⚰️ CAPÍTULO II: A NOIVA CADÁVER⚰️
— 𝕾𝖊𝖗𝖎𝖆𝖑 𝕶𝖎𝖑𝖑𝖊𝖗 𝕰𝖘𝖈𝖆𝖕𝖊—
Não podia permitir que nada invadisse sua carne sem sentir dor quando se lembrava do desaparecimento do pai anos atrás. Era algo que ensurdecia qualquer maré de conforto que um dia já sonhou sentir.
Não havia o mais limpo dos oxigênios, era obrigada a inalar com a putrefação dos pulmões, evitando o àlcool como uma puta evita o sexo: nega, nega, nega até precisar dele.
Sarah Kato pensava constantemente que se a morte fosse o inimigo, a vida também não era santa, e, de certa forma, não estava totalmente equivocada.
O toque de súbito provocou uma dor avassaladora em seu interior como se um enxame de abelhas o picasse em sincronia; como se uma estaca fosse cravada em seu corpo em chamas; como se o transe voltasse para dentro; como se a adrenalina se convertesse em cortisol.
Desnorteado pelo conglomerado de sensações, demorou alguns segundos para encarar o que estava à sua frente.
Deparou-se com um véu de noiva meio vermelho cobrindo um rosto a poucos centímetros do seu.
Confuso, supondo que o dom da vida lhe foi retirado por um tiro, e aquela seria a morte encarnada, Daniel Miller sentiu alívio ao imaginar que havia morrido.
Desceria ao inferno de bom grado; recusaria o purgatório veementemente; seria torturado pelo mais perverso anjo caído sem reclamar, o mesmo que era descrito pelas sagradas palavras bíblicas; sorriria ao sentir as chamas percorrendo sua alma.
Enfim, estaria entre os seus semelhantes.
— Perdão! Perdão! Perdão! — A voz feminina, trêmula e nervosa retirou da mente dele a exorbitante e magnífica fantasia de morrer. Ainda estava vivo.
Não morri, merda! Após a raiva cair como uma pena, a decepção invadiu seus pensamentos. Viu-se iludido por si mesmo ao esperar que a maravilha do falecimento tivesse esbarrado em seu caminho.
Não foi. Foi somente uma mulher.
— Eu não te vi! Esse véu idiota não me deixa ver! — A voz fina continuou.
— Então tira ele! — Miller respondeu.
Julia levou um susto atrás do balcão, nunca tinha ouvido a voz de Daniel soar tão grossa e tenebrosa.
— Não! Não posso! Vão me achar! — Miller começou a rir de raiva após notar a mulher à sua frente.
Baixa, não deveria ter nem um metro e sessenta, vestia um lindo, comprido e brilhante vestido branco com bordados nas extremidades. Parecia intacto, a não ser pela barra rasgada e suja de algo vermelho.
Apenas uma coisa não se encaixa naquela pessoa utópica além do cenário distópico: estava repleta de um líquido cor de vinho no véu, nas mãos, nos sapatos...
— Você está com um vestido de noiva! Quem estiver lhe procurando vai achar! Saia da minha frente! — Miller disse emudecendo o riso rapidamente e, milagrosamente, mudou sua expressão da água para o vinho.
Ele não conseguia mais seguir com seu teatro picareta de calma, a dor de sentir tudo revirar dentro de si o abalou profundamente.
Daniel tentou ao máximo se convencer de que a situação poderia causar raiva repentina em qualquer um. Do mais débil mortal ao mais sensato dos deuses, ficaria estarrecido com aquela mulher.
Enquanto isso, ao assistir à cena, Julia sussurrava para o colega de trabalho:
— Uma noiva desesperada e suja de sangue entra em uma cafeteria... será que estamos em um episódio macabro de FRIENDS?
— Vão me achar! — a noiva voltou a gritar.
— Moça, a senhorita está bem? Parece suja de... — Julia falou ao sair de trás do balcão, pois não perderia tempo para conhecer a "Rachel Green" — ... sangue?!
— Oh! Não! Não, não, não! Não se preocupe! É de mentira! Veja — A noiva atropelou as palavras enquanto tocava nos braços e a sujeira se revelava uma espessura gosmenta. — Eu estava provando minha fantasia de Halloween quando eles me acharam!
— Eles quem?! — Daniel gritou, impaciente.
— Meus irmãos!
Daniel juntou as sobrancelhas, assim como Julia, mas a noiva logo se explicou:
— Participamos da competição de fantasia de Halloween de Pedra da Lua todo ano! E eles descobriram onde eu fui provar a minha! — A mulher tentava recuperar o fôlego enquanto cuspia as palavras com ódio. — Vão trapacear! Eles farão uma fantasia melhor que a minha e ganharão! O Halloween é amanhã! — Ao finalizar a explicação inacreditável, ela respirou fundo e falou devagar: — Eles não podem me ver!
Daniel riu de nervoso, estava farto. Sentia-se irritado ao máximo, não poderia crer que aquela mulher tinha falado algo tão infantil e estúpido.
— Pois bem! — Miller disse e colocou as mãos nos ombros da noiva cadáver para empurrá-la e passar.
Mas, quando conseguiu tirá-la de sua frente, olhou em volta para tentar encontrar o rosto da mulher que tinha achado perfeita para ser sua nova escolhida.
Levou os olhos para cada canto da cafeteria e da calçada. Não a encontrava por nada.
A lebre tinha fugido do leão após ele se esgueirar por horas na mata para achá-la. Em outras palavras, Paul tinha escapado das mãos de Annie Wilkes.
A mandíbula travou com uma força descomunal. Os dentes cerraram em fúria, fazendo o ranger soar baixo, mas perceptível. As mãos fecharam em punho prontas para destruir o que estivesse à sua frente.
Daniel Miller tinha perdido a sua escolhida.
O ódio percorreu em alta velocidade pelas veias; a maldição da perda enfeitava seu corpo impedindo a purgação; a crueldade decorava sua mente, rasgando sua frágil e translúcida racionalidade com uma lâmina afiada.
O sangue lhe subiu à cabeça, assim como a tremedeira tomou seus braços. Daniel iria, a qualquer momento, explodir de desespero, fúria e, principalmente, vontade de matar.
Virou os calcanhares e encarou a noiva cadáver.
— Você... — ele disse e, antes de continuar, conteve-se nas palavras, mas as mãos voaram para o rosto da mulher, mais especificamente para o véu e o tirou a força.
— Ah! — A garota ergueu as mãos com um grito fino e estridente.
A fúria foi amenizando aos poucos.
A mente largou a faca e a racionalidade pode se defender, nem tudo estava perdido. A tremedeira sumiu repentinamente, fazendo com que o ar lhe preenchesse os pulmões e engatasse marcha ré no sangue.
Os braços de Daniel despencaram ao encontro das pernas, fazendo com que o véu da noiva fosse largado, caindo, caindo, caindo e caindo devagar com a aerodinâmica de um papel até o chão.
De olhos azuis, magra, com cabelos loiros, boca aberta em uma expressão de susto, rosto pontudo, cheio de marcas de sangue e com sombras pretas em volta dos olhos, a noiva cadáver revelou seu aspecto.
Os lábios sujos de batom cor de vinho arrastavam às extremidades da boca dela fazendo-a parecer maior do que realmente é. Se estivesse sorrindo, o Coringa versão feminina estaria ali.
As bochechas finas, as olheiras profundas e marcadas pela maquiagem preta que lhe cobria até um pouco acima das pálpebras criavam nela um ar fantasmagórico.
A desconhecida foi de "a pessoa que arruinou o dia de Daniel Miller" para "a salvadora da pátria" em milésimos de segundos, já que passou a ser a próxima vítima assim que ele viu o rosto por trás do véu.
— Perdoe-me! Sua fantasia é incrível — A voz serena de Miller surgiu como se nada tivesse acontecido. Julia ficou embasbacada.
— Obrigada! Mas eles vão me achar! Estavam me seguindo! — a noiva disse em tom de medo.
Três rapazes entraram na cafeteria, fazendo um sino soar. A noiva olhou pelos ombros do homem à sua frente para a porta. A garota rapidamente ficou atrás de Daniel, tentava ao máximo se esconder à medida que olhava para os familiares que conversavam sem parar.
— O que eu vou fazer?! — ela sussurrou.
— Posso te ajudar a sair daqui — Daniel sugeriu.
— Obrigada, mas... por onde sairemos?
— Por aqui — Julia falou puxando de leve o braço da noiva cadáver que andou nas pontas dos pés ao lado da balconista. Daniel seguiu as duas sem pensar duas vezes.
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*Esse trecho é uma referência ao livro Misery — Louca Obsessão de Stephen King.
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