoltos por uma carne que se apertava cada vez mais, o assassino ficou indignado.
— O que você fez?! — ele gritou. A noiva cadáver segurava o taco pela ponta e o mirava em Daniel. — O que você fez? — repetiu, em um tom mais baixo e, quando Emma notou o que estava prestes a acontecer, juntou as sobrancelhas confusa. — O que você fez? — Ele relaxou o corpo, abrindo as mãos e transformando o inferno em céu na face, não estava mais bravo, estava triste. — O que você fez? — sussurrou com um choramingo.
Daniel Miller estava chorando.
Sem nem ao menos olhar para Emma desde o momento que pisou no porão, o assassino sentiu uma reviravolta de emoções que há tempo que não sentia. Talvez, a última vez, foi na infância.
Respirou fundo e, sem encarar a mulher, andou em direção aos crânios. Desviou deles e mirou a estante de vidro composta por dezoito potes transparentes e intactos enquanto as lágrimas preenchiam o seu rosto por conta dos que estavam espatifados no chão.
— Não, não, não, não, não. — Em meio às lágrimas, ele girou o corpo e curvou o pescoço em direção aos crânios, berrando e soluçando. — Não! — ele berrou e começou a soluçar. — Não! — As mãos ficaram em punhos cerrados de novo e encostaram nas pernas como se fossem imãs. — Não! — E caiu de joelhos no chão.
Emma Magalhães segurava o taco de beisebol no ar em posição de alerta, olhou rapidamente para a escada a menos de dez passos de distância.
Queria se mover e andar devagar, sem barulho, pelos cantos até chegar nos degraus e poder sair. Parecia insano, mas talvez tivesse escapatória e ficaria viva.
Por mais que tentasse, os músculos das pernas continuavam paralisados enquanto evitava lembrar a do que viu. Recusava-se a virar o rosto um pouco com medo de encarar o que um dia foi Samantha Pinheiro. Assim, o máximo que ela podia fazer, enquanto não olhava os degraus com anseio, era assistir Daniel Miller.
— Não — ele choramingou.
Daniel curvou-se em direção a um dos crânios e agarrou um deles, levando contra o peito a caveira coberta pelo pano molhado. Ele a abraçava enquanto as lágrimas pingavam. Emma virou o rosto para não o assistir retirando o pano de um dos crânios.
— Sinto muito por terem tirado você do pote, querida, daqui a pouco vou te colocar de volta, ok? — Fungou, puxando o ranho do nariz e contendo o choro enquanto ninava a cabeça decapitada e a acariciava.
Em seguida, a atenção dele foi capturada por outro crânio no chão, este meio quebrado em duas partes.
— Te destruíram! — Ele voltou a chorar. — Eu sinto tanto! Perdoe-me por deixar isso acontecer! Eu sinto muito! Te destruíram! Como puderam? Como...
Em questão de segundos, Daniel foi da tristeza para a fúria e, enfim, encarou Emma, que voltou a olhá-lo ao ouvir o som do choro parar.
A garota fez o máximo que pôde para focar a visão no rosto de Miller e a imagem assustadora do crânio que pingava gotas grossas de formol na calça jeans do assassino.
— Você...
Ao ouvir a voz dele em sua direção, Emma sentiu o coração pulsar de medo e, indo contra o seu pavor, o instinto de sobrevivência foi atiçado.
Quando o corpo entende que a morte está a dois passos, ele pode ter três reações automáticas, um: ataque de pânico, tremedeira sem fim, respiração ofegante e coração acelerado. Dois: os músculos ficam rígidos e o indivíduo ataca para se proteger. E três: correr, somente correr, com todas as forças e energias que possui.
O sistema defensivo do cérebro de Emma Magalhães escolheu a terceira opção.
A garota disparou segurando o taco e chegou ao pé da escada; subiu os degraus freneticamente, tropeçou duas vezes devido ao pavor e, quando a claridade fraca do andar de cima ia trocar-lhe o rosto, o tiro foi dado.
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Até o próximo capítulo.
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